Um domingo de República de Bananas
Não bastasse o brasileiro ter de conviver com um presidente da República impopular e sob forte odor de corrupção, o cidadão comum tem a sensação de que a balança da Justiça do país está mal aferida
Não bastasse o brasileiro ter de conviver com um presidente da República impopular e sob forte odor de corrupção,
o cidadão comum tem a sensação de que a balança da Justiça do país está
mal aferida. Por consequência, a Temis brasileira está com os seus
pratos desequilibrados. E são frequentes teratologias jurídicas
causadoras de situações de insegurança. Quando juízes de Corte
Constitucional perdem o pudor ao não se declarem proibidos de julgar por
notória falta de imparcialidade, a Justiça passa a ser desacreditada:
no Brasil temos, sob influência da tripartição dos poderes desenvolvida
por Mostesquieu, um poder Judiciário, ao lado dos poderes Legislativo e
Executivo. No particular, o Brasil caminha a passos largos para uma
situação de entropia que o saudoso jurista europeu Piero Calamandrei
—um dos pais da Constituição italiana de 1948—, apontou com a expressão
latina Habent sua sidera lites, a significar não ser a Justiça algo a ser levado a sério.
No último domingo e com o tradicional recesso judiciário do mês de
julho, um magistrado de Corte regional e federal agitou o país —que terá eleição em outubro próximo para chefe do Executivo federal— em regime presidencial republicano.
Como se diz no popular, esse magistrado do plantão judiciário, que
funciona com competência restrita a apreciar casos de urgência e
inadiáveis, jogou gasolina numa fogueira política que diz respeito ao
popular ex-presidente Lula da Silva.
Lula está condenado, em duas instâncias da Justiça, (uma monocrática e outra colegiada), por crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Encontra-se preso provisoriamente,
pois as condenações (corrupção e lavagem) ainda não passaram em
julgado, ou seja, não são definitivas. Estão pendentes de julgamentos
dos seus recursos no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo
Tribunal Federal (STF).
Por seis votos contra cinco, o Supremo Tribunal,
que funciona também como corte Constitucional, firmou no ano de 2016
entendimento jurisprudencial de ser possível execução provisória de
sentença condenatória imposta ou confirmada por um órgão judiciário
colegiado: e Lula foi condenado, em sede de apelação, pela 8ª Turma
Julgadora do Tribunal Federal da 4ª região,
com sede no estado federado do Rio Grande do Sul. Diante da acima
mencionada jurisprudência redutora do alcance do princípio
constitucional da presunção de não culpabilidade (chamada de presunção
de inocência a partir da Revolução francesa), o ex-presidente Lula
encontra-se a cumprir pena de prisão fechada, em processo de execução
provisória.
As duas turmas julgadoras do Supremo Tribunal, apesar da
jurisprudência do colegiado ainda não haver sido derrubada, divergem
sobre caber ou não execução provisória. Quem tem sorte de levar o
recurso à Segunda Turma, pode ganhar a liberdade. E na semana passada,
num contorcionismo jurídico para driblar a jurisprudência do Supremo
Tribunal de admissão da condenação antes de se tornar definitiva, a
referida Segunda Turma concedeu, em habeas corpus de ofício (sem
provocação da defesa técnica), efeito suspensivo a recurso de José Dirceu,
ex-ministro chefe da Casa Civil do então presidente Lula. Claro está
que a situação processual de José Dirceu é exatamente igual ao do
ex-presidente Lula que, no entanto, continua preso provisoriamente.
A defesa técnica de Lula aguarda, após o período de férias do Supremo
Tribunal, que os 11 ministros decidam, em sessão plenária, se o
ex-presidente aguardará o julgamento dos seus recursos em liberdade e se
está ou não inelegível: as pesquisas de intenção de voto apontam Lula em primeiro lugar na corrida presidencial,
com cerca de 30% dos votos. Para surpresa geral —sem ser caso de
urgência a justificar uma decisão do Plantão judiciário e estar a
questão fulcral sobre a liberdade e ilegibilidade de Lula subjudice no
Supremo Tribunal—, o magistrado plantonista, Rogério Favreto, determinou liminarmente, de pronto, a soltura do ex-presidente Lula.
Entendeu estar Lula sendo prejudicado como futuro candidato, pois os
seus concorrentes gozavam de liberdade, embora não houvesse nenhum
condenado: o Partido dos Trabalhadores ainda não indicou Lula como candidato e isto em razão de obstáculo previsto na chamada Lei de Ficha Limpa.
Por essa lei, não tem legitimidade para candidatar-se quem estiver
condenado criminalmente por decisão de órgão judiciário colegiado. Lula,
como frisado, encontra-se condenado por Vara Criminal de Curitiba
(julgamento monocrático) e pela 8ª Turma do Tribunal Federal da 4ª
Região. A liminar concedida no plantão judiciário do Tribunal foi
espantosa, pois a regra é do seu cabimento de liminar apenas diante de
uma flagrante e visível ilegalidade ou de abuso de poder. E o espanto
aumentou quando se soube que o Favreto não era um magistrado por
concurso público, mas por nomeação da ex-presidente petista Dilma Rousseff (eleita por influência de Lula e cassada por impeachment).
Mais ainda, Favreto tinha uma militância de mais de 20 anos no lulista
Partido dos Trabalhadores. Para piorar e indicar a sua falta de isenção
para decidir, havia assessorado Lula na presidência da República.
Depois de mais de 16 horas de idas e voltas, manteve-se a prisão de Lula,
por decisão do presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. O
presidente da Corte solucionou um conflito de competência entre dois dos
seus membros. Ou melhor, entre o magistrado Pedro Gibran Netto, membro
da 8ª Turma do Tribunal (relator do processo onde ocorreu a condenação
de Lula e foi emanada a ordem de prisão) a negar a soltura de Lula, e o
magistrado do plantão a expedir ordem se soltura de Lula.
Num pano rápido. O Brasil viveu um domingo de República de Bananas.
Wálter Fanganiello Maierovitch, 71
anos, é jurista, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São
Paulo, professor de Direito, Cavaliere della Repubblica di Italia,
editorialista e comentarista da Radio CBN-Globo. É presidente do
Instituto Giovanni Falcone de Ciências Criminais e titular vitalício na
Academia Paulista de Letras Jurídicas e na na Academia de História.
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