No livro Capitalism and Freedom, Milton Friedman, uma espécie de sumo-pontífice do neoliberalismo, defende que o Estado não deve interferir de maneira alguma nos negócios privados. Na obra, Friedman afirma que o contratante tem o direito de adotar abertamente critérios discriminatórios de raça, gênero, classe e religião na hora de contratar. “Vagas só para brancos” ou “não se aceitam muçulmanos“, por exemplo. Pensar de modo contrário significa defender uma indevida “interferência na liberdade dos indivíduos de assinar contratos voluntários entre si“.
A lógica se aplica também à regulação na prestação de serviços (se eu quiser me cirurgiar com um açougueiro, por exemplo, o Estado não pode exigir dele um diploma, uma licença ou uma capacitação especializada para o exercício da profissão). Nesses casos, a solução de controle que Friedman oferece é a dos serviços particulares de aprovação – as estrelinhas do Uber e as reclamações no Reclame Aqui, por exemplo.
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Apesar da proeminência de Friedman nos meios liberais – seus acólitos da Escola de Chicago ganharam destaque internacional ao aplicar, com uma admirável coerência, as teorias de liberdade econômica de seu mentor meio à brutal ditadura de Pinochet –, parece faltar a muitos dos que se dizem adeptos do liberalismo uma apropriação mínima de suas teses.
O Movimento Brasil Livre, por exemplo, acaba de ser enxotado do Facebook – uma rede social privada – junto com os seus satélites propagadores de fakenews. Se tivessem lido Friedman e levassem a sério o que defendem, migrariam resignados para outra rede social, segundo a dinâmica do livre-mercado da qual se dizem tão entusiastas. Mas não. A histeria dos rapazes chegou ao ponto de redigirem uma notinha reclamando de um suposto esquerdismo de Zuckerberg, alçado ao posto de inquisidor de páginas de direita.
A alucinação catártica de seus membros não os levou apenas a demonizar a figura de Zuckerberg – que, no imaginário dos liberais high stakes, costuma ser visto como a encarnação viva do senso de oportunidade empreendedor –, mas também a louvar a intervenção do Ministério Público Federal – um órgão estatal, é bom destacar – para investigar se houve censura na remoção dos perfis pelo Facebook[1].
Mas interessante mesmo é o perfil do procurador que resolveu meter o bedelho na rede social de Zuckerberg. Ailton Benedito, chefe da Procuradoria-Geral da República em Goiás, é conhecido por suas posições lunáticas de extrema-direita não só nas redes sociais, mas também em sua vida profissional.
Além de defender sandices como a de que o nazismo é de esquerda e ter passado vergonha em rede nacional por ter pedido explicações ao Itamaraty sobre o suposto envio de crianças e adolescentes do Brasil para treinamento armado na Venezuela quando, na verdade, era o estado de Sucre, no mesmo país, que as estava enviando para oficinas de jornalismo[2], Benedito chegou a convidar Kim Kataguiri para a audiência “Segurança Pública e Manifestações Sociais” promovida pelo próprio. Ainda, como o próprio convite a Kataguiri denuncia, o procurador faz parte de uma vertente do MPF que é adepta de terraplanismos representados por termos como “bandidolatria” e “democídio” (o “assassinato cujo culpado é o governo”). Puro chorume.
As postagens cheias de ira do MBL estão repletas de comentários pondo em xeque os dogmas liberais da milícia. Seus membros passaram o recibo do desconforto. Em um dos vídeos sobre o assunto, o vereador Fernando Holiday cita os termos de serviço do Facebook como uma espécie de contrato. Holiday afirma que um dos comprometimentos da rede de Zuckerberg é a de tratar todos os seus usuários com isonomia, tendo, portanto, desrespeitado as previsões contratuais nesse sentido.
Holiday, em tese, está certo. Um dos fundamentos do Estado, segundo John Locke e a farta literatura liberal, é a garantia da segurança jurídica e do cumprimento de contratos. Havendo as duas partes entrado em acordo voluntário, o descumprimento dos termos contratuais por parte de uma delas legitima que a outra acione o poder judiciário para vê-los cumpridos.
Contudo, lendo o Termo de Serviços mencionado por Holiday, é possível perceber que não há nada muito categórico acerca do tratamento isonômico da rede para com seus usuários[3]. Há, todavia, outras questões bem mais interessantes.
Uma de suas condições é a de “permitir que você se expresse e fale sobre o que é importante para você”. Em seguida, elenca como responsabilidade o combate a “condutas prejudiciais”, com o objetivo de “proteger e oferecer suporte para nossa comunidade”. O termo esmiúça essas diretrizes:
“as pessoas só criarão comunidades no Facebook se sentirem que estão seguras. Empregamos equipes dedicadas em todo o mundo e desenvolvemos sistemas técnicos avançados para detectar o uso inadequado de nossos Produtos, condutas prejudiciais contra outras pessoas e situações em que talvez possamos ajudar a apoiar ou proteger nossa comunidade. Se soubermos de conteúdos ou condutas como essas, tomaremos as medidas adequadas, como oferecer ajuda, remover conteúdo, bloquear o acesso a determinados recursos, desativar uma conta ou contatar autoridades. Compartilhamos dados com outras Empresas do Facebook quando detectamos o uso inadequado ou conduta prejudicial por parte de algum usuário de um de nossos Produtos”.
Mais a frente, enumera as condições de uso do Facebook e os deveres de seus usuários:
Usar o mesmo nome que usa em sua vida cotidiana.
Fornecer informações precisas sobre você.
Criar somente uma conta (própria) e usar sua linha do tempo para fins pessoais.
Abster-se de compartilhar sua senha, dar acesso à sua conta do Facebook a terceiros ou transferir sua conta para outra pessoa (sem nossa permissão).
Se constatarmos que você violou nossos termos ou políticas, poderemos adotar medidas contra sua conta para proteger nossa comunidade e serviços, inclusive suspendendo o acesso ou desativando sua conta. Também podemos suspender ou desativar sua conta se você criar riscos ou exposição legal para nós, ou quando estivermos autorizados ou obrigados por lei a assim proceder”.
Veja que uma das condições de uso é exatamente utilizar o mesmo nome que o usuário usa em sua vida cotidiana, proibindo perfis falsos. Sobre esse ponto em particular, o perfil “Monitor do debate político no meio digital”[4] fez a seguinte análise:
“O Facebook anunciou agora há pouco que tirou uma rede de 196 páginas e 86 perfis falsos que se dedicavam a desinformação. Fonte da Reuters esclarece que tal rede era ligada ao MBL. O MBL, em nota, confirma que perdeu páginas. O tamanho da rede é realmente surpreendente. Em nosso monitoramento não encontramos mais do que vinte páginas do grupo em atividade que produziam em média 126 postagens por dia e somavam 150 milhões de interações só no ano passado (veja grafo com nosso mapeamento das mais relevantes). Essa desproporção entre o que estava em atividade e o que caiu agora nos sugere que o Facebook identificou a criação de uma rede de páginas novas que provavelmente seriam usadas no período eleitoral. Das que já estavam em atividade e eram relevantes, caíram a página do Jornalivre e do Diário Nacional. Como o Facebook não retira páginas que divulgam notícias falsas, mas apenas páginas administradas por perfis falsos, é provável que todas as páginas tinham sido criadas com contas falsas. Um dos perfis que supostamente administrava a página do Jornalivre também caiu, o que sugere que era falsa”.
Note-se, portanto, que uma das razões pelas quais houve a retirada das páginas foi exatamente o grande volume de perfis falsos identificados, contrariando as condições previstas pelo Termo de Serviços da rede. Mesmo no campo contratual, para onde levou a discussão, as sustentações de Holiday carecem completamente de fundamento.
É bom lembrar também que o MBL é prodígio em produzir fakenews. A agressividade infantil com que tratou a agência Truco, por exemplo, quando se propôs a analisar a (falta de) veracidade dos dados apresentados por Kataguiri sobre o regime semiaberto foi só um aperitivo[5]. A resposta à insolência da checagem dessas informações – também convenientemente tachada de censura – veio também em forma de fakenews– e logo do perfil Jornalivre, um dos que foram derrubados[6] juntamente com o Ceticismo Político, replicado pelo MBL na divulgação de criminosas fakenews sobre as circunstâncias do assassinato de Marielle Franco.
Em outra ocasião, Kataguiri e o MBL divulgaram vídeo de manifestantes segurando bandeiras e rompendo obstáculos em direção a um prédio público. “SINDICALISTAS INVADEM PRÉDIO PÚBLICO PARA TENTAR IMPEDIR CONDENAÇÃO DE LULA” era a legenda do vídeo, acompanhado dos seguintes dizeres de Kim: “Sindicalistas estão tentando impedir de todos os modos a condenação do Lula, mas não vão conseguir. FALTAM 9 DIAS!“.
O vídeo, entretanto, registrava os protestos de servidores e servidoras do Rio Grande do Norte frente à Assembleia Legislativa do estado contra as medidas de austeridade propostas pelo governador Robinson Faria[7]. Mesmo alertado pelos seguidores da página, o MBL manteve a fakenews em seu feed de notícias.
Outra questão relevante: o choro ensandecido e as histéricas acusações de censura fizeram com que o MBL buscasse uma rede social alternativa para divulgar seus boletins: o Whatsapp. Será que eles sabem que a rede também é de propriedade do stalinista Zuckerberg[8]?
O fato é que o dono do Facebook, apesar da gritaria do MBL, pouco tem de esquerdista, como mostram essas duas[9] excelentes matérias[10] da revista Piauí sobre a forma pragmática com que gere sua empresa conforme os desígnios dos anunciantes e diante da pressão do oligopólio da mídia comercial dos EUA representada por gente da envergadura de Rupert Murdoch, dono dos gigantes Fox eThe Wall Street Journal (é óbvio que Murdoch e sua turma, como bons capitalistas, querem qualquer coisa menos se submeter aos riscos da livre-iniciativa).
E mesmo que Zuckerberg fosse um marxista-leninista-maoísta-guevarista, a rede é dele. Se um dia acordar com a vontade de pôr em seu layout Pablo Vittar dançando Macarena ao som de MC Loma, os dogmas liberais ensinados pelo professor Friedman dizem que não há o que fazer a não ser curtir e se acostumar com essa nova interface ou sair da rede em caso de insatisfação. O problema é que estes ensinamentos, de modo muito conveniente, não foram assimilados não só pelos integrantes do MBL, mas também pelo super-empreendedor-que-cresceu-com-dinheiro-do-Estado Flávio Rocha[11], que também ficou pistola em razão do desaparecimento da página do Brasil 200, movimento por ele encabeçado e que tem como principal bandeira o retorno do pacto colonial no Brasil.
O melhor de todo esse imbróglio, contudo, é que o choro do MBL acaba por se somar ao caminhão de exemplos de como suas ideias bolorentas não conseguem sobreviver a dez segundos de oxigênio. “Nossas ações são as melhores interpretações de nossos pensamentos”, afirmou Locke. Os pensamentos do MBL, como mostra sua prática, ainda não se adaptaram ao que veio depois de 1789.
Gustavo Freire Barbosa é Advogado, mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
O MBL não consegue sobreviver em um liberalismo meia-boca do Brasil. Não entendo quando pregam um capitalismo sem intervenção do Estado na economia como nos EUA.
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