ter, 10/07/2018 - 18:07
Atualizado em 11/07/2018 - 17:58
O Brasil da dissimulação: uma reflexão sobre Neymar e Sérgio Moro
por Leonardo Avritzer
Neymar incomoda o Brasil. A pergunta sobre o motivo do incômodo
produz uma resposta: porque ele rompe com o paradigma do outro país
criado pelo futebol brasileiro nos anos 50 e 60. Existem dois Brasis,
aquele das práticas reais e aquele que nós gostamos de mostrar para
fora, o país da igualdade racial e do fair play. Desde o final dos anos
50, quando o Brasil se sagrou pela primeira vez, campeão de uma Copa do
Mundo, um outro país apresentou-se ao mundo. Ao invés do país do cada um
por si, ou do último país que aboliu a escravidão e massacra a
população negra diuturnamente nas favelas e nas prisões, o Brasil passou
a ter uma nova imagem, a do futebol. Ali, brancos e negros jogam juntos
e o que vale é a ideia do coletivo. Nenhum futebol é mais coletivo do
que o do Brasil tocando a bola na frente da área do adversário. Gostamos
de lembrar como Gérson, Zico, Sócrates e Ronaldinho Gaúcho faziam isso.
É essa imagem que o futebol brasileiro desperta no mundo, a contra
imagem do país desigual e pouco democrático que agora deu um passo à
frente ao apresentar ao mundo um sistema judicial que não respeita nem
as regras estabelecidas por ele mesmo. Ninguém melhor para expressar o
que os brasileiros gostariam de ser do que um Garrincha, um Zico ou um
Pelé, porque eles jogavam futebol por paixão e privilegiavam o fair
play.
Neymar rompe com esta imagem desde que despontou no futebol porque ao
invés de projetar para fora a imagem popular do bom e ingênuo
brasileiro, ele incorpora as práticas das elites e fornece visibilidade
para elas. Já na sua transferência do Santos para o Barcelona vimos esta
faceta do Neymar. Ninguém sabe como a transação foi feita. No Brasil
ela foi de um jeito e na Espanha de outro, uma prática aliás muito
parecida com o recente escândalo dos doleiros apurado pela operação
Cambio Desligo. Neymar também foi recentemente autuado pela receita
federal por fazer o que toda membro da elite local faz. Ele transformou
parte dos seus rendimentos como jogador em direitos de imagem alocados
em uma empresa devido ao diferencial entre os impostos pagos pelas
pessoas físicas e jurídicas no Brasil. Autuado pela receita ele
conseguiu se safar da mesma maneira que grandes empresários o fazem.
Assim, Neymar incomoda a elite brasileira porque ele faz de forma aberta
e escancarada o que ela faz de forma simulada.
Todo mundo sabe qual é a dissimulação de Neymar na Copa da Rússia:
ele cai na área, grita, finge que apanhou e no final coleta alguns
benefícios extras para o seu time. Mas poucos percebem que esta
dissimulação está também presente na grande tragédia brasileira do
momento, a investida de Sérgio Moro contra o candidato líder nas
pesquisas eleitorais para presidente. Sérgio Moro é um simulador, finge
que é juiz imparcial enquanto implanta os vetos da elite a membros do
sistema político. Sérgio Moro encontrou-se com Aécio em público e
mostrou uma enorme intimidade com ele, mas negou que fossem amigos.
Argumentou que encontrou com Aécio porque a “Isto É” reuniu os dois.
Sérgio Moro tirou fotos no jantar de gala com João Dória em Nova York,
mas também negou que fossem amigos. Segundo ele, havia muita gente
convidada pela câmara de comércio Brasil EUA e Dória estava lá. Sérgio
Moro desrespeita o STF desde os primeiros momentos da operação Lava
Jato, mas nega que o faça. Quando o caldo entorna ele diz: este juiz
pede respeitosamente escusas. Por fim, Sérgio Moro depois de argumentar
que tinha foro em relação ao ex-presidente devido a ligação do caso com a
Petrobrás negou nos embargos impetrados pelo ex-presidente a relação do
caso com a Petrobras. Assim, Sérgio Moro agrada a elite brasileira
porque ele faz de forma dissimulada o que a elite pede de forma
escancarada: a punição do ex-presidente Lula e sua interdição política
independentemente das regras do estado de direito ou do direito penal.
Nestes últimos meses Neymar e Sérgio Moro tiveram problemas. Os
problemas de Moro são conhecidos. Apesar da enorme pressão midiática
sobre o S.T.F. o respaldo que a corte lhe dá revendo inclusive o padrão
histórico do direito penal brasileiro começa a esfacelar a própria
corte. Moro foi derrotado três vezes pelo STF nas últimas semanas. Na
discussão sobre as conduções coercitivas ele sofreu uma forte derrota já
que a Lava Jato utilizou o instrumento agora declarado inconstitucional
mais de 150 vezes. Moro também foi derrotado na decisão de libertação
de José Dirceu que mostra que sua única vitória na questão da prisão em
segunda instância é parcial e pode ser revertida. Finalmente, Moro levou
um pito do ministro Dias Tóffoli na semana passada ao tentar intervir
em uma execução penal que não está ligada a sua vara. O desgaste de Moro
vem do mesmo lugar que o desgaste de Neymar, da visibilidade constante
de atos de legalidade duvidosa que botam em questão a imparcialidade do
juiz. O desgaste de Neymar aumentou com o VAR (vídeo assistante referee)
que permitiu que os lances simulados fossem visualizados e criticados.
Dia 08 de julho domingo foi o dia do VAR de Sérgio Moro, o campeão da
dissimulação da neutralidade judicial no país. Moro acordou em Portugal
com a notícia que o desembargador plantonista do Tribunal Regional
Federal da 4ª região havia dado um despacho favorável em um habeas
corpus a favor do ex-presidente Lula. Foi então que ele resolveu reagir
sem nenhuma simulação. De férias e sem ser o juiz da execução penal, ele
escreveu um despacho contra a decisão do seu superior hierárquico. Vale
a pena examinar o conteúdo do despacho que é mais uma vez um claro
desrespeito às regras da hierarquia judicial que alguns acreditam
estarem vigentes no nosso país.. Diz Moro, “... este juiz (no caso
Rogério Favreto) assim como não tem poderes de ordenar a prisão do
paciente, não tem poderes de ordenar a sua soltura.”. Assim, vemos de
forma agora não dissimulada a posição de Sérgio Moro de se colocar como
julgador e avaliador das instâncias judiciais acima dele. Se, até o
momento, ele o fez de forma dissimulada agora o faz de forma aberta
determinando (sic) que um desembargador é “absolutamente incompetente”
em relação à decisão tomada. Tivesse o judiciário brasileiro uma
organização hierárquica como a da Fifa, o que não é pedir demais, Moro
certamente não seria escalado para mais nenhum jogo. A pergunta, no
entanto, é: o juiz ator e dissimulador continuará julgando o seu réu
preferido e tratando-o como sua propriedade ou o judiciário brasileiro
irá perceber que o fim da dissimulação deve coincidir com o fim do jogo?
Leonardo Avritzer - Cientista Político e professor da UFMG. Autor do livro "Impasses da Democracia no Brasil".
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