qua, 27/06/2018 - 09:58
O Nazismo de esquerda ou o argumento do vesgo
por Fernando Horta
Em uma Democracia, os espaços em que se pode ouvir os candidatos ao o maior cargo da nação deveriam ser sagrados. Deveriam ...
O programa “Roda Viva” pulou na frente e se propôs a fazer programas
em que os pré-candidatos seriam ouvidos e teríamos uma melhor
perspectiva sobre o conjunto de ideias, planos, posicionamentos de quem
se predispõe e recebe apoio para se candidatar ao cargo de presidente –
ou presidenta – da República.
No caso de Manuela D’Avila, tudo o que não se conseguiu fazer foi
“ouvir” a candidata. Se com Ciro e Boulos as bancadas do programa tinham
sido de péssima qualidade, com Manuela não só pioraram, como
adicionaram-se novos ingredientes. Não sei quem foi o iluminado que
acreditou que chamar um coordenador de campanha de Bolsonaro seria uma
boa opção, ou quem foi que deu o aval para um rapaz que se diz
“economista e filósofo” acreditasse que reunia condições necessárias
para estar ali. Mesmo as duas mulheres chamadas para o programa eram
sofríveis. Machistas, mal informadas, malformadas e uma série de outros
problemas que me levariam o texto todo a mencionar. O intuito,
certamente, caro leitor, não é este.
No meio do festival de besteiras, ignorâncias, preconceitos,
machismo, grosserias (de todas as partes, incluindo da própria Manuela
que, em certo momento, partiu também para o ad hominem) sobra muito
pouco do programa. Em determinados momentos eu pensei que estava
assistindo um debate de DCE da História. Me formei na UFRGS e presenciei
debates na conhecida “Toca” com muito mais qualidade do que os
entabulados no programa citado.
Uma coisa que está cansando a todos nós, que estudamos a fundo o
tema, é o argumento do vesgo de falar que o “nazismo era de esquerda”.
Me interessa acabar com este absurdo. O argumento vem das obras sobre
história e política escritas por Hayek. O economista austríaco emigrado
para os EUA criou uma nova definição para “direita” e “esquerda”.
Registre-se que Hayek é um economista normal, sem qualquer ponta do
brilhantismo de ideias de outros ganhadores do prêmio Nobel. Quando
Hayek ganhou (1974), ele estava esquecido e só o fez porque o conselho
de escolha do Nobel tinha indicado premiação para Gunnar Myrdal, um
economista sueco que tinha estudado a fundo as diferenças econômicas e
sociais entre as populações brancas e negras dentro dos EUA. Myrdal
afirmava que o crescimento econômico de países ricos e pobres não se dá
de forma conjunta, não se dá de forma semelhante e que poderiam, em
muitos casos, serem excludentes. Com países pobres sendo colocados na
posição de fornecedores de matéria prima barata eternamente.
Na década de 70, os trabalhos de Myrdal justificavam por outros meios
uma parte da crítica marxista sobre o capitalismo. E Myrdal não era
“comunista”, nem “comedor de criancinha”. Quando o concelho do Nobel de
Economia escolheu Myrdal, os EUA entraram em campo não permitindo que
ele ganhasse. O concelho recrudesceu e a saída foi um prêmio
“repartido”. Os EUA indicariam um nome e o concelho indicaria Myrdal.
Hayek foi desencavado do esquecimento imposto, inclusive, pela própria
Escola de Chicago, exatamente porque seus estudos sustentavam que apenas
em ambientes descentralizados e com liberdade as escolhas econômicas
dos agentes, tomadas como resultante, atingiriam o nível ótimo e seriam
coletivamente benéficas ao conjunto da sociedade.
Pois é esta figura soturna, contestada, comum e conservadora que
inventa uma nova forma de dividir o mundo em “esquerda e direita”, logo
após a segunda guerra. Para Hayek a diferença seria entre “coletivistas”
e “individualistas”. Todas as ideias que defendessem qualquer noção de
que o coletivo traria melhores resultados do que as ações livres
individuais (auto-interessadas) seriam de “esquerda” e toda teoria ou
ideia que defendesse o mérito da liberdade individual seria de
“direita”. Baseado nisto, Hayek atacava a URSS no seu conhecido livro “O
caminho para a servidão”, ao mesmo tempo que afirmava a superioridade
dos EUA e seu “capitalismo individualista”
O argumento de Hayek não convenceu a quase ninguém na academia, mas o
governo norte-americano achou maravilhoso. Imprimiu milhões do seus
livros e os distribuiu pelo mundo afora. Fez isto também como Hannah
Arendt, George Orwell e Boris Parternak.
Acontece que os jovens apedeutas que se informam por vídeos no
youtube não leram Hayek. E por não lerem Hayek tornaram um argumento
ruim (o original de Hayek) numa peça insustentável de
anti-intelectualismo tacanho. Segundo os textos originais escritos em
inglês para serem repetidos pelos “liberais” da Terra de Vera Cruz, tudo
que defendia o “coletivismo” era de esquerda. O nazismo era “coletivo”,
então o nazismo é de esquerda.
Ocorre que mesmo Hayek, em sua tacanhice, fazia diferenciação entre
“coletivo” e “individual” através da visualização DA AÇÃO DO SUJEITO.
Defendia Hayek que os sujeitos são os portadores da força política e se
eles hipotecam esta força política dentro de um sujeito coletivo que
age, então temos uma política “de esquerda”. O argumento de Hayek era
contra os sindicatos e partidos de esquerda dentro dos EUA. Foi muito
usado no Macarthismo.
Onde o argumento falha? Falha porque TODA AÇÃO POLÍTICA é sempre
coletiva. Se os agentes hipotecam sua ação política e o fazem para dar
força ao Partido Comunista dos EUA ou para o Partido Republicano, fazem
exatamente a mesma coisa. Tentar dividir o mundo em “coletivistas” e
“individualistas” é impossível do ponto de vista prático. A própria
democracia exige que nós hipotequemos nossa vontade política a quem
ganhou a eleição (ou deveria ser assim). Será que todos os que elegeram
Trump e se submetem a obedecer às decisões por ele tomadas são “de
esquerda”? É claro que não.
O argumento não faz sentido nem sequer do ponto de vista econômico.
Criou-se um erro imenso – politicamente importante para o neoliberalismo
– de opor mercado e estado como se eles fossem antípodas. Ocorre que
não existe mercado sem Estado. Não existe, nem nunca existiu. Não existe
propriedade privada (no sentido econômico) sem Estado. Não existiu
industrialização sem estado. Ou os jovens apedeutas acham que a
Inglaterra se industrializou no século XVIII a partir dos gênios da
física e da economia como James Watt (inventor da máquina à vapor) e
Edmund Cartwright (inventor do tear mecânico)?
(Apenas para fins de informação, Cartwright morreu na pobreza e Watt
não ficou rico com seu invento. Como ocorre de forma muito comum no
capitalismo, os inventores e criadores das ideias não são os que se
beneficiam financeiramente delas.)
A Inglaterra se industrializou porque o seu Estado na época obrigou
os ingleses a saírem do campo e irem mendigar trabalho nas cidades
(Enclosures). A Inglaterra se industrializou e enriqueceu porque o seu
governo criou “Leis contra a vadiagem”, prendendo, açoitando e até
matando quem fosse pego sem trabalhar ou sem ir à Igreja. A Inglaterra
se industrializou, ficou rica e pode acumular imensas partes de terra
pelo mundo porque seu Estado criou uma marinha de Guerra e uma Marinha
mercante capazes de subjugar nações inteiras obrigando a elas destruírem
suas indústrias nacionais e comprarem produtos dos ingleses.
Se você duvida dê uma pesquisada nas “Guerras do Ópio”, na “Política
de Portas Abertas” para a China ou mesmo em como os produtos ingleses
chegaram no Brasil antes da Família Real Portuguesa e destruíram
qualquer traço de desenvolvimento econômico nacional.
Não há capitalismo sem Estado. O que os liberais defendem é que o
Estado seja só para eles. Polícia para proteger a propriedade, juízes
para encarcerar opositores políticos e cobrar dívidas e diplomatas para
negociarem internacionalmente. E só. Este é o verdadeiro “estado
mínimo”.
Mas a questão central é: o nazismo era de esquerda?
E a resposta é não.
O nazismo defendia o capitalismo. Apenas não concordava com o
capitalismo transnacional financeiro. Empresas como Bayer, Thyssen,
Krupp, Hugo Boss, IBM, Hoechst entre outras, lucraram muito durante o
regime nazista.
O nazismo nunca defendeu qualquer ideia de “revolução” para o
proletariado. Chamava-se “Nacional socialista” exatamente porque, como
disse Hitler em seu Mein Kampf, era preciso “tomar” o termo “socialista”
dos marxistas. Para Hitler, os trabalhadores deveriam estar organizados
e trabalhando para a “grande pátria”, exatamente como fazem as abelhas
ou as formigas. A sociedade nazista defendia um operariado dócil à
propriedade privada e cumpridor dos “seus deveres”. Sem vagabundagem e
preguiça.
Em nada esta noção se assemelha aos escritos de Marx e Lênin. Para os
fundadores do pensamento socialista científico era dever da classe
operária se levantar contra a propriedade privada. O proletariado
deveria formar a “consciência de classe” que em nada tinha a ver com
qualquer ideia de “pátria” ou “nação”. Daí a instituição criada pelos
comunistas chamar-se “internacional socialista”. Segundo Marx, o
nacionalismo seria um véu que dificultava a visão do proletariado e
colocava proletários alemães, por exemplo, a odiarem os proletários
russos e ambos entrarem em guerra para proteger a burguesia alemã e
russa.
Enquanto o nazismo dizia que qualquer dissenso dentro de uma
sociedade deveria ser suprimido porque as diferenças enfraqueciam o
Estado, Marx defendia que a “a luta de classes é o motor da história”.
Para um, o conflito interno deve ser extirpado (nazismo), para o outro, o
conflito interno é o que faz a humanidade progredir (marxismo). Para os
nazistas as diferenças sociais são importantes para manter a ordem e
que cada indivíduo saiba o seu “papel” na sociedade, tal qual um corpo.
Para o marxismo as diferenças sociais devem ser erradicadas e são a
verdadeira causa da estagnação social, política, cultural e mesmo
econômica da sociedade.
É claro que eu entendo que uma pessoa que só lê a capa e as orelhas
de um livro ache que “nacional-socialismo” e “internacional socialismo”
sejam “parecidos”, afinal só tem o “in” de diferente. A mesma pessoa
deve achar que “peixe-boi” pasta embaixo d’água. Talvez até dê leite,
como o famoso “Ornitorrinco da Amazônia” descoberto por Bolsonaro.
O que eu não consigo entender é como ignorantes que pensam assim se
acham no direito de interromperem Manuela mais de 80 vezes para
demonstrar não apenas seu machismo, mas também seu completo despreparo.
Este argumento do vesgo, que olha para a direita pensando ver a
esquerda, é uma demonstração clara da ignorância destampada pelo golpe.
Se bem que em tempos de “a terra é plana”, “menos constituição, mais
bíblia”, pastores que retiram a aorta e o coração de fiéis nos cultos,
“soldadas de cristo” marchando com roupa camuflada e gente confundindo a
bandeira do Japão com dominação comunista no Brasil, Hayek e suas
inconsistências chegam a ser um “biscoito fino” na boca de banguela.
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