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sexta-feira, 29 de março de 2019

“Não me arrependo de nada”, por Gil Alessi.

Araújo em frente ao seu quadro favorito, 'A caça às raposas'
Araújo em frente ao seu quadro favorito, 'A caça às raposas'



O procurador da Justiça Militar aposentado Durval Ayrton Moura de Araújo, de 99 anos, se considera um homem de fé. A imponente capela localizada logo na entrada de sua casa, com a imagem de Nossa Senhora e um crucifixo de aço, se projeta sobre os visitantes que entram na residência. Parece ser testemunho da religiosidade deste homem hoje franzino, de voz pausada e problemas de locomoção. Mas os familiares e vítimas da ditadura militar e procuradores do Ministério Público Federal apontam no capitão da reserva um comportamento muito distante dos valores cristãos nos anos de chumbo: sua caneta transformava mentiras em verdades. De acordo com denúncias e testemunhos, as ações do procurador ajudaram a encobrir centenas de crimes como tortura e assassinato.
Do jornalista Vladimir Herzog, um dos casos mais emblemáticos da ditadura brasileira, ao militante Olavo Hansen, ambos mortos sob tortura, Araújo recomendou arquivamento de processos e endossou a versão oficial de suicídio — uma praxe comum nos anos de repressão. Ele era, segundo reportagens da época, um “expoente máximo da linha dura na Justiça Militar". O procurador aposentado recebeu a reportagem do EL PAÍS nos dias 26 e 28 de março em sua residência num dos bairros mais caros de São Paulo, e falou sobre seu papel na ditadura: “Eu estava integrado [no aparato militar]. Não me arrependo de nada, prestei relevantes serviços ao país e ao Ministério Público Militar”.
Nascido em Cuiabá, Mato Grosso, Araújo ingressou no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva em 1943, onde se formou capitão. Cursou Direito na Universidade de São Paulo, tendo ingressado no Ministério Público “por volta de 1945”. Logo adotou o ideário anticomunista característico do período da Guerra Fria. “A revolução [termo usado por ele para designar o golpe] de 64 não foi um golpe e nem foi contra a lei. Foi um grito da sociedade, as Forças Armadas apenas ecoaram o desejo da sociedade civil”, diz.
A capela na entrada da casa de Araújo.
A capela na entrada da casa de Araújo.

Responsável por boa parte dos processos que iam parar na 2ª Auditoria de Guerra, em São Paulo, ele nega ter tomado conhecimento de casos de tortura. "Eu não participei nem fiquei sabendo de nenhum caso concreto sobre isso. Dizem que havia, mas eu não sei", afirma. Mas o papel de Araújo na ocultação dos crimes cometidos pelos militares começou a vir à tona após a redemocratização e contam outra história.
Questionado sobre o caso de Herzog, morto sob tortura dentro do Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) e cujo inquérito ele foi designado a supervisionar em 1975, o procurador franze a sobrancelha. “Estive no Instituto Médico Legal, vi o cadáver e também fotografias do corpo dentro da cela. As imagens mostravam que ele havia se enforcado com o cinto. Me convenci de que se tratava de suicídio”, afirmou. Mais adiante ele justifica os motivos do jornalista: "Ele teria se suicidado porque delatou companheiros. Teve uma crise de consciência”. Ao EL PAÍS, ele aproveitou ainda para criticar a alteração nos registros oficiais, feito após anos de luta dos filhos do jornalista que conseguiram, em 2013, o reconhecimento de que Herzog foi morto mediante tortura: "A família queria mover ação [contra o Estado], tinha interesse financeiro".
“Eu apresentei uma denúncia contra o presidente João Goulart por incentivar greves e desordens entre os trabalhadores”
A versão em que ele acredita não tem eco mais no mundo. No ano passado, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro por crime de lesa humanidade pelo assassinato de Herzog, que não era militante político. Apesar de admitir para a reportagem que “em todo movimento existem excessos”, Araújo é categórico quando indagado se denunciou algum militar por estes excessos: “Os militares que denunciei eram contra a revolução de 64”. O grosso de suas denúncias eram “militantes comunistas”. “Cheguei a pedir a pena de morte para nove militantes de esquerda”, explica. Dentre eles, integrantes do grupo de Carlos Lamarca. Todos teriam participado em ações que terminaram com agentes da ditadura mortos. “No final o Superior Tribunal Militar converteu as penas em prisão”, lamenta.
Três décadas após o término da ditadura, outro importante caso arquivado no currículo do procurador veio à tona. Em 30 de outubro de 2018, ele foi denunciado pelo Ministério Público Federal pelo crime de prevaricação — que ocorre quando um servidor público deixa de cumprir sua função por motivos pessoais. Ele teria se omitido “em seu dever legal de apurar as torturas sofridas por Olavo Hansen, assim como a verdadeira causa da morte da vítima”, escreveu o procurador Andrey Borges de Mendonça. E teria feito isso “visando satisfazer sentimento pessoal, consistente na manutenção do regime militar, a ocultação das torturas e mortes do regime e, ainda, beneficiar-se pessoalmente, com promoções e homenagens pessoais”.
A história de Hansen guarda semelhança com dezenas de outros casos do período. Ele foi preso durante um ato de comemoração ao Dia do Trabalhador em 1º de maio de 1970 na Vila Maria, zona norte de São Paulo, e morreu no Hospital Militar da 2ª Região, no Cambuci. Ele não resistiu a mais de uma semana de torturas no Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo, que incluíram horas no pau de arara, choques, queimaduras com cigarros e a cadeira do dragão. No laudo necroscópico foram notados diversos hematomas — inclusive na cabeça. Em algumas dessas sessões de suplício os choques eram aplicados com tamanha intensidade que deixaram queimaduras na pele do peito sobre o coração, que também constavam no relatório pós-morte.
Na tentativa de acobertar o crime as autoridades falaram que Hansen cometeu suicídio. Ele teria morrido por falência renal em decorrência da ingestão de veneno que ele teria levado para o cárcere. E foi aí que Araújo moveu sua caneta para transformar mentiras em verdade. “Tudo faz crer que o investigado, na ocasião de ser preso, portava alguma quantidade desse veneno Paration, ou já viesse sofrendo de um processo crônico de envenenamento que lhe causou a insuficiência renal, cujo quadro apresentou antes de ser removido para o Hospital militar, onde veio a falecer”, escreveu à época. Ao EL PAÍS, ele disse que o pedido de arquivamento foi feito por achar "que o processo não tinha cabimento", mas frisou não se recordar "de detalhes" do caso.
Araújo durante entrevista ao EL PAÍS
Araújo durante entrevista ao EL PAÍS

Sobre o parecer de Araújo, a denúncia do MPF diz o seguinte: “Pouco mais de três meses depois de instaurado o inquérito foi arquivado, sem qualquer apuração efetiva e com a absurda conclusão de suicídio. Sem requisitar qualquer diligência efetiva e sem sequer mencionar as diversas evidências de tortura”. No final, a denúncia do MPF contra Araújo teve o mesmo destino que o de dezenas de outras movidas contra torturadores e burocratas do regime militar: foi arquivada pelo juiz. Apesar de crimes contra a humanidade como a tortura não serem passíveis de anistia segundo tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, o Supremo Tribunal Federal segue decidindo não rever a Lei de Anistia, que serve de salvo conduto legal para os responsáveis. Em fevereiro de 2018, a procuradora-geral Raquel Dodge pediu ao STF que reabrisse o caso do ex-deputado Rubens Paiva, morto pelo regime em 1971, mas a corte até agora não pautou o tema, numa situação que destoa de países como a Argentina, onde torturadores e assassinos que tomaram parte na Junta Militar foram processados e presos.
“Tudo faz crer que o investigado portava veneno ou já viesse sofrendo de envenenamento que lhe causou a insuficiência renal, cujo quadro apresentou antes de falecer”

Promoções e Bolsonaro

A recompensa pelos serviços prestados por Araújo ao regime vinha na forma de promoções dentro do aparato jurídico da repressão. Segundo consta no texto do MPF, após arquivar as investigações do caso Hansen, “Araújo foi promovido e homenageado por diversas autoridades”. “Foi agraciado, inclusive, com a Medalha do Pacificador, premiação tradicionalmente concedida àqueles que contribuíram para os crimes contra a humanidade durante o período da ditadura militar”, escreve o procurador (o presidente Jair Bolsonaro, por exemplo, recebeu a condecoração neste ano).
O próprio Araújo fez questão de mostrar à reportagem as diversas medalhas e honrarias na parede de seu escritório, orgulhoso de sua carreira "anticomunista" mesmo antes do golpe de 1964. “Eu apresentei uma denúncia contra o presidente João Goulart por incentivar greves e desordens entre os trabalhadores alguns meses antes da revolução”, diz ele. “Ele queria transformar o Brasil em uma República socialista”. A consequência veio dias depois com um pedido de afastamento assinado pelo então procurador-geral, Ivo d'Aquino Fonseca. "Eu fiquei um mês inteiro escondido no Guarujá, com medo da repressão do Governo", diz. "Meus amigos me chamaram de louco por denunciar meu chefe".
Araújo só retornaria ao cargo meses depois, já com os militares no poder, para construir uma trajetória de destaque, com o convívio com nomes importantes nas engrenagens de repressão do regime, como o delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury, considerado o criador dos esquadrões da morte, torturador de dezenas de militantes e responsável pela morte de Carlos Marighella, entre outros. O procurador conta que em 1º de maio de 1979 estava em seu barco no litoral norte de São Paulo à espera de um amigo com quem faria um passeio de lancha. O barco do colega se aproximou e Araújo pôde ver Fleury. "Ele ia passar para o meu barco, mas teve um ataque, caiu na água e morreu", conta Araújo. Sobre a atuação de Fleury, o procurador se resume a dizer que "ele tinha fama de ser um delegado rígido".
Em meio às memórias, Araújo só se anima quando fala sobre o presidente Bolsonaro, admirador da ditadura militar e que tem um torturador como herói declarado. "É o meu candidato, meu presidente".  Conclui: "Com ele o revanchismo da esquerda fica mais longe".

Bolsonaro manda festejar o crime, por Eliane Brum.

Bolsonaro manda festejar o crime

Ao determinar a comemoração do golpe militar de 1964, o antipresidente busca manter o ódio ativo e barrar qualquer possibilidade de justiça






Jair Bolsonaro ditadura militar
Bolsonaro bate continência aos militares. AP


O próximo domingo, 31 de março, marca 55 anos do golpe militar de 1964. Em nenhum outro momento depois da retomada da democracia essa data encontrou o Brasil sob tanta tensão quanto neste ano. A memória da ditadura está sob ataque. E uma tentativa de fraudar a história, apagando os crimes cometidos pelos agentes do Estado, está em curso. Não mais como uma ofensiva pelos subterrâneos, que nunca cessou de existir, mas como ato de governo, o que faz toda a diferença. Toda.
Jair Bolsonaro (PSL) já determinou “comemorações devidas” nos quartéis. No 31 de março passado, quando ainda era só candidato a candidato, ele publicou um vídeo no Facebook: as imagens o exibiam estourando um rojão em frente ao Ministério da Defesa, com uma faixa agradecendo os militares “por não terem permitido que o Brasil se transformasse em Cuba”. “O 7 de Setembro nos deu a independência e o 31 de Março, a liberdade”, afirmou.
Sim, o atual presidente defende que a tomada do poder pela força pelos militares, deixando o Brasil sem eleições diretas para presidente de 1964 a 1989; rasgando a Constituição e estabelecendo a censura; obrigando alguns dos melhores quadros do Brasil a amargar o exílio; prendendo, sequestrando e torturando, inclusive crianças, e matando opositores é motivo de comemoração. E, como presidente da República, determinou que os crimes contra a humanidade, portanto imprescritíveis, que já deveriam ter sido devidamente punidos, sejam agora comemorados oficialmente pelas Forças Armadas.

É possível o Brasil comemorar oficialmente a tortura e o assassinato de civis e seguir reconhecido como uma democracia?
Parem de ler agora. E pensem no que significa para um país comemorar o sequestro, a tortura e o assassinato de civis por agentes do Estado, assim como o que significa comemorar um golpe infligido por parte das Forças Armadas. É possível isso acontecer, como ato de Governo, e o Brasil seguir reconhecido como uma democracia?
Não. Simplesmente não é possível. Bolsonaro, é preciso dizer, nunca fingiu ser o que não é. Há vídeos dele dizendo que os militares mataram foi pouco. “Tinham que ter matado pelo menos uns 30 mil” e “se morrerem inocentes tudo bem”, afirma num deles. Seu herói declarado, Carlos Alberto Brilhante Ustra, é um torturador, reconhecido pela justiça brasileira como torturador, que chegou a levar crianças para ver os pais nus e arrebentados. Bolsonaro, quando candidato, ameaçou mandar opositores para a “ponta da praia”, referindo-se a uma base da Marinha usada como local de tortura e desova de cadáveres pelo regime de exceção. Disse também que faria uma “faxina” e que os opositores de seu Governo ou “vão para fora ou vão para a cadeia”.
Pelo menos três opositores já afirmaram publicamente que foram obrigados a deixar o Brasil por ameaças de morte. Polícia, Ministério Público e judiciário se mostraram incapazes de protegê-los e garantir a sua segurança. Nesta área, Bolsonaro está fazendo exatamente o que disse que faria. Ele nunca deu motivos para que a população duvide do que diz que fará com os opositores.

O que as instituições vão fazer diante do anúncio de Bolsonaro? Apequenar-se, como de hábito?
A questão, agora, é o que as instituições vão fazer com o anúncio de Bolsonaro, apresentado pelo seu porta-voz, general Otávio Rêgo Barros. É possível ainda esperar algo das instituições amedrontadas, quando não coniventes? Como esperar algo quando o Supremo Tribunal Federal é presidido por Dias Toffoli, que no ano passado corrompeu a história ao declarar que o que aconteceu em 1964 e cassou os direitos da população brasileira foi um “movimento”, não um golpe?
A Defensoria Pública da União e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão já se manifestaram. Mas ainda é pouco. E ainda é tímido, diante da enormidade do que significa comemorar o crime como ato de Governo. Não apenas um crime comum, mas aquele que é considerado crime contra a humanidade. A Comissão da Verdade concluiu que a ditadura matou ou desapareceu com 434 suspeitos de dissidência política e com mais de 8.000 indígenas. Entre 30 e 50 mil pessoas foram torturadas.
Se as instituições e a sociedade brasileiras assistirem apáticas ao presidente, Governo e Forças Armadas comemorarem o golpe militar que sequestrou a democracia por 21 anos e deixou um rastro de mais de 200 pessoas desaparecidas, cujos pais e filhos não têm sequer um corpo para enterrar, alcançaremos um outro nível de nosso trajetória acelerada rumo ao autoritarismo. Daí em diante, qualquer pessoa que ousar dizer que esse país vive numa democracia estará desrespeitando a inteligência e a dignidade de uma nação inteira. Daí em diante, qual será o limite para aqueles que fazem apologia do crime ocupando cargos públicos? Qual será o limite para um presidente que faz golden shower na lei?
Uma pesquisa do Ibope mostrou que Bolsonaro já é o presidente mais impopular em início de primeiro mandato desde 1995. Os 89 milhões de brasileiros que não votaram em Bolsonaro, seja porque votaram no candidato de oposição, seja porque se abstiveram de votar ou votaram branco ou nulo, somados ao expressivo contingente que já se arrependeu do voto no capitão reformado, terá que compreender que a luta pela democracia é difícil – e não pode ser terceirizada. É isso. Ou aceitar que a exceção, que já se infiltrou no cotidiano e avança rapidamente, siga tomando conta da vida até o ponto em que já se tenha perdido inclusive o direito aos fatos, como Bolsonaro e os militares pretendem neste 31 de Março.

Bolsonaro e suas milícias digitais criaram a autoverdade, mas ela só será imposta a um país inteiro se a população se submeter a ela
Não queiram viver num país em que a autoverdade, aquela que dá a cada um a prerrogativa de inventar seus próprios fatos, impere. Bolsonaro e suas milícias digitais criaram a autoverdade, mas ela só será imposta a um país inteiro se a população brasileira se submeter a ela. Afirmar que o golpe de 1964 não foi um golpe é mentira de quem ainda teme responder pelos crimes que cometeu, como seus colegas responderam em países que construíram democracias mais fortes e onde a população conhece a sua história. Não há terror maior do que ser submetido a uma realidade sem lastro nos fatos, uma narrativa construída por perversos. O corpo de cada um passa a pertencer inteiramente aos carcereiros.
Bolsonaro precisa manter o país queimando em ódio. Essa foi sua estratégia para ser eleito, essa segue sendo a sua estratégia para se manter no poder. Ele não tem outra. Se deixar de ser o incendiário que é e virar presidente, ele se arrisca a perder sua popularidade. Sua estratégia é governar apenas para as suas milícias, capazes de manter o terror, parte delas somente por diversão.

Bolsonaro tornou-se o antipresidente: aquele que boicota seu próprio programa e enfraquece seu próprio ministério
Depois de ser o candidato “antissistema”, Bolsonaro é agora o antipresidente. Esta novidade, a do antipresidente, é inédita no Brasil. O antipresidente Bolsonaro é aquele que boicota seu próprio programa e enfraquece seu próprio ministério, mantendo, também dentro do Governo, como definiu o jornalista Afonso Benites, a guerra do todos contra todos.
Bolsonaro só pode existir num país mergulhado numa guerra interna. Então, trata de alimentar essa guerra. A determinação oficial de comemorar o golpe de 1964 é parte dessa estratégia. Vamos ver o quanto os generais estrelados do seu governo são capazes de enxergar a casca de banana. Ou se, ao contrário, escolherão deslizar por ela apenas como desagravo aos anos em que ficaram acuados, temendo que o Brasil finalmente fizesse justiça, julgando os crimes da ditadura como fizeram os países vizinhos.
O atual presidente do Brasil é o mesmo político que, em 2009, botou um cartaz na porta do seu gabinete: “Desaparecidos do Araguaia. Quem procura osso é cachorro”. A imagem era a de um cachorro com um osso atravessado entre os dentes. Na época, uma década atrás, o ato de Bolsonaro era noticiado com o aposto: “o único parlamentar do Congresso que defende abertamente a ditadura”. Não mais, como é possível constatar.
A frase foi lembrada por manifestantes no Chile, na semana passada. Os chilenos protestavam contra a visita de Bolsonaro ao seu país e queriam despachá-lo imediatamente de volta para casa. Essa casa é o Brasil, onde defensores da ditadura não só são aceitos como também são eleitos e chamados de “mito”.
Os chilenos, que mandaram seus ditadores e torturadores para a cadeia, consideraram inaceitável que um defensor da ditadura fosse recebido pelo presidente Sebastián Piñera. Deputados chilenos pediram que Bolsonaro fosse declarado “persona non grata”. O presidente do Senado, Jaime Quintana Leal, recusou-se comparecer a um almoço em homenagem ao brasileiro. “Admiradores de Pinochet não são bem vindos no Chile”, afirmou. Bolsonaro já disse no passado que o general ditador Augusto Pinochet “fez o que devia ter feito”. Ou seja: assassinar 3.000 civis.
Diante dos protestos, Bolsonaro afirmou: “Protestos assim existem onde quer que eu vá, mas o importante é que, no meu país, fui eleito por milhares de brasileiros”. Milhões, já que devemos respeitar os números. Para os brasileiros que o elegeram, a sugestão de que os ossos das mais de 200 pessoas desaparecidas do regime estão na boca de um cachorro foi – e continua sendo – aceitável. Não sentem nenhuma empatia pelos pais, mães, maridos, esposas e filhos que não têm sequer um túmulo onde chorar suas perdas. E que foram torturados por essa imagem de absoluto desrespeito. Mostram-se incapazes de compreender que um dia poderão ser os ossos de suas mães ou de seus filhos na boca do cachorro. Já os chilenos têm espanto. E têm vergonha. Vergonha por nós que aceitamos o inaceitável.
Sebastián Piñera, um presidente de direita, buscou manter distância das declarações pró-ditadura de Bolsonaro. “Essas frases são tremendamente infelizes”, afirmou. Sua posição política, como prefere, é assim definida por ele: “centro-direita mais diversa, mais tolerante, mais moderna e sintonizada com a cidadania”.
A parcela dos brasileiros que se declara “antiesquerdista” precisa compreender algo com urgência. O ponto do bolsonarismo não é ser de esquerda ou ser de direita. O que Bolsonaro faz seguidamente é apologia ao crime e incitação à violência. Isso não tem nada a ver com ser de esquerda ou ser de direita. Uma pessoa de direita, mas com decência e respeito à lei, não faz apologia ao crime nem incitação à violência. Uma pessoa de esquerda, mas com decência e respeito à lei, também não faz apologia ao crime nem incitação à violência.

Não se trata de esquerda ou de direita, mas de apologia ao crime e incitação à violência
O que Bolsonaro pratica é de outra ordem – e não é do jogo democrático. É essa diferença que o presidente chileno, reconhecidamente de direita, fez questão de marcar antes de ser contaminado pela truculência de uma ideologia com a qual não se identifica. No Brasil, infelizmente, parte da direita tem aceitado o inaceitável e demora a perceber que pagará caro por isso.
Os brasileiros adoecem também de apatia. Só assim para explicar como o ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, pode fazer apologia do crime duas vezes numa só semana, assim como ameaçar e chantagear uma nação inteira, e rigorosamente nada acontecer. Ao defender a reforma da Previdência, o ministro de Bolsonaro afirmou: “O Chile lá atrás teve que dar um banho de sangue para aprovar princípios macroeconômicos”.
Os chilenos se revoltaram. Ivan Flores, presidente da Câmara dos Deputados do Chile, afirmou que as declarações de Onyx são "um desatino sem paralelo" e uma grave ofensa às vítimas da ditadura de Pinochet. “A menção deste porta-voz do presidente Bolsonaro, um personagem importante do Governo brasileiro, a um ‘banho de sangue’ no Chile, é uma afronta a todas as pessoas que perderam familiares, a todos que sofreram com as violações de direitos humanos”. O parlamentar, que também se recusou a almoçar com Bolsonaro, afirmou que acreditava jamais "ter experimentado algo parecido" antes.
Os brasileiros não se ofendem. Convivem. À direita e à esquerda, a população tem se submetido à administração do ódio praticada pelo bolsonarismo. É esta a maior derrota. Não para a direita ou para a esquerda, mas para a civilização, para que qualquer um possa dar bom dia para o vizinho sem temer ser agredido. Ou para que um estudante possa ir à escola e ter certeza que vai sair dela vivo.

À direita e à esquerda, a população tem se submetido à administração do ódio praticada pelo bolsonarismo
A cada agressão do presidente ou de sua turma, um espasmo. E outra agressão. E outro espasmo. E tudo vai se banalizando. O que é uma anomalia vira normal. Bolsonaro é sintoma dessa normalização da exceção que é muito anterior a ele. Ele soube crescer e se tornar útil dentro dela e a ampliou a níveis inéditos. Ele e sua turma sabem também usar a deformação da democracia brasileira a seu favor e, ao governar pela administração do ódio, justificar tanto a incompetência demonstrada nos primeiros três meses no poder quanto criar inimigos para se manter necessários ao país. Enquanto não arranjarem uma guerra externa, vão mantendo a guerra viva aqui dentro.
O discurso dos pesos e contrapesos é bonito, soa bem nos salões. Parece até funcionar razoavelmente bem em alguns países. No Brasil, porém, as instituições já demonstraram ser incapazes de proteger a democracia. Bolsonaro, que se elegeu fazendo apologia ao crime e incitando o ódio às minorias, é a prova mais enfática da fragilidade das instituições.
A oposição, por sua vez, submeteu-se ao jogo de guerra do bolsonarismo e parece estar dominada por ele. Como a população, a oposição parece só conseguir reagir com outro espasmo. E reagir sem organização mínima, ocupada com suas próprias brigas internas. A esquerda, e também a direita que não é bandida, precisam responder com projetos, precisam convencer as pessoas que sua ideia é melhor para a vida, precisam mostrar qual é a diferença.

A oposição está dominada pelo jogo de guerra do bolsonarismo: só sabe reagir
Como apontou a filósofa Tatiana Roque, em entrevista a este jornal, é preciso contrapor à reforma da Previdência de Bolsonaro uma outra reforma da Previdência que reforme o que precisa ser reformado, sem tornar a vida dos mais pobres ainda pior. Não adianta ficar apenas gritando contra a reforma da Previdência. É preciso, sim, fazer uma reforma da Previdência. Mas não essa que está aí. Então qual? O que as pessoas querem saber é como a vida pode ficar melhor. Parte da crise global das democracias se deve à incapacidade de democratas e de governos democráticos de tornar melhor a vida da população ou de apontar claramente como podem fazer isso.
Com instituições fracas e uma oposição sem projeto, diante de um governo em que o mais moderado é um general que já defendeu um autogolpe com o apoio das Forças Armadas, a barbárie dos dias se acentua. Tudo indica que vai piorar. Porque está piorando. A incompetência explícita do bolsonarismo faz com que a necessidade de ampliar a violência “contra todos os que não são iguais a mim”, com o objetivo de ampliar a sensação de guerra interna, também aumente. Sem projeto consistente, o governo que aí está só pode apostar no ódio para se manter. E vai seguir apostando. O ódio não é o oposto do amor, mas sim da justiça. É justiça que Bolsonaro não quer.

O ódio não é o oposto do amor, mas sim da justiça
Os brasileiros vão precisar compreender que a democracia terá que ser defendida por cada um, se colocando junto com o outro. Às vezes só dá mesmo para gritar. Mas é preciso fazer um esforço maior para responder com projetos, com propostas, com ação que não seja apenas uma reação, mas uma alternativa que permita a vida e promova vida no espaço público. Será assim, ou não será. Não é que tenha outro. Só tem você mesmo. Com o outro.
Podemos aprender algo com a artista russa Nadya Tolokonnikova .“A ação não deve ser uma reação, mas uma criação”, ela escreveu. Nadya é uma das integrantes da banda Pussy Riot que foi presa em 2012 pelo Governo do déspota Vladimir Putin. Entre as músicas tocadas em suas intervenções de ação direta, em espaços públicos de Moscou, uma delas era: “Putin se mijou na calça”. Não há nada que os déspotas temem mais do que aqueles que riem deles. Para manter o medo e o ódio ativos é preciso banir o riso e o humor. Nadya aprendeu a rir de seus carcereiros nos dois anos em que ficou na prisão por ousar confrontar o autoritarismo do regime, provocando um movimento de solidariedade global.

“A ação não deve ser uma reação, mas uma criação”
Na abertura do livro Pussy Riot, um guia punk para o ativismo político, a artista de 29 anos parece estar escrevendo para os brasileiros que vivem sob a administração do ódio de Bolsonaro e de suas milícias digitais. O livro, traduzido para o português por Jamille Pinheiro Dias e Breno Longhi, com ilustrações de Roman Durov, será lançado no Brasil em 22 de abril, pela editora Ubu. Antes, a banda fará dois shows no Brasil, em 19 (Recife) e 20 (São Paulo).
Nadya se refere a Donald Trump, que tem Bolsonaro como um pet exótico do sul do mundo:
“Quando Trump ganhou a eleição presidencial, as pessoas ficaram profundamente chocadas. Na verdade, o que aconteceu no dia 8 de novembro de 2016 foi a ruptura do paradigma do contrato social – a ideia de que podíamos viver confortavelmente sem sujar as mãos nos envolvendo com política, de que bastava um voto a cada quatro anos (ou voto nenhum: o pressuposto de que se está acima da política) para resguardar as próprias liberdades. Essa crença – a de que as instituições estão aqui para nos proteger e zelar por nós, e de que não precisamos nos preocupar em proteger essas instituições da corrupção, de lobistas, dos monopólios, do controle corporativo e governamental sobre nossos dados pessoais – veio abaixo. Nós terceirizávamos a luta política da mesma forma que terceirizávamos as vagas de trabalho mais mal remuneradas e as guerras.

“Não dá para continuar vivendo achando que é possível não ‘sujar as mãos com a política’ ou acreditando estar acima da política”
Os sistemas atuais não conseguiram oferecer respostas aos cidadãos, de modo que as pessoas começaram a buscar soluções fora do espectro político dominante. Essas insatisfações estão agora sendo usadas por políticos de direita, xenófobos, oportunistas, corruptos e cínicos. Os mesmos que ajudaram a criar e a agravar esse cenário vêm agora nos oferecer salvação. Esse é o jogo deles. É a mesma estratégia de cortar os fundos de um programa ou uma agência reguladora dos quais eles queiram se livrar e depois usar a ineficácia resultante disso como prova de que essas iniciativas ou órgãos precisam ser desfeitos”.
Basta trocar a data para 28 de outubro de 2018, dia da eleição de Bolsonaro, e o nome do presidente. E a análise segue com alta precisão, ainda que Bolsonaro seja muito mais autoritário do que Trump e as instituições brasileiras muito mais frágeis do que as americanas.
Bolsonaro é tão tosco que até mesmo a ultradireitista Fox News achou melhor tornar explícito que não compactuava com o pensamento do antipresidente brasileiro: afirmou que os comentários de Bolsonaro sobre a comunidade LGBTQI eram “incompatíveis com os valores americanos”. Ao entrevistar o antipresidente brasileiro, perguntou diretamente sobre o assassinato de Marielle Franco e a ligação da bolsomonarquia com as milícias cariocas. Ou seja: Bolsonaro é um constrangimento mesmo nos redutos mais direitistas do país que mais ama, os Estados Unidos. Seu suposto nacionalismo, como a visita aos Estados Unidos provou, é de chorar de rir.
Em outro trecho do livro, a artista também parece falar diretamente com os brasileiros que pensam em desistir ou acham que já chegaram ao seu limite: “As condenações de ativistas políticos foram naturalizadas na opinião pública. Quando pesadelos se tornam constantes, as pessoas param de agir. É assim que a apatia e a indiferença triunfam”. Em seguida, finca as unhas: “As dificuldades e os fracassos não são razão suficiente para renunciarmos ao ativismo. Sim, porque as mudanças sociais e políticas não se dão de forma linear. Às vezes é preciso lutar por anos para obter um resultado mínimo”.

Quando pesadelos se tornam constantes, as pessoas param de agir: a apatia e a indiferença triunfam
A autoridade de suas palavras é conferida por um dos mais fortes ativismos deste século. Quase dois anos de prisão e trabalhos forçados não a fizeram recuar nem perder a ingenuidade, para ela um valor ético e também estético. “Se tivéssemos que apontar um inimigo, eu diria que nosso maior inimigo é a apatia. Se não estivéssemos de mãos atadas pela ideia de que é impossível mudar as coisas, seríamos capazes de alcançar resultados fantásticos. O que nos falta é a confiança de que as instituições podem realmente funcionar melhor e de que nós somos capazes de fazê-las funcionar melhor. As pessoas não acreditam no enorme poder que elas têm. Este poder que, por algum motivo, não usam”.
Neste momento, a novíssima geração, a que nasceu depois da geração das integrantes da Pussy Riot, está criando um movimento global espantoso. A juventude pelo clima, inspirada por uma sueca de 16 anos com diagnóstico de Asperger, colocou 1,5 milhão de estudantes secundaristas nas ruas de cidades do mundo em 15 de março para denunciar a falta de ação dos governos diante da crise climática. Oito meses antes, nada disso existia. Em agosto de 2018, Greta Thunberg fez greve da escola e se postou sozinha diante do parlamento sueco. Agora, o movimento é uma potência.
Brasileiros de todas as idades precisam aprender, pra ontem, com as gerações mais novas. É isso ou seguir condenado a assistir à queda de braço entre Jair Bolsonaro e Rodrigo Maia. Sério que é este o ponto alto do debate nacional, antes de vir outro do mesmo nível ou pior? É este mesmo o nosso destino? Sério mesmo que o maior crítico da militarização do governo é Olavo de Carvalho, por motivos bem outros em sua calculada disputa de poder? E é ele o maior crítico porque parte dos que poderiam criticar a militarização do governo por motivos legítimos e urgentes começam a achar que Hamilton Mourão, o vice general, é uma graça? É assim mesmo que vamos viver, esperando o que virá depois, caso exista um depois?
Como diz a Pussy Riot Nadya Tolokonnikova, “a esperança virá dos desesperados”. Espero que ela tenha razão.
. Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum

Celebrar o golpe representa uma derrota para a democracia, por Clóvis Gruner.


Bolsonaro durante visita ao Chile, em 23 de março.
Bolsonaro durante visita ao Chile, em 23 de março. REUTERS



O presidente Jair Bolsonaro determinou nesta segunda-feira que as Forças Armadas façam as “comemorações devidas” ao golpe de 64, que completa 55 anos no próximo dia 01 de abril. Temendo reações negativas em um ambiente político já bastante polarizado, a cúpula militar orientou que as “comemorações devidas” sejam realizadas intramuros, limitadas aos quartéis e batalhões.
A decisão não pegou ninguém de surpresa. Embora nunca tenha feito muito pelos militares em seus quase 30 anos como deputado (a bem da verdade, bastaria dizer: “embora nunca tenho feito muito em seus quase 30 anos como deputado”), Bolsonaro foi bastante hábil em mobilizar e organizar um circuito de afetos baseados principalmente no esquecimento das violências passadas a informar a indiferença cotidiana para com as violências presentes.
Sua ascensão meteórica à Presidência, não casualmente, ganhou impulso depois de seu voto pela abertura do processo de impeachment contra Dilma Rousseff, quando prestou homenagens ao coronel Brilhante Ustra, responsável por estuprar, torturar e assassinar, nos porões do DOI-CODI em São Paulo, opositores da ditadura. São igualmente conhecidas as menções elogiosas a ditadores de países vizinhos, como o paraguaio Alfredo Stroessner e o chileno Augusto Pinochet. O primeiro, um pedófilo; o segundo, responsável pelo desvio de 13 milhões de dólares, depositados em mais de 100 contas em bancos americanos.
Juntas, as ditaduras da América do Sul mataram aproximadamente 40 mil pessoas, entre outras inúmeras atrocidades, aí inclusas crianças sendo presas, torturadas, obrigadas a assistir o sofrimento de seus pais e mães, ou sequestradas e adotadas por famílias simpáticas aos governos. Mas se nos vizinhos sua memória desperta repúdio, aqui um presidente eleito pelo voto direto, coisa proibida nos anos de chumbo, desqualifica e fragiliza, aberta e propositadamente, o pouco de democracia que conquistamos.
Em seu anúncio, o porta-voz da Presidência afirmou que Bolsonaro “não considera o 31 de março de 1964 golpe militar”, mas uma medida para conter “o perigo que o país estava vivenciando naquele momento”. O argumento não é novo. Consagrou-se em alguns círculos, e não apenas militares, a versão de que o golpe fez-se para evitar outro. Trata-se, obviamente, de uma narrativa que interessa aos responsáveis pelas duas décadas de ditadura, mas que não se sustenta em nenhuma das muitas evidências históricas sobre o período.
Em entrevista concedida ao CPDOC da FGV, o historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira fala das muitas “provocações” que antecederam o 1º de abril, essenciais para criar um clima de animosidade e conflito necessário para justificar a tomada de poder pela direita civil e militar. E embora admita a tendência à radicalização de algumas lideranças ligadas a João Goulart, é enfático quanto à inexistência de qualquer condição ou pretensão golpista, dentro e fora do governo. Havia, por certo, um ambiente de conflito, em parte decorrente da Guerra Fria e do fantasma da ameaça soviética, que ajudaram a alimentar a propaganda e a atmosfera golpista.
A realidade, no entanto, era mais complexa. Os principais grupos de esquerda, como o PCB, eram reformistas: falavam e defendiam as reformas agrária e de base; reivindicavam o nacionalismo contra o capital estrangeiro; produziam uma cultura que se pretendia “popular” como um meio de “desalienar” as massas demasiadamente influenciadas pelos padrões culturais tidos por imperialistas, etc... Mas a ameaça de um “golpe comunista” é apenas mais uma mentira dos artífices da ditadura. Repetidas tantas vezes, ainda há quem nela acredite. Mas isso não a torna verdade.
Por outro lado, abundam evidências sobre os desmandos e a violência da ditadura, embora não apenas, principalmente depois de decretado o AI-5, que conferiu ao regime poderes quase ilimitados. Com o Ato Institucional, escancararam-se as portas à censura. Músicas, livros, filmes e peças teatrais foram proibidos às centenas nos dez anos em que vigorou, cuja capilaridade inquisitorial se estendeu também à imprensa.
Mas ainda mais grave que o verniz de legalidade à repressão política, o AI-5 ampliou e legitimou as inúmeras ações ilegais da ditadura. Com o seu endurecimento, disseminaram-se as muitas arbitrariedades governamentais, inclusos intimidações, sequestros, prisões, torturas e o assassinato de inimigos políticos. A repressão feroz que se abateu sobre toda e qualquer forma de oposição, tem sido recentemente relativizada aqui e acolá, inclusive por alguns historiadores.
Mas não há relativização possível quando se trata da garantia dos direitos humanos fundamentais, sucessivamente desrespeitados nos porões e casas da morte onde a ditadura humilhou, torturou e assassinou centenas, nem sempre e não apenas militantes que pegaram em armas contra o governo. A ditadura não perdoou ninguém e tratou a todos, indiscriminadamente, como criminosos e inimigos.

Democracia e esquecimento

Em Como a democracia chega ao fim, o cientista político David Runciman parte da eleição de Donald Trump nos EUA, para analisar o que chama de “versão caricatural do fascismo”. A insatisfação e a desconfiança com a democracia, geradas principalmente pela crise econômica, propiciaram a ascensão de um líder populista, que se apresentou aos eleitores como um outsider antissistêmico. Sem um programa claro, Trump foi eleito oferecendo soluções fáceis para problemas complexos, somando-se a isso a produção e proliferação serial de fake news, o preconceito contra minorias e o anti-intelectualismo.
Há semelhanças com o caso brasileiro, mas as diferenças chamam mais a atenção. Bolsonaro conjuga elementos do fascismo histórico — a irracionalidade, o personalismo, o elogio da força física e da violência, a moralização da política e a demonização de supostos inimigos, por exemplo —, a formas de autoritarismo cultivadas no terreno fértil da história nacional: a escravidão, experiência estruturante do nosso racismo; a violência estatal contra movimentos sociais; a cordialidade, raiz de nossa baixa tolerância à democracia; e o esquecimento da ditadura.
O crescimento da liderança de Bolsonaro, que de uma excrescência política chegou à Presidência da República, se explica em parte por esse movimento de adesão aos afetos autoritários que, no caso brasileiro, bebe na fonte de uma política sistemática de esquecimento que vigora desde a “abertura lenta, gradual e segura” de Ernesto Geisel, na segunda metade dos anos de 1970, e estabeleceu o marco no interior do qual faríamos a passagem para a democracia.
A Lei de Anistia, de 1979, desempenhou nesse processo papel singular. Se na Argentina e no Uruguai, por exemplo, as respectivas legislações que anistiavam os crimes das ditaduras foram derrogadas, no Brasil não: somos o único país que perdoou os ditadores e seus asseclas sem exigir deles o reconhecimento dos seus crimes. Entre outras coisas, esse ordenamento jurídico limita a própria ação do Estado no cumprimento de suas obrigações em casos de violações dos direitos humanos.
Dos quatro deveres que lhe competem — oferta de reparações; investigar, processar e punir os violadores; revelar a verdade às vitimas, seus familiares e à sociedade; e afastar os criminosos de órgãos relacionados ao exercício da lei e outras posições de autoridade —, mal cumprimos o primeiro. Mesmo a Comissão Nacional da Verdade não mudou substancialmente isso, porque o fundamental restou por fazer: nenhum dos governos eleitos a partir de 1989 enfrentou o imenso edifício de olvido sobre o qual se estrutura parte de nossa cultura política contemporânea.
No último livro publicado ainda em vida, A memória, a história, o esquecimento, o filósofo francês Paul Ricoeur contrapõe ao que considera as dimensões positivas do esquecimento, seus efeitos potencialmente danosos como gesto forçado de apagamento da lembrança, o que ele denomina de “memória impedida”. É esse impedimento que fundamenta aquelas políticas que, como a nossa, confundem anistia com amnésia e tomam essa como critério para associar aquela ao perdão.
O equívoco não é apenas semântico — anistia não significa necessariamente perdão nem, tampouco, esquecimento —, mas político. Desde a transição para a Nova República, há uma interdição, um silenciamento a impedir que tratemos a Lei de Anistia e as políticas de esquecimento daí derivadas pelo que elas são: um obstáculo à efetivação de uma cultura democrática sensível, entre outras coisas, aos muitos riscos a que está exposta, e aos restos de uma ditadura que, mesmo institucionalmente, continuam a ameaçá-la.
As democracias modernas, nos ensina David Runciman, morrem por dentro. A eleição de líderes populistas autoritários, argumenta, é o primeiro passo para um caminho de difícil retorno: quando abrimos mão de nossos direitos e liberdades, ou simplesmente votamos insensíveis ao fato de que indivíduos e grupos serão forçosamente privados deles, porque parte de “minorias” ou porque vistos como “inimigos políticos”, estamos legitimando com nossas escolhas o fascismo em uma de suas muitas versões coevas.
Se a elaboração do passado, e particularmente do passado traumático, pressupõe a eliminação das condições que o permitiram, a anistia concedida pela ditadura criou as condições que seguem autorizando a indiferença para com a desigualdade, a violência de gênero, o racismo e, mesmo, a indiferença para com o terrorismo de Estado, ativo principalmente nas periferias e prisões. Passados 55 anos, a eleição de Bolsonaro em 2018 e sua decisão de comemorar o golpe representam simbólica e, espero, provisoriamente, a derrota da democracia e a vitória da memória e do sentimento autoritário.
Clóvis Gruner é historiador e professor do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba.

segunda-feira, 25 de março de 2019

Jean Wyllys: 'Marielle vai derrubar Bolsonaro'

 

A pergunta que a sociedade brasileira se faz nas redes sociais, na grande imprensa nacional e internacional é – quem mandou matar Marielle e porque a matou?


Após a revelação das identidades dos assassinos da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) a frase que Jean Wyllys (PSOL-RJ) repetiu diversas vezes em Portugal se torna cada vez mais importante. A pergunta que a sociedade brasileira se faz nas redes sociais, na grande imprensa nacional e internacional é – quem mandou matar Marielle e porque a matou?
Vamos aos indícios. Ronnie Lessa, sargento reformado da Polícia Militar, que de acordo com a polícia, é o autor dos 13 tiros que assassinaram Marielle Franco e Anderson Gomes, em março de 2018, foi preso em sua casa em um luxuoso condomínio na Avenida Lúcio Costa, Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, na madrugada de 12 de março último. O local é o mesmo onde morou Jair Bolsonaro. Ronnie Lessa, além da casa no mesmo condomínio de Bolsonaro, é proprietário de uma mansão – e uma lancha – no condomínio Portogalo, em Angra dos Reis.
O outro criminoso, que dirigiu o carro, Élcio Vieira de Queiroz, aparece com Bolsonaro em foto publicada por ele no Facebook. Élcio foi expulso da PM em 2016, depois de preso, em 2011, na Operação Guilhotina, da Polícia Federal, que investigou o envolvimento de policiais militares com o tráfico de drogas e com as milícias. Mas o assunto não se limita à vizinhança.
Apareceu também o primeiro vínculo concreto entre a família de Jair Bolsonaro e a de Ronnie Lessa: um dos filhos de Bolsonaro namorou a filha de Lessa. O fato foi confirmado pelo delegado responsável pela Divisão de Homicídios da capital fluminense, Giniton Lages, durante a entrevista coletiva sobre a prisão do PM reformado Lessa e do outro assassino, o ex-PM Élcio Vieira de Queiroz. Visto que Bolsonaro e Lessa moram no mesmo condomínio na Barra da Tijuca, no Rio, pergunta-se que tipo de relação se estabeleceu entre as duas famílias já que seus filhos mantinham relações intimas.
Em matéria publicada em março na revista Piauí, são apontados outros indícios mais antigos da ligação do clã Bolsonaro com as milícias, como as menções honrosas propostas em 2003 pelo deputado estadual Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro ao major Adriano Nóbrega, que é apontado como um dos líderes do Escritório do Crime. Nóbrega havia sido apresentado a Flávio por um antigo colega do Bope, Fabrício Queiroz – o ex-assessor do filho de Jair Bolsonaro que está no centro do escândalo envolvendo repasses suspeitos de dinheiro para Flávio na Alerj. Em 2005, Nóbrega ganhou outra homenagem, também promovida por Flávio: a Medalha Tiradentes, a mais alta honraria da Alerj.
Um ano depois da morte de Marielle, as investigações chegaram aos dois assassinos, mas a questão central ainda não foi desvendada – o mandante do crime. Há uma tendência de dar uma conotação de ódio às investigações da execução da vereadora, excluindo os aspectos políticos. Segundo o deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ), falar em crime de ódio é inaceitável, não faz o menor sentido, pois o crime é político. Segundo Freixo “é preciso mostrar quem é o grupo político interessado na morte de Marielle. Será uma mera coincidência que o executor de Marielle seja vizinho de Jair Bolsonaro no condomínio da Barra da Tijuca? Por isso é fundamental sabermos qual grupo político é capaz de, em pleno século XXI, mandar eliminar uma autoridade pública que tenha cruzado seu caminho. Precisamos descobrir quem são os mandantes da execução de Marielle Franco. As prisões dos executores de Marielle e Anderson são importantes e tardias. É inaceitável que se demore um ano para termos alguma resposta. É um passo decisivo, mas o caso não está resolvido. É fundamental saber quem mandou matar e qual a motivação”.
Para Guilherme Boulos (PSOL-SP), “as prisões de hoje são um passo importante para saber quem matou Marielle e Anderson. É preciso investigar se o fato de um dos presos ser vizinho de Bolsonaro é coincidência ou não. De todo modo, segue a questão: quem mandou matar Marielle?”. Neste contexto, o exílio de Jean Wyllys e da ex-candidata a governadora do Rio de Janeiro, Marcia Tiburi (PT-RJ), se enquadram nas mesmas motivações do assassinato de Marielle. Ambos sofreram violentas ameaças após a eleição de Bolsonaro. Diante deste quadro tornou-se extremamente perigoso continuarem morando no Brasil.
A perda do Estado Democrático de Direito no Brasil vem se agravando desde o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff e a prisão ilegal de Lula, líder nas pesquisas nas eleições de 2018. Marcia Tiburi afirmou em recente entrevista em Pittsburgh, Estados Unidos, que as graves violações dos direitos humanos vêm se agravando intensamente no país. A eleição de Bolsonaro teve consequências na impossibilidade de vários ativistas políticos continuarem a viver no Brasil. Tiburi acrescentou que “o papel da denúncia internacional se tornou relevante. Muita gente que está fora do Brasil não sabe o que está acontecendo e nós temos que falar. E eu vou começar”.
Jean Wyllys começou na Alemanha a denunciar a grave situação política brasileira. Ele fez sua primeira aparição no Festival de Cinema de Berlim e, de lá, veio para Portugal. A convite do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, dirigido pelo sociólogo Boaventura de Souza Santos, foi recebido por centenas de estudantes, intelectuais e artistas e vários coletivos de movimentos sociais. Participou do seminário “Discurso de ódio e fake news de extrema-direita e seus impactos nos modos de vida das minorias sociais, étnicas e religiosas”, em 26 de fevereiro de 2019.

Mesmo sendo recebido com muito respeito por um grande e caloroso público, ocorreu uma tentativa isolada de um militante de extrema-direita que tentou lhe atingir com ovos, mas foi impedido prontamente por um segurança. No dia 27, em Lisboa, Wyllys foi ao Parlamento português a convite de José Manuel Pureza, vice-presidente da casa e deputado do Bloco de Esquerda, sempre acompanhado pela deputada Joana Mortágua, do mesmo partido. Os Jornalistas Livres tiveram acesso exclusivo a essas atividades.
No Parlamento foram realizadas três atividades consecutivas. A primeira foi o encontro com o vice-presidente da instituição. A segunda foi a reunião com deputados de diversos partidos políticos da Assembleia da Republica. A terceira foi uma entrevista coletiva à imprensa portuguesa. 
Após a sua visita ao Parlamento, Wyllys participou de uma mesa na Casa do Alentejo, ao lado do sociólogo Boaventura de Souza Santos e de Pilar del Rio, presidenta da Fundação Saramago e viúva do escritor.
Novamente ele foi recebido calorosamente por um público emocionado de brasileiros e portugueses, composto por estudantes, intelectuais, artistas, jornalistas e parlamentares. Após sua exposição e participação em debate com a plateia, Wyllys fez uma homenagem a Lula. Levantou um cartaz com a foto do ex-presidente e gritou Lula Livre!, o que foi correspondido com muita energia por todos os presentes.
As palavras de Wyllys que ecoaram na Universidade de Coimbra, no Parlamento português e na Casa do Alentejo, em Lisboa, revelam sua intuição política, que se torna cada vez mais próxima da realidade: “Marielle vai derrubar Bolsonaro”.

André Singer: Eleitores populares de Bolsonaro começam a pular do barco, por André Singer.


André Singer: Eleitores populares de Bolsonaro começam a pular do barco
Valter Campanato/Agência Brasil


 
Eleitores populares de Bolsonaro começam a pular do barco
Queda em avaliação é mais acentuada entre quem ganha de 2 a 5 salários mínimos
por André Singer, na Folha de S. Paulo
Aspecto pouco notado na queda de aprovação do governo, registrada pelo Ibope nesta semana, é a sua distribuição pela renda. Foram os eleitores populares que começaram a pular do barco bolsonariano. Possivelmente os mesmos que, no final do primeiro turno de 2018, sobretudo no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, produziram a incrível onda de extrema direita que varreu o país.
A perda de 15 pontos percentuais na avaliação positiva de Bolsonaro foi mais acentuada entre os eleitores que ganham de 2 a 5 salários mínimos (SM) de renda familiar mensal, chegando ali a um recuo de 18 pontos. Hoje apenas 35% desse segmento apoia o mandato em curso, índice que cai para 29% daqueles cujo ingresso familiar restringe-se a um SM.
Já quando a família recebe acima de cinco salários mínimos, 49% dos entrevistados gostam da administração do capitão reformado. Aqui a perda foi de apenas oito pontos em relação à posse (tinha 57% de ótimo e bom em janeiro).
Na mesma linha, o instituto de pesquisa nota o aumento da rejeição entre os moradores “que residem nas cidades das periferias brasileiras”.
Nesse segmento o índice dos que consideram ruim ou péssimo o desempenho presidencial subiu nada menos que 21 pontos no período. O Nordeste, por sua vez, abriga apenas 31% que se mostram satisfeitos.
A persistência de melhor humor no Sul, onde 41% ainda apreciam o mandato em curso, ilustra a divisão social que permeia a conjuntura, pois a região concentra os menores indicadores de pobreza.
Se a economia comandar os rumos do eleitorado, como parece provável, uma recuperação no curto prazo é difícil.
Vale lembrar que o primeiro governo Lula, por exemplo, em que pese ter demorado para produzir aquecimento do PIB, conseguiu estancar de imediato o ciclo inflacionário que herdara da etapa anterior.
Bolsonaro já pegou o leme com inflação irrelevante. Se não conseguir criar postos de trabalho e oferecer renda, continuará em baixa.
Tal contexto daria à oposição a chance de apresentar alternativas ao modelo ultraneoliberal. As eleições de 2020, sobretudo nas capitais, seriam o teste de tal embate.
Olhando o assunto do ângulo político, a prisão de Michel Temer ainda é uma incógnita.
Foi a Lava Jato que o levou ao poder, uma vez que decisiva para o impeachment de Dilma Rousseff. Depois, com a gravação de Joesley, afundou o regime emedebista e ajudou a ascensão de Bolsonaro.
Agora, com a detenção do ex-presidente, atrapalha a reforma previdenciária de Paulo Guedes e aprofunda a divisão das hostes bolsonaristas. Terá fôlego para empurrar Sergio Moro rampa acima?
André Singer é professor de ciência política da USP, ex-secretário de Imprensa da Presidência (2003-2007). É autor de “O Lulismo em Crise”.

Žižek: A eleição de Bolsonaro e a nova direita populista, por Slavo Zizek

Em entrevista exclusiva ao Blog da Boitempo, o filósofo esloveno comenta a eleição de Bolsonaro no contexto da onda global de ascensão da extrema-direita populista e provoca: “a única maneira de salvar aquilo que há de bom na tradição liberal será na base de uma política mais radical de esquerda”.

Blog da Boitempo entrevista Slavoj Žižek.

O filósofo esloveno Slavoj Žižek bateu um papo via Skype com Artur Renzo, editor do Blog da Boitempo, sobre a eleição de Bolsonaro no contexto da onda global de ascensão da extrema-direita populista e a implosão do centro político. Para ele, o desafio é saber diferenciar o sintoma de sua causa: o acontecimento-chave do mundo hoje não é o surgimento da nova direita, e sim a desintegração do grande consenso liberal capitalista ao qual ela responde. Assim, a resposta a esse fenômeno não deveria ser ensaiar um novo populismo de esquerda, nos moldes das figuras de direita que estão ganhando espaço. Mais do que nunca, a esquerda precisa manter sua vocação internacionalista para fazer frente ao capitalismo global. Maoísta de ocasião, Žižek vê na desordem da conjuntura atual uma janela de oportunidade diante da qual a esquerda deve ter a ousadia de propor uma nova visão básica da sociedade.
Quanto ao Brasil, o filósofo demonstra certa preocupação acerca da preservação de uma democracia formal no país com Bolsonaro, mas vê que a implementação de uma política de austeridade pode minar a legitimidade do novo governo e manter nas mãos da esquerda o monopólio sobre a política antiausteridade. Žižek alerta ainda para a armadilha de priorizar neste momento a composição de uma frente ampla de defesa da democracia com setores de centro e centro-direita, em vista de preservar um programa mínimo contra a ameaça posta pela extrema-direita. E provoca: “a única maneira de salvar aquilo que há de bom na tradição liberal será na base de uma política mais radical de esquerda”. Confira a tradução completa da entrevista abaixo.

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Como você situa o caso brasileiro atual, com a eleição de Jair Bolsonaro, no contexto global mais amplo, marcado pela ascensão de populismos de direita e extrema-direita em diversos países?
Até onde sei, o caso brasileiro é bastante singular. Não é como na Europa Ocidental, onde oponente não é, como no caso de vocês, um movimento relativamente honesto de esquerda. O oponente lá é simplesmente o establishment – talvez um pouco de esquerda, democrático, mas ainda assim o establishment. Na Europa Ocidental, o que está desaparecendo é a social-democracia tradicional. O que se tem é uma oposição entre aquilo que denomino o establishment liberal de esquerda (que é economicamente neoliberal mas socialmente a favor de direitos LGBT, das mulheres etc.) e esse novo populismo de direita.
No Brasil, parecia que o populismo não era principalmente um populismo de direita. Com Lula e Dilma, a esquerda havia ocupado esse espaço. Mas aqui vou traçar algumas observações que provavelmente soarão problemáticas para muitos de vocês. Não concordo com toda essa ideia de um populismo de esquerda. Está na moda defender isso na Europa Ocidental e nos Estados Unidos: por que deixar o populismo – essa modalidade engajada de política, centrada no estabelecimento de um conflito com um determinado inimigo –, por que deixar o populismo exclusivamente na mão dos direitistas? Por que não responder a ele com um populismo nosso, de esquerda?
Por motivos teóricos e práticos creio que não devamos trilhar esse caminho. Como admite Ernesto Laclau – que é o teórico do populismo –, o populismo concentrou-se em construir uma imagem clara do inimigo. É claro que, no nosso caso, os inimigos não seriam os estrangeiros, os imigrantes etc., seriam algo como as elites financeiras, a classe dominante etc. Mas o problema aqui, fundamentalmente, é que as coisas não são tão simples assim… Vejamos o caso dos Estados Unidos. É claro que o inimigo imediato é Donald Trump, mas penso ser absolutamente crucial se colocar uma pergunta mais profunda. Como diz Michael Moore, logo no início de seu novo documentário, Trump não caiu do céu. Foi com o fracasso do establishment liberal de esquerda que abriu-se espaço para o surgimento de figuras como Trump. Essa é a grande decepção. O pacto político que regulou os países desenvolvidos nas últimas décadas foi o pacto desse establishment liberal.
Jamais devemos esquecer que uma democracia (e aqui não me refiro a uma autêntica democracia do povo, mas uma simples democracia multipartidária, em que diversos partidos disputam o poder) só funciona sob o pano de fundo de certo consenso ou pacto. Você pode fazer suas escolhas, promover seus debates etc., mas somente dentro dos limites de certo pacto ou marco consensual. De forma que, por exemplo, nos Estados Unidos você tem os Republicanos e os Democratas. É verdade que eles têm suas diferenças, mas eles compartilhavam todo um conjunto de ideias e premissas básicas. O mesmo valia para a Europa Ocidental.
O que mudou agora? Dois anos atrás, você lançou uma provocação ao afirmar que a eleição de Trump seria melhor do que a de Hillary, no sentido de que poderia abrir o caminho para o surgimento de uma esquerda radical mais autêntica, livre das amarras desse grande consenso liberal representado pelo Partido Democrata. Como você avalia essa questão agora, com dois anos de Trump na Casa Branca? Você arriscaria dizer que algo parecido talvez seria aplicável para o caso brasileiro, com a eleição de Bolsonaro?
O que está ocorrendo agora com Trump é que esse pacto liberal está se desintegrando. Penso que não devemos cair na armadilha (na qual boa parte dos liberais atualmente se encontra) de pintar Trump como o grande demônio e tentar implicitamente retornar a esse pacto liberal de esquerda, Estado de bem-estar social e tal. Não! Esse pacto está perdido. Devemos aprender com Trump a aceitar essa ideia de que o velho pacto político que sustenta nossa sociedade está ruindo. E é preciso agora ter a ousadia de propor um novo pacto social, nosso, mais à esquerda – um pacto, ou, se quiser, uma visão básica da sociedade. Nesse sentido, sou maoísta. Como dizia Mao: “Tudo sob o céu está mergulhado no caos; a situação é excelente”. Com Trump, há uma grande desordem sob o céu estadunidense. Por isso, eu diria que a situação também é um pouco propícia, no sentido de que há uma abertura única para que nós, uma esquerda mais radical, possamos fazer algo. E incluo aqui não apenas Bernie Sanders, mas todas as gerações de outros democratas de esquerda mais radicais que não temem reabilitar a palavra socialismo.
Agora, essa é a imagem geral. Sobre o que ocorre no Brasil, não posso dizer que sei o suficiente. Quer dizer, eu sei que houve uma grande manipulação. A forma pela qual Bolsonaro e seus demagogos populistas de direita foram capazes de mobilizar essa eterna acusação contra Lula, Dilma e seus partidários de que eles seriam os representantes da corrupção, que eles seriam parte de um Estado não transparente, corrupto e por aí vai… Eu não conheço suficientemente a situação brasileira para opinar aqui, mas diria o seguinte: quando disse ironicamente que votaria em Trump, o que eu quis dizer era que ele seria bom, negativamente, para estilhaçar a ideologia hegemônica existente e, nesse sentido, abrir espaço para o surgimento de uma esquerda mais radical. Mas não penso que essa seja uma fórmula universal. Mesmo no caso da Europa Ocidental – porque temos um tipo diferente de Estado na Europa, muito mais centralizado –, eu jamais teria dito algo como “Vote na Marine Le Pen!”, porque com ela no poder à frente do Estado francês teríamos algo muito maior do que Trump. O Estado francês é muito mais forte e centralizado e regula num grau muito maior a vida social como um todo. Teria sido uma verdadeira catástrofe. Temo que o mesmo valha para o Brasil.
Slavoj Žižek em entrevista via Skype com Artur Renzo, editor do Blog da Boitempo.
Em seus artigos mais recentes, você resume da seguinte maneira a “pervertida situação política” da Europa: por um lado, temos a “esquerda” oficial efetivamente implementando políticas de austeridade (ao mesmo tempo que assume a pauta progressista e multiculturalista no que diz respeito aos valores) e, por outro, temos a “direita populista” de fato tomando a frente das medidas antiausteridade (e empunhando a bandeira e o discurso da xenofobia e do nacionalismo). Nesse sentido, me pergunto se a infeliz novidade que temos agora no Brasil não seria que o nosso governo eleito parece juntar o pior desses dois mundos: ele é economicamente pró-austeridade e ao mesmo tempo extremamente reacionário no que diz respeito a direitos humanos, ações afirmativas, direitos das mulheres e das minorias etc.
Isso é muito interessante! Quer dizer, se o Estado brasileiro permanecer, ao menos em algum sentido formal (no sentido corriqueiro do termo), basicamente democrático, essa situação, apesar de tudo, abre espaço para que a esquerda ao menos retenha o monopólio da política antiausteridade, por assim dizer. Porque o que faz de Trump um perigo tão grande é precisamente esse aspecto. Se você prestar atenção ao que diz Steve Bannon, ele afirma abertamente coisas como “Eu não sou pró-austeridade. O Estado deveria gastar mais com os trabalhadores”, e por aí vai. Bannon é realmente um perigo. Ele quer aumentar os impostos dos ricos a 44%, até mais. E na Europa temos ainda mais disso. Na Hungria e especialmente na Polônia (que, como você sabe, é o caso mais perigoso), o atual governo, extremamente católico, implementou uma série de medidas que nenhuma social-democracia na Europa jamais teria se atrevido a fazer: reduzir a idade de aposentadoria, elevar a previdência, melhorar a saúde pública, ampliar o apoio financeiro aos estudantes etc.
E aqui devemos ter muita cautela na análise. Dou um exemplo. Muitos dos meus amigos ficaram horrorizados quando Syriza capitulou, sabe? E eu concordo, eles não deveriam ter feito isso. Mas também não era simplesmente como se eles tivessem uma escolha. Não se tratou de uma simples traição, mas da revelação de uma necessidade mais profunda. Esse para mim foi o momento de verdade daquele processo todo. É por isso que sou muito cético quanto àquela ideia bastante em voga hoje entre certos setores da esquerda de que, da mesma forma que novos populistas como Bannon ou Trump em geral investem no nacional populismo de direita, também a esquerda deveria defender algo análogo. Não, eu não acredito que seja possível derrotar o capitalismo global jogando com cartas nacionais. Não compro essa ideia de nos retirar da União Europeia, ou o que quer que seja, para tocarmos nossa própria política nacional.1 Não se pode fazer isso. O capital global é um fenômeno internacional. A resposta a ele também terá de ser internacional.
É por isso que vejo alguns sinais progressistas em certas movimentações hoje. Você sabe que há agora um eixo – que não é um eixo do mal, mas digamos um eixo do bem – se formando: Sanders e seus democratas de esquerda nos EUA estão estabelecendo ligações com Corbyn e com o Partido Trabalhista inglês, e com alguns movimentos de esquerda como aqueles em torno de Varoufakis e similares na Europa. Precisamos permanecer – e digo que isso é mais importante hoje do que nunca – precisamos permanecer internacionalistas.
O próprio Fernando Haddad está em Nova York agora, a convite de Varoufakis, para participar do lançamento dessa frente. Uma das questões que a esquerda brasileira debate hoje no que diz respeito à organização da oposição a Bolsonaro é o seguinte: até que ponto se deve investir na criação de uma frente ampla “democrática” contra o neofascismo e a extrema direita, priorizando assim a busca por pontos de contato mínimos com setores de centro e até centro-direita contra um perigo maior; ou se, pelo contrário, ela deve radicalizar ainda mais seu discurso e seu programa pra tentar atingir maior apoio popular. Como você avalia esse dilema?
Essa é uma pergunta traiçoeira! Penso que devemos tomar muito cuidado aqui. É claro que, por motivos táticos, quando você quer barrar determinada legislação perigosa de direita, não há problema algum em estabelecer coalizões táticas com quem quer que seja. Mas eu não diria que devemos renunciar totalmente nossa visão mais radical de esquerda. Não apenas por conta de algum tipo de purismo esquerdista. Penso que não devemos jamais perder de vista que a crise à qual Bolsonaro e Trump aparecem como respostas é a crise do establishment liberal de centro.
Há coisas boas no liberalismo: liberdades humanas, direitos LGBT, direitos das mulheres etc. Mas, no longo prazo, a única maneira de redimir, de salvar aquilo que há de bom na tradição liberal será na base de uma política mais radical de esquerda. Aquilo que, por exemplo, o Partido Trabalhista está tentando fazer na Inglaterra, com Jeremy Corbyn. Não penso que devamos apostar todas as fichas na direção do “agora estamos diante de um enorme perigo e devemos todos nos unir contra os novos populistas de direita”.2 Se fizermos isso, mesmo que tenhamos êxito, só voltaríamos à situação que ensejou o nascimento do populismo de direita.
Algum recado final para seus leitores brasileiros?
Mande um salve para todos aí no Brasil. Diga a eles que estamos todos na mesma merda. O jeito é tentarmos permanecer o mais alegre que pudermos neste inferno em que vivemos!3

NOTAS
1 Tariq Ali defendeu recentemente essa posição no contexto do Brexit em entrevista a Edemilson Paraná e Gustavo Capela para o número 29 da revista da Boitempo, a Margem Esquerda. Žižek desenvolve sua crítica a essa ideia em sua coluna no Blog da Boitempo aqui. [N. E.]
2 O cientista político André Singer, organizador de As contradições do lulismo, defendeu essa posição na plenária pós-eleições convocada por Ruy Braga, com Marilena Chaui e Vladimir Safatle no dia 1º de novembro de 2018 na USP. Confira a gravação completa da intervenção dele na TV Boitempo clicando aqui. [N. E.]
3 Tradução de Artur Renzo, com colaboração de Thaisa Burani. [N. E.]

Depois de muitos pedidos, ele chegou: o livro de Žižek sobre cinema ganha nova edição, totalmente revista e ampliada! Em Lacrimae rerum: ensaios sobre cinema moderno, o filósofo esloveno propõe um estudo aprofundado das motivações de diretores renomados internacionalmente, como Krzysztof Kieślowski, Alfred Hitchcock, Andrei Tarkovski e David Lynch. Esta nova edição traz seis novos textos e análises originais sobre o cinema contemporâneo: Žižek analisa sucessos hollywoodianos recentes como “Blade runner 2049”, “Batman: O cavaleiro das trevas ressurge”, e o novo “Pantera Negra” da Marvel, além de uma análise leninista de “La La Land”.
“Os ensaios reunidos neste livro estão conectados não só pela riqueza do método, mas também pelas referências reiteradas a ideias que se manifestam em obras tão distintas quanto as de Kieslowski, os irmãos Wachowski, Hitchcock, Tarkovski e David Lynch.” — Sérgio Rizzo
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Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009), Em defesa das causas perdidas, Primeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011), Vivendo no fim dos tempos (2012), O ano em que sonhamos perigosamente (2012), Menos que nada (2013), Violência (2014),  O absoluto frágil (2015) e O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política (2016). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
Artur Renzo é editor do Blog da Boitempo, da TV Boitempo e da revista Margem Esquerda. Formado em Filosofia e em Comunicação Social com habilitação em Cinema, traduziu, entre outros, A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI (Boitempo, 2018), de David Harvey.