O procurador da Justiça Militar aposentado Durval Ayrton Moura de
Araújo, de 99 anos, se considera um homem de fé. A imponente capela
localizada logo na entrada de sua casa, com a imagem de Nossa Senhora
e um crucifixo de aço, se projeta sobre os visitantes que entram na
residência. Parece ser testemunho da religiosidade deste homem hoje
franzino, de voz pausada e problemas de locomoção. Mas os familiares e
vítimas da ditadura militar e procuradores do Ministério Público Federal
apontam no capitão da reserva um comportamento muito distante dos
valores cristãos nos anos de chumbo: sua caneta transformava mentiras em
verdades. De acordo com denúncias e testemunhos, as ações do procurador
ajudaram a encobrir centenas de crimes como tortura e assassinato.
Do jornalista Vladimir Herzog, um dos casos mais emblemáticos da ditadura brasileira, ao militante Olavo Hansen, ambos mortos sob tortura,
Araújo recomendou arquivamento de processos e endossou a versão oficial
de suicídio — uma praxe comum nos anos de repressão. Ele era, segundo
reportagens da época, um “expoente máximo da linha dura na Justiça
Militar". O procurador aposentado recebeu a reportagem do EL PAÍS nos
dias 26 e 28 de março em sua residência num dos bairros mais caros de
São Paulo, e falou sobre seu papel na ditadura: “Eu estava integrado [no
aparato militar]. Não me arrependo de nada, prestei relevantes serviços
ao país e ao Ministério Público Militar”.
Nascido em Cuiabá, Mato Grosso, Araújo ingressou no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva em 1943, onde se formou capitão. Cursou Direito na Universidade de São Paulo,
tendo ingressado no Ministério Público “por volta de 1945”. Logo adotou
o ideário anticomunista característico do período da Guerra Fria. “A revolução
[termo usado por ele para designar o golpe] de 64 não foi um golpe e
nem foi contra a lei. Foi um grito da sociedade, as Forças Armadas
apenas ecoaram o desejo da sociedade civil”, diz.
Responsável por boa parte dos processos que iam parar na 2ª Auditoria
de Guerra, em São Paulo, ele nega ter tomado conhecimento de casos de
tortura. "Eu não participei nem fiquei sabendo de nenhum caso concreto
sobre isso. Dizem que havia, mas eu não sei", afirma. Mas o papel de
Araújo na ocultação dos crimes cometidos pelos militares começou a vir à
tona após a redemocratização e contam outra história.
Questionado sobre o caso de Herzog, morto sob tortura dentro do Destacamento de Operações de Informação
- Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) e cujo inquérito ele
foi designado a supervisionar em 1975, o procurador franze a
sobrancelha. “Estive no Instituto Médico Legal, vi o cadáver e também
fotografias do corpo dentro da cela. As imagens mostravam que ele havia
se enforcado com o cinto. Me convenci de que se tratava de suicídio”,
afirmou. Mais adiante ele justifica os motivos do jornalista: "Ele teria
se suicidado porque delatou companheiros. Teve uma crise de
consciência”. Ao EL PAÍS, ele aproveitou ainda para criticar a alteração
nos registros oficiais, feito após anos de luta dos filhos do
jornalista que conseguiram, em 2013, o reconhecimento de que Herzog foi morto mediante tortura: "A família queria mover ação [contra o Estado], tinha interesse financeiro".
“Eu apresentei uma denúncia contra o presidente João Goulart por incentivar greves e desordens entre os trabalhadores”
A versão em que ele acredita não tem eco mais no mundo. No ano
passado, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado
brasileiro por crime de lesa humanidade pelo assassinato de Herzog, que
não era militante político. Apesar de admitir para a reportagem que “em
todo movimento existem excessos”, Araújo é categórico quando indagado se
denunciou algum militar por estes excessos: “Os militares que denunciei
eram contra a revolução de 64”. O grosso de suas denúncias
eram “militantes comunistas”. “Cheguei a pedir a pena de morte para nove
militantes de esquerda”, explica. Dentre eles, integrantes do grupo de Carlos Lamarca.
Todos teriam participado em ações que terminaram com agentes da
ditadura mortos. “No final o Superior Tribunal Militar converteu as
penas em prisão”, lamenta.
Três décadas após o término da ditadura, outro importante caso
arquivado no currículo do procurador veio à tona. Em 30 de outubro de
2018, ele foi denunciado pelo Ministério Público Federal pelo crime de
prevaricação — que ocorre quando um servidor público deixa de cumprir
sua função por motivos pessoais. Ele teria se omitido “em seu dever
legal de apurar as torturas sofridas por Olavo Hansen, assim como a
verdadeira causa da morte da vítima”, escreveu o procurador Andrey
Borges de Mendonça. E teria feito isso “visando satisfazer sentimento
pessoal, consistente na manutenção do regime militar, a ocultação das
torturas e mortes do regime e, ainda, beneficiar-se pessoalmente, com
promoções e homenagens pessoais”.
A história de Hansen guarda semelhança com dezenas de outros casos do
período. Ele foi preso durante um ato de comemoração ao Dia do
Trabalhador em 1º de maio de 1970 na Vila Maria, zona norte de São
Paulo, e morreu no Hospital Militar da 2ª Região, no Cambuci. Ele não
resistiu a mais de uma semana de torturas no Departamento Estadual de
Ordem Política e Social de São Paulo, que incluíram horas no pau de arara, choques, queimaduras com cigarros
e a cadeira do dragão. No laudo necroscópico foram notados diversos
hematomas — inclusive na cabeça. Em algumas dessas sessões de suplício
os choques eram aplicados com tamanha intensidade que deixaram
queimaduras na pele do peito sobre o coração, que também constavam no
relatório pós-morte.
Na tentativa de acobertar o crime as autoridades falaram que Hansen
cometeu suicídio. Ele teria morrido por falência renal em decorrência da
ingestão de veneno que ele teria levado para o cárcere. E foi aí que
Araújo moveu sua caneta para transformar mentiras em verdade. “Tudo faz
crer que o investigado, na ocasião de ser preso, portava alguma
quantidade desse veneno Paration, ou já viesse sofrendo de um
processo crônico de envenenamento que lhe causou a insuficiência renal,
cujo quadro apresentou antes de ser removido para o Hospital militar,
onde veio a falecer”, escreveu à época. Ao EL PAÍS, ele disse que o
pedido de arquivamento foi feito por achar "que o processo não tinha
cabimento", mas frisou não se recordar "de detalhes" do caso.
Sobre o parecer de Araújo, a denúncia do MPF diz o seguinte: “Pouco
mais de três meses depois de instaurado o inquérito foi arquivado, sem
qualquer apuração efetiva e com a absurda conclusão de suicídio. Sem
requisitar qualquer diligência efetiva e sem sequer mencionar as
diversas evidências de tortura”. No final, a denúncia do MPF contra
Araújo teve o mesmo destino que o de dezenas de outras movidas contra torturadores e burocratas do regime militar:
foi arquivada pelo juiz. Apesar de crimes contra a humanidade como a
tortura não serem passíveis de anistia segundo tratados internacionais
dos quais o Brasil é signatário, o Supremo Tribunal Federal segue decidindo não rever a Lei de Anistia, que serve de salvo conduto legal para os responsáveis. Em fevereiro de 2018, a procuradora-geral Raquel Dodge pediu ao STF que reabrisse o caso do ex-deputado Rubens Paiva,
morto pelo regime em 1971, mas a corte até agora não pautou o tema,
numa situação que destoa de países como a Argentina, onde torturadores e
assassinos que tomaram parte na Junta Militar foram processados e
presos.
“Tudo faz crer que o investigado portava veneno
ou já viesse sofrendo de envenenamento que lhe causou a insuficiência
renal, cujo quadro apresentou antes de falecer”
Promoções e Bolsonaro
A recompensa pelos serviços prestados por Araújo ao regime vinha na
forma de promoções dentro do aparato jurídico da repressão. Segundo
consta no texto do MPF, após arquivar as investigações do caso Hansen,
“Araújo foi promovido e homenageado por diversas autoridades”. “Foi
agraciado, inclusive, com a Medalha do Pacificador, premiação
tradicionalmente concedida àqueles que contribuíram para os crimes
contra a humanidade durante o período da ditadura militar”, escreve o
procurador (o presidente Jair Bolsonaro, por exemplo, recebeu a condecoração neste ano).
O próprio Araújo fez questão de mostrar à reportagem as diversas
medalhas e honrarias na parede de seu escritório, orgulhoso de sua
carreira "anticomunista" mesmo antes do golpe de 1964. “Eu apresentei
uma denúncia contra o presidente João Goulart por incentivar greves e desordens entre os trabalhadores alguns meses antes da revolução”,
diz ele. “Ele queria transformar o Brasil em uma República socialista”.
A consequência veio dias depois com um pedido de afastamento assinado
pelo então procurador-geral, Ivo d'Aquino Fonseca. "Eu fiquei um mês
inteiro escondido no Guarujá, com medo da repressão do Governo", diz.
"Meus amigos me chamaram de louco por denunciar meu chefe".
Araújo só retornaria ao cargo meses depois, já com os militares no
poder, para construir uma trajetória de destaque, com o convívio com
nomes importantes nas engrenagens de repressão do regime, como o
delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury, considerado o criador dos
esquadrões da morte, torturador de dezenas de militantes e responsável
pela morte de Carlos Marighella, entre outros. O procurador conta que em
1º de maio de 1979 estava em seu barco no litoral norte de São Paulo à
espera de um amigo com quem faria um passeio de lancha. O barco do
colega se aproximou e Araújo pôde ver Fleury. "Ele ia passar para o meu
barco, mas teve um ataque, caiu na água e morreu", conta Araújo. Sobre a
atuação de Fleury, o procurador se resume a dizer que "ele tinha fama
de ser um delegado rígido".
Em meio às memórias, Araújo só se anima quando fala sobre o presidente Bolsonaro, admirador da ditadura militar
e que tem um torturador como herói declarado. "É o meu candidato, meu
presidente". Conclui: "Com ele o revanchismo da esquerda fica mais
longe".
Ao
determinar a comemoração do golpe militar de 1964, o antipresidente
busca manter o ódio ativo e barrar qualquer possibilidade de justiça
O próximo domingo, 31 de março, marca 55 anos do golpe militar de 1964.
Em nenhum outro momento depois da retomada da democracia essa data
encontrou o Brasil sob tanta tensão quanto neste ano. A memória da
ditadura está sob ataque. E uma tentativa de fraudar a história,
apagando os crimes cometidos pelos agentes do Estado, está em curso. Não
mais como uma ofensiva pelos subterrâneos, que nunca cessou de existir,
mas como ato de governo, o que faz toda a diferença. Toda.
Jair Bolsonaro (PSL) já determinou “comemorações devidas” nos quartéis.
No 31 de março passado, quando ainda era só candidato a candidato, ele
publicou um vídeo no Facebook: as imagens o exibiam estourando um rojão
em frente ao Ministério da Defesa, com uma faixa agradecendo os
militares “por não terem permitido que o Brasil se transformasse em
Cuba”. “O 7 de Setembro nos deu a independência e o 31 de Março, a
liberdade”, afirmou.
Sim, o atual presidente defende que a tomada do poder pela força
pelos militares, deixando o Brasil sem eleições diretas para presidente
de 1964 a 1989; rasgando a Constituição e estabelecendo a censura;
obrigando alguns dos melhores quadros do Brasil a amargar o exílio;
prendendo, sequestrando e torturando, inclusive crianças,
e matando opositores é motivo de comemoração. E, como presidente da
República, determinou que os crimes contra a humanidade, portanto
imprescritíveis, que já deveriam ter sido devidamente punidos, sejam
agora comemorados oficialmente pelas Forças Armadas.
É possível o Brasil comemorar oficialmente a tortura e o assassinato de civis e seguir reconhecido como uma democracia?
Parem de ler agora. E pensem no que significa para um país comemorar o
sequestro, a tortura e o assassinato de civis por agentes do Estado,
assim como o que significa comemorar um golpe infligido por parte das
Forças Armadas. É possível isso acontecer, como ato de Governo, e o
Brasil seguir reconhecido como uma democracia?
Não. Simplesmente não é possível. Bolsonaro,
é preciso dizer, nunca fingiu ser o que não é. Há vídeos dele dizendo
que os militares mataram foi pouco. “Tinham que ter matado pelo menos
uns 30 mil” e “se morrerem inocentes tudo bem”, afirma num deles. Seu
herói declarado, Carlos Alberto Brilhante Ustra,
é um torturador, reconhecido pela justiça brasileira como torturador,
que chegou a levar crianças para ver os pais nus e arrebentados.
Bolsonaro, quando candidato, ameaçou mandar opositores para a “ponta da
praia”, referindo-se a uma base da Marinha usada como local de tortura e
desova de cadáveres pelo regime de exceção. Disse também que faria uma
“faxina” e que os opositores de seu Governo ou “vão para fora ou vão
para a cadeia”.
Pelo menos três opositores já afirmaram publicamente que foram
obrigados a deixar o Brasil por ameaças de morte. Polícia, Ministério
Público e judiciário se mostraram incapazes de protegê-los e garantir a
sua segurança. Nesta área, Bolsonaro está fazendo exatamente o que disse
que faria. Ele nunca deu motivos para que a população duvide do que diz
que fará com os opositores.
O que as instituições vão fazer diante do anúncio de Bolsonaro? Apequenar-se, como de hábito?
A questão, agora, é o que as instituições vão fazer com o anúncio de
Bolsonaro, apresentado pelo seu porta-voz, general Otávio Rêgo Barros. É
possível ainda esperar algo das instituições amedrontadas, quando não
coniventes? Como esperar algo quando o Supremo Tribunal Federal
é presidido por Dias Toffoli, que no ano passado corrompeu a história
ao declarar que o que aconteceu em 1964 e cassou os direitos da
população brasileira foi um “movimento”, não um golpe?
A Defensoria Pública da União e a Procuradoria Federal dos Direitos
do Cidadão já se manifestaram. Mas ainda é pouco. E ainda é tímido,
diante da enormidade do que significa comemorar o crime como ato de
Governo. Não apenas um crime comum, mas aquele que é considerado crime
contra a humanidade. A Comissão da Verdade
concluiu que a ditadura matou ou desapareceu com 434 suspeitos de
dissidência política e com mais de 8.000 indígenas. Entre 30 e 50 mil
pessoas foram torturadas.
Se as instituições e a sociedade brasileiras assistirem apáticas ao
presidente, Governo e Forças Armadas comemorarem o golpe militar que
sequestrou a democracia por 21 anos e deixou um rastro de mais de 200
pessoas desaparecidas, cujos pais e filhos não têm sequer um corpo para
enterrar, alcançaremos um outro nível de nosso trajetória acelerada rumo
ao autoritarismo. Daí em diante, qualquer pessoa que ousar dizer que
esse país vive numa democracia estará desrespeitando a inteligência e a
dignidade de uma nação inteira. Daí em diante, qual será o limite para
aqueles que fazem apologia do crime ocupando cargos públicos? Qual será o
limite para um presidente que faz golden shower na lei?
Uma pesquisa do Ibope mostrou que Bolsonaro já é o presidente mais
impopular em início de primeiro mandato desde 1995. Os 89 milhões de
brasileiros que não votaram em Bolsonaro, seja porque votaram no
candidato de oposição, seja porque se abstiveram de votar ou votaram
branco ou nulo, somados ao expressivo contingente que já se arrependeu
do voto no capitão reformado, terá que compreender que a luta pela
democracia é difícil – e não pode ser terceirizada. É isso. Ou aceitar
que a exceção, que já se infiltrou no cotidiano e avança rapidamente,
siga tomando conta da vida até o ponto em que já se tenha perdido
inclusive o direito aos fatos, como Bolsonaro e os militares pretendem
neste 31 de Março.
Bolsonaro e suas milícias digitais criaram a
autoverdade, mas ela só será imposta a um país inteiro se a população se
submeter a ela
Não queiram viver num país em que a autoverdade, aquela que dá a cada
um a prerrogativa de inventar seus próprios fatos, impere. Bolsonaro e suas milícias digitais criaram a autoverdade,
mas ela só será imposta a um país inteiro se a população brasileira se
submeter a ela. Afirmar que o golpe de 1964 não foi um golpe é mentira
de quem ainda teme responder pelos crimes que cometeu, como seus colegas
responderam em países que construíram democracias mais fortes e onde a
população conhece a sua história. Não há terror maior do que ser
submetido a uma realidade sem lastro nos fatos, uma narrativa construída
por perversos. O corpo de cada um passa a pertencer inteiramente aos
carcereiros.
Bolsonaro precisa manter o país queimando em ódio. Essa foi sua
estratégia para ser eleito, essa segue sendo a sua estratégia para se
manter no poder. Ele não tem outra. Se deixar de ser o incendiário que é
e virar presidente, ele se arrisca a perder sua popularidade. Sua
estratégia é governar apenas para as suas milícias, capazes de manter o
terror, parte delas somente por diversão.
Bolsonaro tornou-se o antipresidente: aquele que boicota seu próprio programa e enfraquece seu próprio ministério
Depois de ser o candidato “antissistema”, Bolsonaro é agora o
antipresidente. Esta novidade, a do antipresidente, é inédita no Brasil.
O antipresidente Bolsonaro é aquele que boicota seu próprio programa e
enfraquece seu próprio ministério, mantendo, também dentro do Governo,
como definiu o jornalista Afonso Benites, a guerra do todos contra todos.
Bolsonaro só pode existir num país mergulhado numa guerra interna.
Então, trata de alimentar essa guerra. A determinação oficial de
comemorar o golpe de 1964 é parte dessa estratégia. Vamos ver o quanto
os generais estrelados do seu governo são capazes de enxergar a casca de
banana. Ou se, ao contrário, escolherão deslizar por ela apenas como
desagravo aos anos em que ficaram acuados, temendo que o Brasil
finalmente fizesse justiça, julgando os crimes da ditadura como fizeram
os países vizinhos.
O atual presidente do Brasil é o mesmo político que, em 2009, botou
um cartaz na porta do seu gabinete: “Desaparecidos do Araguaia. Quem
procura osso é cachorro”. A imagem era a de um cachorro com um osso
atravessado entre os dentes. Na época, uma década atrás, o ato de
Bolsonaro era noticiado com o aposto: “o único parlamentar do Congresso
que defende abertamente a ditadura”. Não mais, como é possível
constatar.
A frase foi lembrada por manifestantes no Chile, na semana passada.
Os chilenos protestavam contra a visita de Bolsonaro ao seu país e
queriam despachá-lo imediatamente de volta para casa. Essa casa é o
Brasil, onde defensores da ditadura não só são aceitos como também são
eleitos e chamados de “mito”.
Os chilenos, que mandaram seus ditadores e torturadores para a
cadeia, consideraram inaceitável que um defensor da ditadura fosse
recebido pelo presidente Sebastián Piñera. Deputados chilenos pediram
que Bolsonaro fosse declarado “persona non grata”. O presidente do
Senado, Jaime Quintana Leal, recusou-se comparecer a um almoço em
homenagem ao brasileiro. “Admiradores de Pinochet não são bem vindos no
Chile”, afirmou. Bolsonaro já disse no passado que o general ditador
Augusto Pinochet “fez o que devia ter feito”. Ou seja: assassinar 3.000
civis.
Diante dos protestos, Bolsonaro afirmou: “Protestos assim existem
onde quer que eu vá, mas o importante é que, no meu país, fui eleito por
milhares de brasileiros”. Milhões, já que devemos respeitar os números.
Para os brasileiros que o elegeram, a sugestão de que os ossos das mais
de 200 pessoas desaparecidas do regime estão na boca de um cachorro foi
– e continua sendo – aceitável. Não sentem nenhuma empatia pelos pais,
mães, maridos, esposas e filhos que não têm sequer um túmulo onde chorar
suas perdas. E que foram torturados por essa imagem de absoluto
desrespeito. Mostram-se incapazes de compreender que um dia poderão ser
os ossos de suas mães ou de seus filhos na boca do cachorro. Já os
chilenos têm espanto. E têm vergonha. Vergonha por nós que aceitamos o
inaceitável.
Sebastián Piñera, um presidente de direita, buscou manter distância
das declarações pró-ditadura de Bolsonaro. “Essas frases são
tremendamente infelizes”, afirmou. Sua posição política, como prefere, é assim definida por ele: “centro-direita mais diversa, mais tolerante, mais moderna e sintonizada com a cidadania”.
A parcela dos brasileiros que se declara “antiesquerdista” precisa
compreender algo com urgência. O ponto do bolsonarismo não é ser de
esquerda ou ser de direita. O que Bolsonaro faz seguidamente é apologia
ao crime e incitação à violência. Isso não tem nada a ver com ser de
esquerda ou ser de direita. Uma pessoa de direita, mas com decência e
respeito à lei, não faz apologia ao crime nem incitação à violência. Uma
pessoa de esquerda, mas com decência e respeito à lei, também não faz
apologia ao crime nem incitação à violência.
Não se trata de esquerda ou de direita, mas de apologia ao crime e incitação à violência
O que Bolsonaro pratica é de outra ordem – e não é do jogo
democrático. É essa diferença que o presidente chileno, reconhecidamente
de direita, fez questão de marcar antes de ser contaminado pela
truculência de uma ideologia com a qual não se identifica. No Brasil,
infelizmente, parte da direita tem aceitado o inaceitável e demora a
perceber que pagará caro por isso.
Os brasileiros adoecem também de apatia. Só assim para explicar como o
ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, pode fazer apologia do
crime duas vezes numa só semana, assim como ameaçar e chantagear uma
nação inteira, e rigorosamente nada acontecer. Ao defender a reforma da
Previdência, o ministro de Bolsonaro afirmou: “O Chile lá atrás teve que
dar um banho de sangue para aprovar princípios macroeconômicos”.
Os chilenos se revoltaram. Ivan Flores, presidente da Câmara dos Deputados do Chile, afirmou que as declarações de Onyx são "um desatino sem paralelo"
e uma grave ofensa às vítimas da ditadura de Pinochet. “A menção deste
porta-voz do presidente Bolsonaro, um personagem importante do Governo
brasileiro, a um ‘banho de sangue’ no Chile, é uma afronta a todas as
pessoas que perderam familiares, a todos que sofreram com as violações
de direitos humanos”. O parlamentar, que também se recusou a almoçar com
Bolsonaro, afirmou que acreditava jamais "ter experimentado algo
parecido" antes.
Os brasileiros não se ofendem. Convivem. À direita e à esquerda, a população tem se submetido à administração do ódio praticada pelo bolsonarismo.
É esta a maior derrota. Não para a direita ou para a esquerda, mas para
a civilização, para que qualquer um possa dar bom dia para o vizinho
sem temer ser agredido. Ou para que um estudante possa ir à escola e ter
certeza que vai sair dela vivo.
À direita e à esquerda, a população tem se submetido à administração do ódio praticada pelo bolsonarismo
A cada agressão do presidente ou de sua turma, um espasmo. E outra
agressão. E outro espasmo. E tudo vai se banalizando. O que é uma
anomalia vira normal. Bolsonaro é sintoma dessa normalização da exceção
que é muito anterior a ele. Ele soube crescer e se tornar útil dentro
dela e a ampliou a níveis inéditos. Ele e sua turma sabem também usar a
deformação da democracia brasileira a seu favor e, ao governar pela
administração do ódio, justificar tanto a incompetência demonstrada nos
primeiros três meses no poder quanto criar inimigos para se manter
necessários ao país. Enquanto não arranjarem uma guerra externa, vão
mantendo a guerra viva aqui dentro.
O discurso dos pesos e contrapesos é bonito, soa bem nos salões.
Parece até funcionar razoavelmente bem em alguns países. No Brasil,
porém, as instituições já demonstraram ser incapazes de proteger a
democracia. Bolsonaro, que se elegeu fazendo apologia ao crime e
incitando o ódio às minorias, é a prova mais enfática da fragilidade das
instituições.
A oposição, por sua vez, submeteu-se ao jogo de guerra do
bolsonarismo e parece estar dominada por ele. Como a população, a
oposição parece só conseguir reagir com outro espasmo. E reagir sem
organização mínima, ocupada com suas próprias brigas internas. A
esquerda, e também a direita que não é bandida, precisam responder com
projetos, precisam convencer as pessoas que sua ideia é melhor para a
vida, precisam mostrar qual é a diferença.
A oposição está dominada pelo jogo de guerra do bolsonarismo: só sabe reagir
Como apontou a filósofa Tatiana Roque, em entrevista a este jornal,
é preciso contrapor à reforma da Previdência de Bolsonaro uma outra
reforma da Previdência que reforme o que precisa ser reformado, sem
tornar a vida dos mais pobres ainda pior. Não adianta ficar apenas
gritando contra a reforma da Previdência. É preciso, sim, fazer uma
reforma da Previdência. Mas não essa que está aí. Então qual? O que as
pessoas querem saber é como a vida pode ficar melhor. Parte da crise
global das democracias se deve à incapacidade de democratas e de
governos democráticos de tornar melhor a vida da população ou de apontar
claramente como podem fazer isso.
Com instituições fracas e uma oposição sem projeto, diante de um
governo em que o mais moderado é um general que já defendeu um autogolpe
com o apoio das Forças Armadas, a barbárie dos dias se acentua. Tudo
indica que vai piorar. Porque está piorando. A incompetência explícita
do bolsonarismo faz com que a necessidade de ampliar a violência “contra
todos os que não são iguais a mim”, com o objetivo de ampliar a
sensação de guerra interna, também aumente. Sem projeto consistente, o
governo que aí está só pode apostar no ódio para se manter. E vai seguir
apostando. O ódio não é o oposto do amor, mas sim da justiça. É justiça
que Bolsonaro não quer.
O ódio não é o oposto do amor, mas sim da justiça
Os brasileiros vão precisar compreender que a democracia terá que ser
defendida por cada um, se colocando junto com o outro. Às vezes só dá
mesmo para gritar. Mas é preciso fazer um esforço maior para responder
com projetos, com propostas, com ação que não seja apenas uma reação,
mas uma alternativa que permita a vida e promova vida no espaço público.
Será assim, ou não será. Não é que tenha outro. Só tem você mesmo. Com o
outro.
Podemos aprender algo com a artista russa Nadya Tolokonnikova .“A ação não deve ser uma reação, mas uma criação”, ela escreveu. Nadya é uma das integrantes da banda Pussy Riot
que foi presa em 2012 pelo Governo do déspota Vladimir Putin. Entre as
músicas tocadas em suas intervenções de ação direta, em espaços públicos
de Moscou, uma delas era: “Putin se mijou na calça”. Não há nada que os
déspotas temem mais do que aqueles que riem deles. Para manter o medo e
o ódio ativos é preciso banir o riso e o humor. Nadya aprendeu a rir de
seus carcereiros nos dois anos em que ficou na prisão por ousar
confrontar o autoritarismo do regime, provocando um movimento de
solidariedade global.
“A ação não deve ser uma reação, mas uma criação”
Na abertura do livro Pussy Riot,um guia punk para o ativismo político,
a artista de 29 anos parece estar escrevendo para os brasileiros que
vivem sob a administração do ódio de Bolsonaro e de suas milícias
digitais. O livro, traduzido para o português por Jamille Pinheiro Dias e
Breno Longhi, com ilustrações de Roman Durov, será lançado no Brasil em
22 de abril, pela editora Ubu. Antes, a banda fará dois shows no
Brasil, em 19 (Recife) e 20 (São Paulo).
Nadya se refere a Donald Trump, que tem Bolsonaro como um pet exótico do sul do mundo:
“Quando Trump ganhou a eleição presidencial,
as pessoas ficaram profundamente chocadas. Na verdade, o que aconteceu
no dia 8 de novembro de 2016 foi a ruptura do paradigma do contrato
social – a ideia de que podíamos viver confortavelmente sem sujar as
mãos nos envolvendo com política, de que bastava um voto a cada quatro
anos (ou voto nenhum: o pressuposto de que se está acima da
política) para resguardar as próprias liberdades. Essa crença – a de que
as instituições estão aqui para nos proteger e zelar por nós, e de que
não precisamos nos preocupar em proteger essas instituições da
corrupção, de lobistas, dos monopólios, do controle corporativo e
governamental sobre nossos dados pessoais – veio abaixo. Nós
terceirizávamos a luta política da mesma forma que terceirizávamos as
vagas de trabalho mais mal remuneradas e as guerras.
“Não dá para continuar vivendo achando que é possível não ‘sujar as mãos com a política’ ou acreditando estar acima da política”
Os sistemas atuais não conseguiram oferecer
respostas aos cidadãos, de modo que as pessoas começaram a buscar
soluções fora do espectro político dominante. Essas insatisfações estão
agora sendo usadas por políticos de direita,
xenófobos, oportunistas, corruptos e cínicos. Os mesmos que ajudaram a
criar e a agravar esse cenário vêm agora nos oferecer salvação. Esse é o
jogo deles. É a mesma estratégia de cortar os fundos de um programa ou
uma agência reguladora dos quais eles queiram se livrar e depois usar a
ineficácia resultante disso como prova de que essas iniciativas ou
órgãos precisam ser desfeitos”.
Basta trocar a data para 28 de outubro de 2018, dia da eleição de
Bolsonaro, e o nome do presidente. E a análise segue com alta precisão,
ainda que Bolsonaro seja muito mais autoritário do que Trump e as
instituições brasileiras muito mais frágeis do que as americanas.
Bolsonaro é tão tosco que até mesmo a ultradireitista Fox News
achou melhor tornar explícito que não compactuava com o pensamento do
antipresidente brasileiro: afirmou que os comentários de Bolsonaro sobre
a comunidade LGBTQI eram “incompatíveis com os valores americanos”. Ao
entrevistar o antipresidente brasileiro, perguntou diretamente sobre o
assassinato de Marielle Franco
e a ligação da bolsomonarquia com as milícias cariocas. Ou seja:
Bolsonaro é um constrangimento mesmo nos redutos mais direitistas do
país que mais ama, os Estados Unidos. Seu suposto nacionalismo, como a
visita aos Estados Unidos provou, é de chorar de rir.
Em outro trecho do livro, a artista também parece falar diretamente
com os brasileiros que pensam em desistir ou acham que já chegaram ao
seu limite: “As condenações de ativistas políticos foram naturalizadas
na opinião pública. Quando pesadelos se tornam constantes, as pessoas
param de agir. É assim que a apatia e a indiferença triunfam”. Em
seguida, finca as unhas: “As dificuldades e os fracassos não são razão
suficiente para renunciarmos ao ativismo. Sim, porque as mudanças
sociais e políticas não se dão de forma linear. Às vezes é preciso lutar
por anos para obter um resultado mínimo”.
Quando pesadelos se tornam constantes, as pessoas param de agir: a apatia e a indiferença triunfam
A autoridade de suas palavras é conferida por um dos mais fortes
ativismos deste século. Quase dois anos de prisão e trabalhos forçados
não a fizeram recuar nem perder a ingenuidade, para ela um valor ético e
também estético. “Se tivéssemos que apontar um inimigo, eu diria que
nosso maior inimigo é a apatia. Se não estivéssemos de mãos atadas pela
ideia de que é impossível mudar as coisas, seríamos capazes de alcançar
resultados fantásticos. O que nos falta é a confiança de que as
instituições podem realmente funcionar melhor e de que nós somos capazes
de fazê-las funcionar melhor. As pessoas não acreditam no enorme poder
que elas têm. Este poder que, por algum motivo, não usam”.
Neste momento, a novíssima geração, a que nasceu depois da geração das integrantes da Pussy Riot,
está criando um movimento global espantoso. A juventude pelo clima,
inspirada por uma sueca de 16 anos com diagnóstico de Asperger, colocou
1,5 milhão de estudantes secundaristas nas ruas de cidades do mundo
em 15 de março para denunciar a falta de ação dos governos diante da
crise climática. Oito meses antes, nada disso existia. Em agosto de
2018, Greta Thunberg fez greve da escola e se postou sozinha diante do parlamento sueco. Agora, o movimento é uma potência.
Brasileiros de todas as idades precisam aprender, pra ontem, com as
gerações mais novas. É isso ou seguir condenado a assistir à queda de
braço entre Jair Bolsonaro e Rodrigo Maia. Sério que é este o ponto alto
do debate nacional, antes de vir outro do mesmo nível ou pior? É este
mesmo o nosso destino? Sério mesmo que o maior crítico da militarização
do governo é Olavo de Carvalho, por motivos bem outros em sua calculada
disputa de poder? E é ele o maior crítico porque parte dos que poderiam
criticar a militarização do governo por motivos legítimos e urgentes
começam a achar que Hamilton Mourão, o vice general, é uma graça? É
assim mesmo que vamos viver, esperando o que virá depois, caso exista um
depois?
Como diz a Pussy Riot Nadya Tolokonnikova, “a esperança virá dos desesperados”. Espero que ela tenha razão.
. Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook:@brumelianebrum
O presidente Jair Bolsonaro determinou nesta segunda-feira que as Forças Armadas façam as “comemorações devidas”
ao golpe de 64, que completa 55 anos no próximo dia 01 de abril.
Temendo reações negativas em um ambiente político já bastante
polarizado, a cúpula militar orientou que as “comemorações devidas”
sejam realizadas intramuros, limitadas aos quartéis e batalhões.
A decisão não pegou ninguém de surpresa. Embora nunca tenha
feito muito pelos militares em seus quase 30 anos como deputado (a bem
da verdade, bastaria dizer: “embora nunca tenho feito muito em seus
quase 30 anos como deputado”), Bolsonaro foi bastante hábil em mobilizar
e organizar um circuito de afetos baseados principalmente no
esquecimento das violências passadas a informar a indiferença cotidiana
para com as violências presentes.
Sua ascensão meteórica à Presidência, não casualmente, ganhou impulso depois de seu voto pela abertura do processo de impeachment contra Dilma Rousseff,
quando prestou homenagens ao coronel Brilhante Ustra, responsável por
estuprar, torturar e assassinar, nos porões do DOI-CODI em São Paulo,
opositores da ditadura. São igualmente conhecidas as menções elogiosas a
ditadores de países vizinhos, como o paraguaio Alfredo Stroessner
e o chileno Augusto Pinochet. O primeiro, um pedófilo; o segundo,
responsável pelo desvio de 13 milhões de dólares, depositados em mais de
100 contas em bancos americanos.
Juntas, as ditaduras da América do Sul
mataram aproximadamente 40 mil pessoas, entre outras inúmeras
atrocidades, aí inclusas crianças sendo presas, torturadas, obrigadas a
assistir o sofrimento de seus pais e mães, ou sequestradas e adotadas
por famílias simpáticas aos governos. Mas se nos vizinhos sua memória
desperta repúdio, aqui um presidente eleito pelo voto direto, coisa
proibida nos anos de chumbo, desqualifica e fragiliza, aberta e
propositadamente, o pouco de democracia que conquistamos.
Em seu anúncio, o porta-voz da Presidência afirmou que
Bolsonaro “não considera o 31 de março de 1964 golpe militar”, mas uma
medida para conter “o perigo que o país estava vivenciando naquele
momento”. O argumento não é novo. Consagrou-se em alguns círculos, e não
apenas militares, a versão de que o golpe fez-se para evitar outro.
Trata-se, obviamente, de uma narrativa que interessa aos responsáveis
pelas duas décadas de ditadura, mas que não se sustenta em nenhuma das
muitas evidências históricas sobre o período.
Em entrevista concedida ao CPDOC da FGV, o historiador Luiz
Alberto Moniz Bandeira fala das muitas “provocações” que antecederam o
1º de abril, essenciais para criar um clima de animosidade e conflito
necessário para justificar a tomada de poder pela direita civil e
militar. E embora admita a tendência à radicalização de algumas
lideranças ligadas a João Goulart, é enfático quanto à inexistência de
qualquer condição ou pretensão golpista, dentro e fora do governo.
Havia, por certo, um ambiente de conflito, em parte decorrente da Guerra Fria e do fantasma da ameaça soviética, que ajudaram a alimentar a propaganda e a atmosfera golpista.
A realidade, no entanto, era mais complexa. Os principais
grupos de esquerda, como o PCB, eram reformistas: falavam e defendiam as
reformas agrária e de base; reivindicavam o nacionalismo contra o
capital estrangeiro; produziam uma cultura que se pretendia “popular”
como um meio de “desalienar” as massas demasiadamente influenciadas
pelos padrões culturais tidos por imperialistas, etc... Mas a ameaça de
um “golpe comunista” é apenas mais uma mentira dos artífices da
ditadura. Repetidas tantas vezes, ainda há quem nela acredite. Mas isso
não a torna verdade.
Por outro lado, abundam evidências sobre os desmandos e a
violência da ditadura, embora não apenas, principalmente depois de
decretado o AI-5, que conferiu ao regime poderes quase ilimitados. Com o
Ato Institucional, escancararam-se as portas à censura. Músicas,
livros, filmes e peças teatrais foram proibidos às centenas nos dez anos
em que vigorou, cuja capilaridade inquisitorial se estendeu também à
imprensa.
Mas ainda mais grave que o verniz de legalidade à repressão política, o AI-5 ampliou e legitimou as inúmeras ações ilegais da ditadura.
Com o seu endurecimento, disseminaram-se as muitas arbitrariedades
governamentais, inclusos intimidações, sequestros, prisões, torturas e o
assassinato de inimigos políticos. A repressão feroz que se abateu
sobre toda e qualquer forma de oposição, tem sido recentemente
relativizada aqui e acolá, inclusive por alguns historiadores.
Mas não há relativização possível quando se trata da
garantia dos direitos humanos fundamentais, sucessivamente
desrespeitados nos porões e casas da morte onde a ditadura humilhou,
torturou e assassinou centenas, nem sempre e não apenas militantes que
pegaram em armas contra o governo. A ditadura não perdoou ninguém e
tratou a todos, indiscriminadamente, como criminosos e inimigos.
Democracia e esquecimento
Em Como a democracia chega ao fim, o cientista político David Runciman parte da eleição de Donald Trump
nos EUA, para analisar o que chama de “versão caricatural do fascismo”.
A insatisfação e a desconfiança com a democracia, geradas
principalmente pela crise econômica, propiciaram a ascensão de um líder
populista, que se apresentou aos eleitores como um outsider
antissistêmico. Sem um programa claro, Trump foi eleito oferecendo
soluções fáceis para problemas complexos, somando-se a isso a produção e
proliferação serial de fake news, o preconceito contra minorias e o anti-intelectualismo.
Há semelhanças com o caso brasileiro, mas as diferenças
chamam mais a atenção. Bolsonaro conjuga elementos do fascismo
histórico — a irracionalidade, o personalismo, o elogio da força física e
da violência, a moralização da política e a demonização de supostos
inimigos, por exemplo —, a formas de autoritarismo cultivadas no terreno
fértil da história nacional: a escravidão, experiência estruturante do
nosso racismo; a violência estatal contra movimentos sociais; a
cordialidade, raiz de nossa baixa tolerância à democracia; e o
esquecimento da ditadura.
O crescimento da liderança de Bolsonaro, que de uma
excrescência política chegou à Presidência da República, se explica em
parte por esse movimento de adesão aos afetos autoritários que, no caso
brasileiro, bebe na fonte de uma política sistemática de esquecimento
que vigora desde a “abertura lenta, gradual e segura” de Ernesto Geisel,
na segunda metade dos anos de 1970, e estabeleceu o marco no interior
do qual faríamos a passagem para a democracia.
A Lei de Anistia, de 1979, desempenhou nesse processo papel
singular. Se na Argentina e no Uruguai, por exemplo, as respectivas
legislações que anistiavam os crimes das ditaduras foram derrogadas, no
Brasil não: somos o único país que perdoou os ditadores e seus asseclas
sem exigir deles o reconhecimento dos seus crimes. Entre outras coisas,
esse ordenamento jurídico limita a própria ação do Estado no cumprimento
de suas obrigações em casos de violações dos direitos humanos.
Dos quatro deveres que lhe competem — oferta de reparações;
investigar, processar e punir os violadores; revelar a verdade às
vitimas, seus familiares e à sociedade; e afastar os criminosos de
órgãos relacionados ao exercício da lei e outras posições de autoridade
—, mal cumprimos o primeiro. Mesmo a Comissão Nacional da Verdade
não mudou substancialmente isso, porque o fundamental restou por fazer:
nenhum dos governos eleitos a partir de 1989 enfrentou o imenso
edifício de olvido sobre o qual se estrutura parte de nossa cultura
política contemporânea.
No último livro publicado ainda em vida, A memória, a história, o esquecimento,
o filósofo francês Paul Ricoeur contrapõe ao que considera as dimensões
positivas do esquecimento, seus efeitos potencialmente danosos como
gesto forçado de apagamento da lembrança, o que ele denomina de “memória
impedida”. É esse impedimento que fundamenta aquelas políticas que,
como a nossa, confundem anistia com amnésia e tomam essa como critério
para associar aquela ao perdão.
O equívoco não é apenas semântico — anistia não significa
necessariamente perdão nem, tampouco, esquecimento —, mas político.
Desde a transição para a Nova República, há uma interdição, um
silenciamento a impedir que tratemos a Lei de Anistia e as políticas de
esquecimento daí derivadas pelo que elas são: um obstáculo à efetivação
de uma cultura democrática sensível, entre outras coisas, aos muitos
riscos a que está exposta, e aos restos de uma ditadura que, mesmo
institucionalmente, continuam a ameaçá-la.
As democracias modernas, nos ensina David Runciman, morrem
por dentro. A eleição de líderes populistas autoritários, argumenta, é o
primeiro passo para um caminho de difícil retorno: quando abrimos mão
de nossos direitos e liberdades, ou simplesmente votamos insensíveis ao
fato de que indivíduos e grupos serão forçosamente privados deles,
porque parte de “minorias” ou porque vistos como “inimigos políticos”,
estamos legitimando com nossas escolhas o fascismo em uma de suas muitas
versões coevas.
Se a elaboração do passado, e particularmente do passado
traumático, pressupõe a eliminação das condições que o permitiram, a
anistia concedida pela ditadura criou as condições que seguem
autorizando a indiferença para com a desigualdade, a violência de
gênero, o racismo e, mesmo, a indiferença para com o terrorismo de
Estado, ativo principalmente nas periferias e prisões. Passados 55 anos,
a eleição de Bolsonaro em 2018 e sua decisão de comemorar o golpe
representam simbólica e, espero, provisoriamente, a derrota da
democracia e a vitória da memória e do sentimento autoritário.
Clóvis Gruner é historiador e professor do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba.
A pergunta que a sociedade
brasileira se faz nas redes sociais, na grande imprensa nacional e
internacional é – quem mandou matar Marielle e porque a matou?
Após a revelação das identidades dos assassinos da vereadora
Marielle Franco (PSOL-RJ) a frase que Jean Wyllys (PSOL-RJ) repetiu
diversas vezes em Portugal se torna cada vez mais importante. A pergunta
que a sociedade brasileira se faz nas redes sociais, na grande imprensa
nacional e internacional é – quem mandou matar Marielle e porque a
matou?
Vamos aos indícios. Ronnie Lessa, sargento reformado da
Polícia Militar, que de acordo com a polícia, é o autor dos 13 tiros que
assassinaram Marielle Franco e Anderson Gomes, em março de 2018, foi
preso em sua casa em um luxuoso condomínio na Avenida Lúcio Costa, Barra
da Tijuca, Rio de Janeiro, na madrugada de 12 de março último. O local é
o mesmo onde morou Jair Bolsonaro. Ronnie Lessa, além da casa no mesmo
condomínio de Bolsonaro, é proprietário de uma mansão – e uma lancha –
no condomínio Portogalo, em Angra dos Reis.
O
outro criminoso, que dirigiu o carro, Élcio Vieira de Queiroz, aparece
com Bolsonaro em foto publicada por ele no Facebook. Élcio foi expulso
da PM em 2016, depois de preso, em 2011, na Operação Guilhotina, da
Polícia Federal, que investigou o envolvimento de policiais militares
com o tráfico de drogas e com as milícias. Mas o assunto não se limita à
vizinhança.
Apareceu também o primeiro vínculo concreto entre a
família de Jair Bolsonaro e a de Ronnie Lessa: um dos filhos de
Bolsonaro namorou a filha de Lessa. O fato foi confirmado pelo delegado
responsável pela Divisão de Homicídios da capital fluminense, Giniton
Lages, durante a entrevista coletiva sobre a prisão do PM reformado
Lessa e do outro assassino, o ex-PM Élcio Vieira de Queiroz. Visto que
Bolsonaro e Lessa moram no mesmo condomínio na Barra da Tijuca, no Rio,
pergunta-se que tipo de relação se estabeleceu entre as duas famílias já
que seus filhos mantinham relações intimas.
Em matéria publicada em março na revista Piauí,
são apontados outros indícios mais antigos da ligação do clã Bolsonaro
com as milícias, como as menções honrosas propostas em 2003 pelo
deputado estadual Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio de
Janeiro ao major Adriano Nóbrega, que é apontado como um dos líderes do
Escritório do Crime. Nóbrega havia sido apresentado a Flávio por um
antigo colega do Bope, Fabrício Queiroz – o ex-assessor do filho de Jair
Bolsonaro que está no centro do escândalo envolvendo repasses suspeitos
de dinheiro para Flávio na Alerj. Em 2005, Nóbrega ganhou outra
homenagem, também promovida por Flávio: a Medalha Tiradentes, a mais
alta honraria da Alerj.
Um ano depois da morte de Marielle, as
investigações chegaram aos dois assassinos, mas a questão central ainda
não foi desvendada – o mandante do crime. Há uma tendência de dar uma
conotação de ódio às investigações da execução da vereadora, excluindo
os aspectos políticos. Segundo o deputado federal Marcelo Freixo
(PSOL-RJ), falar em crime de ódio é inaceitável, não faz o menor
sentido, pois o crime é político. Segundo Freixo “é preciso mostrar quem
é o grupo político interessado na morte de Marielle. Será uma mera
coincidência que o executor de Marielle seja vizinho de Jair Bolsonaro
no condomínio da Barra da Tijuca? Por isso é fundamental sabermos qual
grupo político é capaz de, em pleno século XXI, mandar eliminar uma
autoridade pública que tenha cruzado seu caminho. Precisamos descobrir
quem são os mandantes da execução de Marielle Franco. As prisões dos
executores de Marielle e Anderson são importantes e tardias. É
inaceitável que se demore um ano para termos alguma resposta. É um passo
decisivo, mas o caso não está resolvido. É fundamental saber quem
mandou matar e qual a motivação”.
Para Guilherme Boulos (PSOL-SP),
“as prisões de hoje são um passo importante para saber quem matou
Marielle e Anderson. É preciso investigar se o fato de um dos presos ser
vizinho de Bolsonaro é coincidência ou não. De todo modo, segue a
questão: quem mandou matar Marielle?”. Neste contexto, o exílio de Jean
Wyllys e da ex-candidata a governadora do Rio de Janeiro, Marcia Tiburi
(PT-RJ), se enquadram nas mesmas motivações do assassinato de Marielle.
Ambos sofreram violentas ameaças após a eleição de Bolsonaro. Diante
deste quadro tornou-se extremamente perigoso continuarem morando no
Brasil.
A perda do Estado Democrático de Direito no Brasil vem se
agravando desde o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff e a prisão
ilegal de Lula, líder nas pesquisas nas eleições de 2018. Marcia Tiburi
afirmou em recente entrevista em Pittsburgh, Estados Unidos, que as
graves violações dos direitos humanos vêm se agravando intensamente no
país. A eleição de Bolsonaro teve consequências na impossibilidade de
vários ativistas políticos continuarem a viver no Brasil. Tiburi
acrescentou que “o papel da denúncia internacional se tornou relevante.
Muita gente que está fora do Brasil não sabe o que está acontecendo e
nós temos que falar. E eu vou começar”.
Jean Wyllys começou na
Alemanha a denunciar a grave situação política brasileira. Ele fez sua
primeira aparição no Festival de Cinema de Berlim e, de lá, veio para
Portugal. A convite do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade
de Coimbra, dirigido pelo sociólogo Boaventura de Souza Santos, foi
recebido por centenas de estudantes, intelectuais e artistas e vários
coletivos de movimentos sociais. Participou do seminário “Discurso de
ódio e fake news de extrema-direita e seus impactos nos modos de vida das minorias sociais, étnicas e religiosas”, em 26 de fevereiro de 2019.
Mesmo
sendo recebido com muito respeito por um grande e caloroso público,
ocorreu uma tentativa isolada de um militante de extrema-direita que
tentou lhe atingir com ovos, mas foi impedido prontamente por um
segurança. No dia 27, em Lisboa, Wyllys foi ao Parlamento português a
convite de José Manuel Pureza, vice-presidente da casa e deputado do
Bloco de Esquerda, sempre acompanhado pela deputada Joana Mortágua, do
mesmo partido. Os Jornalistas Livres tiveram acesso exclusivo a essas atividades.
No
Parlamento foram realizadas três atividades consecutivas. A primeira
foi o encontro com o vice-presidente da instituição. A segunda foi a
reunião com deputados de diversos partidos políticos da Assembleia da
Republica. A terceira foi uma entrevista coletiva à imprensa
portuguesa.
Após a sua visita ao Parlamento, Wyllys participou de
uma mesa na Casa do Alentejo, ao lado do sociólogo Boaventura de Souza
Santos e de Pilar del Rio, presidenta da Fundação Saramago e viúva do
escritor.
Novamente ele foi recebido calorosamente por um público
emocionado de brasileiros e portugueses, composto por estudantes,
intelectuais, artistas, jornalistas e parlamentares. Após sua exposição e
participação em debate com a plateia, Wyllys fez uma homenagem a Lula.
Levantou um cartaz com a foto do ex-presidente e gritou Lula Livre!, o
que foi correspondido com muita energia por todos os presentes.
As
palavras de Wyllys que ecoaram na Universidade de Coimbra, no
Parlamento português e na Casa do Alentejo, em Lisboa, revelam sua
intuição política, que se torna cada vez mais próxima da realidade:
“Marielle vai derrubar Bolsonaro”.
Eleitores populares de Bolsonaro começam a pular do barco
Queda em avaliação é mais acentuada entre quem ganha de 2 a 5 salários mínimos por André Singer, na Folha de S. Paulo
Aspecto pouco notado na queda de aprovação do governo, registrada
pelo Ibope nesta semana, é a sua distribuição pela renda. Foram os
eleitores populares que começaram a pular do barco bolsonariano.
Possivelmente os mesmos que, no final do primeiro turno de 2018,
sobretudo no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, produziram a incrível
onda de extrema direita que varreu o país.
A perda de 15 pontos percentuais na avaliação positiva de Bolsonaro
foi mais acentuada entre os eleitores que ganham de 2 a 5 salários
mínimos (SM) de renda familiar mensal, chegando ali a um recuo de 18
pontos. Hoje apenas 35% desse segmento apoia o mandato em curso, índice
que cai para 29% daqueles cujo ingresso familiar restringe-se a um SM.
Já quando a família recebe acima de cinco salários mínimos, 49% dos
entrevistados gostam da administração do capitão reformado. Aqui a perda
foi de apenas oito pontos em relação à posse (tinha 57% de ótimo e bom
em janeiro).
Na mesma linha, o instituto de pesquisa nota o aumento da rejeição
entre os moradores “que residem nas cidades das periferias brasileiras”.
Nesse segmento o índice dos que consideram ruim ou péssimo o
desempenho presidencial subiu nada menos que 21 pontos no período. O
Nordeste, por sua vez, abriga apenas 31% que se mostram satisfeitos.
A persistência de melhor humor no Sul, onde 41% ainda apreciam o
mandato em curso, ilustra a divisão social que permeia a conjuntura,
pois a região concentra os menores indicadores de pobreza.
Se a economia comandar os rumos do eleitorado, como parece provável, uma recuperação no curto prazo é difícil.
Vale lembrar que o primeiro governo Lula, por exemplo, em que pese
ter demorado para produzir aquecimento do PIB, conseguiu estancar de
imediato o ciclo inflacionário que herdara da etapa anterior.
Bolsonaro já pegou o leme com inflação irrelevante. Se não conseguir
criar postos de trabalho e oferecer renda, continuará em baixa.
Tal contexto daria à oposição a chance de apresentar alternativas ao
modelo ultraneoliberal. As eleições de 2020, sobretudo nas capitais,
seriam o teste de tal embate.
Olhando o assunto do ângulo político, a prisão de Michel Temer ainda é uma incógnita.
Foi a Lava Jato que o levou ao poder, uma vez que decisiva para o
impeachment de Dilma Rousseff. Depois, com a gravação de Joesley,
afundou o regime emedebista e ajudou a ascensão de Bolsonaro.
Agora, com a detenção do ex-presidente, atrapalha a reforma
previdenciária de Paulo Guedes e aprofunda a divisão das hostes
bolsonaristas. Terá fôlego para empurrar Sergio Moro rampa acima? André Singer é professor de ciência política da USP,
ex-secretário de Imprensa da Presidência (2003-2007). É autor de “O
Lulismo em Crise”.
Em entrevista exclusiva ao Blog da Boitempo, o
filósofo esloveno comenta a eleição de Bolsonaro no contexto da onda
global de ascensão da extrema-direita populista e provoca: “a única
maneira de salvar aquilo que há de bom na tradição liberal será na base
de uma política mais radical de esquerda”.
O filósofo
esloveno Slavoj Žižek bateu um papo via Skype com Artur Renzo, editor do
Blog da Boitempo, sobre a eleição de Bolsonaro no contexto da onda
global de ascensão da extrema-direita populista e a implosão do centro
político. Para ele, o desafio é saber diferenciar o sintoma de sua
causa: o acontecimento-chave do mundo hoje não é o surgimento da nova
direita, e sim a desintegração do grande consenso liberal capitalista ao
qual ela responde. Assim, a resposta a esse fenômeno não deveria ser
ensaiar um novo populismo de esquerda, nos moldes das figuras de direita
que estão ganhando espaço. Mais do que nunca, a esquerda precisa manter
sua vocação internacionalista para fazer frente ao capitalismo global.
Maoísta de ocasião, Žižek vê na desordem da conjuntura atual uma janela
de oportunidade diante da qual a esquerda deve ter a ousadia de propor
uma nova visão básica da sociedade.
Quanto ao
Brasil, o filósofo demonstra certa preocupação acerca da preservação de
uma democracia formal no país com Bolsonaro, mas vê que a implementação
de uma política de austeridade pode minar a legitimidade do novo governo
e manter nas mãos da esquerda o monopólio sobre a política
antiausteridade. Žižek alerta ainda para a armadilha de priorizar neste
momento a composição de uma frente ampla de defesa da democracia com
setores de centro e centro-direita, em vista de preservar um programa
mínimo contra a ameaça posta pela extrema-direita. E provoca: “a única
maneira de salvar aquilo que há de bom na tradição liberal será na base
de uma política mais radical de esquerda”. Confira a tradução completa
da entrevista abaixo.
* * *
Como você situa o caso
brasileiro atual, com a eleição de Jair Bolsonaro, no contexto global
mais amplo, marcado pela ascensão de populismos de direita e
extrema-direita em diversos países?
Até onde sei, o caso brasileiro é
bastante singular. Não é como na Europa Ocidental, onde oponente não é,
como no caso de vocês, um movimento relativamente honesto de esquerda. O
oponente lá é simplesmente o establishment – talvez um pouco de esquerda, democrático, mas ainda assim o establishment.
Na Europa Ocidental, o que está desaparecendo é a social-democracia
tradicional. O que se tem é uma oposição entre aquilo que denomino o establishment
liberal de esquerda (que é economicamente neoliberal mas socialmente a
favor de direitos LGBT, das mulheres etc.) e esse novo populismo de
direita.
No Brasil, parecia que o populismo não
era principalmente um populismo de direita. Com Lula e Dilma, a esquerda
havia ocupado esse espaço. Mas aqui vou traçar algumas observações que
provavelmente soarão problemáticas para muitos de vocês. Não concordo
com toda essa ideia de um populismo de esquerda. Está na moda defender
isso na Europa Ocidental e nos Estados Unidos: por que deixar o
populismo – essa modalidade engajada de política, centrada no
estabelecimento de um conflito com um determinado inimigo –, por que
deixar o populismo exclusivamente na mão dos direitistas? Por que não
responder a ele com um populismo nosso, de esquerda?
Por motivos teóricos e práticos creio que não devamos trilhar esse caminho. Como admite Ernesto Laclau – que é o
teórico do populismo –, o populismo concentrou-se em construir uma
imagem clara do inimigo. É claro que, no nosso caso, os inimigos não
seriam os estrangeiros, os imigrantes etc., seriam algo como as elites
financeiras, a classe dominante etc. Mas o problema aqui,
fundamentalmente, é que as coisas não são tão simples assim… Vejamos o
caso dos Estados Unidos. É claro que o inimigo imediato é Donald Trump,
mas penso ser absolutamente crucial se colocar uma pergunta mais
profunda. Como diz Michael Moore, logo no início de seu novo
documentário, Trump não caiu do céu. Foi com o fracasso do establishment
liberal de esquerda que abriu-se espaço para o surgimento de figuras
como Trump. Essa é a grande decepção. O pacto político que regulou os
países desenvolvidos nas últimas décadas foi o pacto desse establishment liberal.
Jamais devemos esquecer que uma
democracia (e aqui não me refiro a uma autêntica democracia do povo, mas
uma simples democracia multipartidária, em que diversos partidos
disputam o poder) só funciona sob o pano de fundo de certo consenso ou
pacto. Você pode fazer suas escolhas, promover seus debates etc., mas
somente dentro dos limites de certo pacto ou marco consensual. De forma
que, por exemplo, nos Estados Unidos você tem os Republicanos e os
Democratas. É verdade que eles têm suas diferenças, mas eles
compartilhavam todo um conjunto de ideias e premissas básicas. O mesmo
valia para a Europa Ocidental.
O que mudou agora? Dois anos atrás, você lançou uma provocação
ao afirmar que a eleição de Trump seria melhor do que a de Hillary, no
sentido de que poderia abrir o caminho para o surgimento de uma esquerda
radical mais autêntica, livre das amarras desse grande consenso liberal
representado pelo Partido Democrata. Como você avalia essa questão
agora, com dois anos de Trump na Casa Branca? Você arriscaria dizer que
algo parecido talvez seria aplicável para o caso brasileiro, com a
eleição de Bolsonaro?
O que está ocorrendo agora com Trump é
que esse pacto liberal está se desintegrando. Penso que não devemos cair
na armadilha (na qual boa parte dos liberais atualmente se encontra) de
pintar Trump como o grande demônio e tentar implicitamente retornar a
esse pacto liberal de esquerda, Estado de bem-estar social e tal. Não!
Esse pacto está perdido. Devemos aprender com Trump a aceitar essa ideia
de que o velho pacto político que sustenta nossa sociedade está ruindo.
E é preciso agora ter a ousadia de propor um novo pacto social, nosso,
mais à esquerda – um pacto, ou, se quiser, uma visão básica da
sociedade. Nesse sentido, sou maoísta. Como dizia Mao: “Tudo sob o céu
está mergulhado no caos; a situação é excelente”. Com Trump, há uma
grande desordem sob o céu estadunidense. Por isso, eu diria que a
situação também é um pouco propícia, no sentido de que há uma
abertura única para que nós, uma esquerda mais radical, possamos fazer
algo. E incluo aqui não apenas Bernie Sanders, mas todas as gerações de
outros democratas de esquerda mais radicais que não temem reabilitar a
palavra socialismo.
Agora, essa é a imagem geral. Sobre o que
ocorre no Brasil, não posso dizer que sei o suficiente. Quer dizer, eu
sei que houve uma grande manipulação. A forma pela qual Bolsonaro e seus
demagogos populistas de direita foram capazes de mobilizar essa eterna
acusação contra Lula, Dilma e seus partidários de que eles seriam os
representantes da corrupção, que eles seriam parte de um Estado não
transparente, corrupto e por aí vai… Eu não conheço suficientemente a
situação brasileira para opinar aqui, mas diria o seguinte: quando disse
ironicamente que votaria em Trump, o que eu quis dizer era que ele
seria bom, negativamente, para estilhaçar a ideologia hegemônica
existente e, nesse sentido, abrir espaço para o surgimento de uma
esquerda mais radical. Mas não penso que essa seja uma fórmula
universal. Mesmo no caso da Europa Ocidental – porque temos um tipo
diferente de Estado na Europa, muito mais centralizado –, eu jamais
teria dito algo como “Vote na Marine Le Pen!”, porque com ela no poder à
frente do Estado francês teríamos algo muito maior do que Trump. O
Estado francês é muito mais forte e centralizado e regula num grau muito
maior a vida social como um todo. Teria sido uma verdadeira catástrofe.
Temo que o mesmo valha para o Brasil.
Slavoj Žižek em entrevista via Skype com Artur Renzo, editor do Blog da Boitempo.
Em seus artigos mais
recentes, você resume da seguinte maneira a “pervertida situação
política” da Europa: por um lado, temos a “esquerda” oficial
efetivamente implementando políticas de austeridade (ao mesmo tempo que
assume a pauta progressista e multiculturalista no que diz respeito aos
valores) e, por outro, temos a “direita populista” de fato tomando a
frente das medidas antiausteridade (e empunhando a bandeira e o discurso
da xenofobia e do nacionalismo). Nesse sentido, me pergunto se a
infeliz novidade que temos agora no Brasil não seria que o nosso governo
eleito parece juntar o pior desses dois mundos: ele é economicamente
pró-austeridade e ao mesmo tempo extremamente reacionário no que diz
respeito a direitos humanos, ações afirmativas, direitos das mulheres e
das minorias etc.
Isso é muito interessante! Quer dizer, se
o Estado brasileiro permanecer, ao menos em algum sentido formal (no
sentido corriqueiro do termo), basicamente democrático, essa situação,
apesar de tudo, abre espaço para que a esquerda ao menos retenha o
monopólio da política antiausteridade, por assim dizer. Porque o que faz
de Trump um perigo tão grande é precisamente esse aspecto. Se você
prestar atenção ao que diz Steve Bannon, ele afirma abertamente coisas
como “Eu não sou pró-austeridade. O Estado deveria gastar mais com os
trabalhadores”, e por aí vai. Bannon é realmente um perigo. Ele quer
aumentar os impostos dos ricos a 44%, até mais. E na Europa temos ainda
mais disso. Na Hungria e especialmente na Polônia (que, como você sabe, é
o caso mais perigoso), o atual governo, extremamente católico,
implementou uma série de medidas que nenhuma social-democracia na Europa
jamais teria se atrevido a fazer: reduzir a idade de aposentadoria,
elevar a previdência, melhorar a saúde pública, ampliar o apoio
financeiro aos estudantes etc.
E aqui devemos ter muita cautela na
análise. Dou um exemplo. Muitos dos meus amigos ficaram horrorizados
quando Syriza capitulou, sabe? E eu concordo, eles não deveriam ter
feito isso. Mas também não era simplesmente como se eles tivessem uma
escolha. Não se tratou de uma simples traição, mas da revelação de uma
necessidade mais profunda. Esse para mim foi o momento de verdade
daquele processo todo. É por isso que sou muito cético quanto àquela
ideia bastante em voga hoje entre certos setores da esquerda de que, da
mesma forma que novos populistas como Bannon ou Trump em geral investem
no nacional populismo de direita, também a esquerda deveria defender
algo análogo. Não, eu não acredito que seja possível derrotar o
capitalismo global jogando com cartas nacionais. Não compro essa ideia
de nos retirar da União Europeia, ou o que quer que seja, para tocarmos
nossa própria política nacional.1 Não se pode fazer isso. O capital global é um fenômeno internacional. A resposta a ele também terá de ser internacional.
É por isso que vejo alguns sinais
progressistas em certas movimentações hoje. Você sabe que há agora um
eixo – que não é um eixo do mal, mas digamos um eixo do bem – se
formando: Sanders e seus democratas de esquerda nos EUA estão
estabelecendo ligações com Corbyn e com o Partido Trabalhista inglês, e
com alguns movimentos de esquerda como aqueles em torno de Varoufakis e
similares na Europa. Precisamos permanecer – e digo que isso é mais
importante hoje do que nunca – precisamos permanecer internacionalistas.
O próprio Fernando Haddad
está em Nova York agora, a convite de Varoufakis, para participar do
lançamento dessa frente. Uma das questões que a esquerda brasileira
debate hoje no que diz respeito à organização da oposição a Bolsonaro é o
seguinte: até que ponto se deve investir na criação de uma frente ampla
“democrática” contra o neofascismo e a extrema direita, priorizando
assim a busca por pontos de contato mínimos com setores de centro e até
centro-direita contra um perigo maior; ou se, pelo contrário, ela deve
radicalizar ainda mais seu discurso e seu programa pra tentar atingir
maior apoio popular. Como você avalia esse dilema?
Essa é uma pergunta traiçoeira! Penso que
devemos tomar muito cuidado aqui. É claro que, por motivos táticos,
quando você quer barrar determinada legislação perigosa de direita, não
há problema algum em estabelecer coalizões táticas com quem quer que
seja. Mas eu não diria que devemos renunciar totalmente nossa visão mais
radical de esquerda. Não apenas por conta de algum tipo de purismo
esquerdista. Penso que não devemos jamais perder de vista que a crise à
qual Bolsonaro e Trump aparecem como respostas é a crise do establishment liberal de centro.
Há coisas boas no liberalismo: liberdades
humanas, direitos LGBT, direitos das mulheres etc. Mas, no longo prazo,
a única maneira de redimir, de salvar aquilo que há de bom na tradição
liberal será na base de uma política mais radical de esquerda. Aquilo
que, por exemplo, o Partido Trabalhista está tentando fazer na
Inglaterra, com Jeremy Corbyn.
Não penso que devamos apostar todas as fichas na direção do “agora
estamos diante de um enorme perigo e devemos todos nos unir contra os
novos populistas de direita”.2 Se fizermos isso, mesmo que tenhamos êxito, só voltaríamos à situação que ensejou o nascimento do populismo de direita.
Algum recado final para seus leitores brasileiros?
Mande um salve para todos aí no Brasil.
Diga a eles que estamos todos na mesma merda. O jeito é tentarmos
permanecer o mais alegre que pudermos neste inferno em que vivemos!3
NOTAS 1 Tariq Ali defendeu recentemente essa posição no contexto do Brexit em entrevista a Edemilson Paraná e Gustavo Capela para o número 29 da revista da Boitempo, a Margem Esquerda. Žižek desenvolve sua crítica a essa ideia em sua coluna no Blog da Boitempo aqui. [N. E.] 2 O cientista político André Singer, organizador de As contradições do lulismo, defendeu
essa posição na plenária pós-eleições convocada por Ruy Braga, com
Marilena Chaui e Vladimir Safatle no dia 1º de novembro de 2018 na USP.
Confira a gravação completa da intervenção dele na TV Boitempo clicando aqui. [N. E.] 3 Tradução de Artur Renzo, com colaboração de Thaisa Burani. [N. E.]
Depois de muitos pedidos, ele chegou: o livro de Žižek sobre cinema ganha nova edição, totalmente revista e ampliada! Em Lacrimae rerum: ensaios sobre cinema moderno,
o filósofo esloveno propõe um estudo aprofundado das motivações de
diretores renomados internacionalmente, como Krzysztof Kieślowski,
Alfred Hitchcock, Andrei Tarkovski e David Lynch. Esta nova edição traz
seis novos textos e análises originais sobre o cinema contemporâneo:
Žižek analisa sucessos hollywoodianos recentes como “Blade runner 2049”,
“Batman: O cavaleiro das trevas ressurge”, e o novo “Pantera Negra” da
Marvel, além de uma análise leninista de “La La Land”.
“Os
ensaios reunidos neste livro estão conectados não só pela riqueza do
método, mas também pelas referências reiteradas a ideias que se
manifestam em obras tão distintas quanto as de Kieslowski, os irmãos
Wachowski, Hitchcock, Tarkovski e David Lynch.” — Sérgio Rizzo