Bolsonaro manda festejar o crime
Ao determinar a comemoração do golpe militar de 1964, o antipresidente busca manter o ódio ativo e barrar qualquer possibilidade de justiça
O próximo domingo, 31 de março, marca 55 anos do golpe militar de 1964.
Em nenhum outro momento depois da retomada da democracia essa data
encontrou o Brasil sob tanta tensão quanto neste ano. A memória da
ditadura está sob ataque. E uma tentativa de fraudar a história,
apagando os crimes cometidos pelos agentes do Estado, está em curso. Não
mais como uma ofensiva pelos subterrâneos, que nunca cessou de existir,
mas como ato de governo, o que faz toda a diferença. Toda.
Jair Bolsonaro (PSL) já determinou “comemorações devidas” nos quartéis.
No 31 de março passado, quando ainda era só candidato a candidato, ele
publicou um vídeo no Facebook: as imagens o exibiam estourando um rojão
em frente ao Ministério da Defesa, com uma faixa agradecendo os
militares “por não terem permitido que o Brasil se transformasse em
Cuba”. “O 7 de Setembro nos deu a independência e o 31 de Março, a
liberdade”, afirmou.
Sim, o atual presidente defende que a tomada do poder pela força
pelos militares, deixando o Brasil sem eleições diretas para presidente
de 1964 a 1989; rasgando a Constituição e estabelecendo a censura;
obrigando alguns dos melhores quadros do Brasil a amargar o exílio;
prendendo, sequestrando e torturando, inclusive crianças,
e matando opositores é motivo de comemoração. E, como presidente da
República, determinou que os crimes contra a humanidade, portanto
imprescritíveis, que já deveriam ter sido devidamente punidos, sejam
agora comemorados oficialmente pelas Forças Armadas.
É possível o Brasil comemorar oficialmente a tortura e o assassinato de civis e seguir reconhecido como uma democracia?
Parem de ler agora. E pensem no que significa para um país comemorar o
sequestro, a tortura e o assassinato de civis por agentes do Estado,
assim como o que significa comemorar um golpe infligido por parte das
Forças Armadas. É possível isso acontecer, como ato de Governo, e o
Brasil seguir reconhecido como uma democracia?
Não. Simplesmente não é possível. Bolsonaro,
é preciso dizer, nunca fingiu ser o que não é. Há vídeos dele dizendo
que os militares mataram foi pouco. “Tinham que ter matado pelo menos
uns 30 mil” e “se morrerem inocentes tudo bem”, afirma num deles. Seu
herói declarado, Carlos Alberto Brilhante Ustra,
é um torturador, reconhecido pela justiça brasileira como torturador,
que chegou a levar crianças para ver os pais nus e arrebentados.
Bolsonaro, quando candidato, ameaçou mandar opositores para a “ponta da
praia”, referindo-se a uma base da Marinha usada como local de tortura e
desova de cadáveres pelo regime de exceção. Disse também que faria uma
“faxina” e que os opositores de seu Governo ou “vão para fora ou vão
para a cadeia”.
Pelo menos três opositores já afirmaram publicamente que foram
obrigados a deixar o Brasil por ameaças de morte. Polícia, Ministério
Público e judiciário se mostraram incapazes de protegê-los e garantir a
sua segurança. Nesta área, Bolsonaro está fazendo exatamente o que disse
que faria. Ele nunca deu motivos para que a população duvide do que diz
que fará com os opositores.
A questão, agora, é o que as instituições vão fazer com o anúncio de
Bolsonaro, apresentado pelo seu porta-voz, general Otávio Rêgo Barros. É
possível ainda esperar algo das instituições amedrontadas, quando não
coniventes? Como esperar algo quando o Supremo Tribunal Federal
é presidido por Dias Toffoli, que no ano passado corrompeu a história
ao declarar que o que aconteceu em 1964 e cassou os direitos da
população brasileira foi um “movimento”, não um golpe?
A Defensoria Pública da União e a Procuradoria Federal dos Direitos
do Cidadão já se manifestaram. Mas ainda é pouco. E ainda é tímido,
diante da enormidade do que significa comemorar o crime como ato de
Governo. Não apenas um crime comum, mas aquele que é considerado crime
contra a humanidade. A Comissão da Verdade
concluiu que a ditadura matou ou desapareceu com 434 suspeitos de
dissidência política e com mais de 8.000 indígenas. Entre 30 e 50 mil
pessoas foram torturadas.
Se as instituições e a sociedade brasileiras assistirem apáticas ao
presidente, Governo e Forças Armadas comemorarem o golpe militar que
sequestrou a democracia por 21 anos e deixou um rastro de mais de 200
pessoas desaparecidas, cujos pais e filhos não têm sequer um corpo para
enterrar, alcançaremos um outro nível de nosso trajetória acelerada rumo
ao autoritarismo. Daí em diante, qualquer pessoa que ousar dizer que
esse país vive numa democracia estará desrespeitando a inteligência e a
dignidade de uma nação inteira. Daí em diante, qual será o limite para
aqueles que fazem apologia do crime ocupando cargos públicos? Qual será o
limite para um presidente que faz golden shower na lei?
Uma pesquisa do Ibope mostrou que Bolsonaro já é o presidente mais
impopular em início de primeiro mandato desde 1995. Os 89 milhões de
brasileiros que não votaram em Bolsonaro, seja porque votaram no
candidato de oposição, seja porque se abstiveram de votar ou votaram
branco ou nulo, somados ao expressivo contingente que já se arrependeu
do voto no capitão reformado, terá que compreender que a luta pela
democracia é difícil – e não pode ser terceirizada. É isso. Ou aceitar
que a exceção, que já se infiltrou no cotidiano e avança rapidamente,
siga tomando conta da vida até o ponto em que já se tenha perdido
inclusive o direito aos fatos, como Bolsonaro e os militares pretendem
neste 31 de Março.
Bolsonaro e suas milícias digitais criaram a
autoverdade, mas ela só será imposta a um país inteiro se a população se
submeter a ela
Não queiram viver num país em que a autoverdade, aquela que dá a cada
um a prerrogativa de inventar seus próprios fatos, impere. Bolsonaro e suas milícias digitais criaram a autoverdade,
mas ela só será imposta a um país inteiro se a população brasileira se
submeter a ela. Afirmar que o golpe de 1964 não foi um golpe é mentira
de quem ainda teme responder pelos crimes que cometeu, como seus colegas
responderam em países que construíram democracias mais fortes e onde a
população conhece a sua história. Não há terror maior do que ser
submetido a uma realidade sem lastro nos fatos, uma narrativa construída
por perversos. O corpo de cada um passa a pertencer inteiramente aos
carcereiros.
Bolsonaro precisa manter o país queimando em ódio. Essa foi sua
estratégia para ser eleito, essa segue sendo a sua estratégia para se
manter no poder. Ele não tem outra. Se deixar de ser o incendiário que é
e virar presidente, ele se arrisca a perder sua popularidade. Sua
estratégia é governar apenas para as suas milícias, capazes de manter o
terror, parte delas somente por diversão.
Bolsonaro tornou-se o antipresidente: aquele que boicota seu próprio programa e enfraquece seu próprio ministério
Depois de ser o candidato “antissistema”, Bolsonaro é agora o
antipresidente. Esta novidade, a do antipresidente, é inédita no Brasil.
O antipresidente Bolsonaro é aquele que boicota seu próprio programa e
enfraquece seu próprio ministério, mantendo, também dentro do Governo,
como definiu o jornalista Afonso Benites, a guerra do todos contra todos.
Bolsonaro só pode existir num país mergulhado numa guerra interna.
Então, trata de alimentar essa guerra. A determinação oficial de
comemorar o golpe de 1964 é parte dessa estratégia. Vamos ver o quanto
os generais estrelados do seu governo são capazes de enxergar a casca de
banana. Ou se, ao contrário, escolherão deslizar por ela apenas como
desagravo aos anos em que ficaram acuados, temendo que o Brasil
finalmente fizesse justiça, julgando os crimes da ditadura como fizeram
os países vizinhos.
O atual presidente do Brasil é o mesmo político que, em 2009, botou
um cartaz na porta do seu gabinete: “Desaparecidos do Araguaia. Quem
procura osso é cachorro”. A imagem era a de um cachorro com um osso
atravessado entre os dentes. Na época, uma década atrás, o ato de
Bolsonaro era noticiado com o aposto: “o único parlamentar do Congresso
que defende abertamente a ditadura”. Não mais, como é possível
constatar.
A frase foi lembrada por manifestantes no Chile, na semana passada.
Os chilenos protestavam contra a visita de Bolsonaro ao seu país e
queriam despachá-lo imediatamente de volta para casa. Essa casa é o
Brasil, onde defensores da ditadura não só são aceitos como também são
eleitos e chamados de “mito”.
Os chilenos, que mandaram seus ditadores e torturadores para a
cadeia, consideraram inaceitável que um defensor da ditadura fosse
recebido pelo presidente Sebastián Piñera. Deputados chilenos pediram
que Bolsonaro fosse declarado “persona non grata”. O presidente do
Senado, Jaime Quintana Leal, recusou-se comparecer a um almoço em
homenagem ao brasileiro. “Admiradores de Pinochet não são bem vindos no
Chile”, afirmou. Bolsonaro já disse no passado que o general ditador
Augusto Pinochet “fez o que devia ter feito”. Ou seja: assassinar 3.000
civis.
Diante dos protestos, Bolsonaro afirmou: “Protestos assim existem
onde quer que eu vá, mas o importante é que, no meu país, fui eleito por
milhares de brasileiros”. Milhões, já que devemos respeitar os números.
Para os brasileiros que o elegeram, a sugestão de que os ossos das mais
de 200 pessoas desaparecidas do regime estão na boca de um cachorro foi
– e continua sendo – aceitável. Não sentem nenhuma empatia pelos pais,
mães, maridos, esposas e filhos que não têm sequer um túmulo onde chorar
suas perdas. E que foram torturados por essa imagem de absoluto
desrespeito. Mostram-se incapazes de compreender que um dia poderão ser
os ossos de suas mães ou de seus filhos na boca do cachorro. Já os
chilenos têm espanto. E têm vergonha. Vergonha por nós que aceitamos o
inaceitável.
Sebastián Piñera, um presidente de direita, buscou manter distância
das declarações pró-ditadura de Bolsonaro. “Essas frases são
tremendamente infelizes”, afirmou. Sua posição política, como prefere, é assim definida por ele: “centro-direita mais diversa, mais tolerante, mais moderna e sintonizada com a cidadania”.
A parcela dos brasileiros que se declara “antiesquerdista” precisa
compreender algo com urgência. O ponto do bolsonarismo não é ser de
esquerda ou ser de direita. O que Bolsonaro faz seguidamente é apologia
ao crime e incitação à violência. Isso não tem nada a ver com ser de
esquerda ou ser de direita. Uma pessoa de direita, mas com decência e
respeito à lei, não faz apologia ao crime nem incitação à violência. Uma
pessoa de esquerda, mas com decência e respeito à lei, também não faz
apologia ao crime nem incitação à violência.
O que Bolsonaro pratica é de outra ordem – e não é do jogo
democrático. É essa diferença que o presidente chileno, reconhecidamente
de direita, fez questão de marcar antes de ser contaminado pela
truculência de uma ideologia com a qual não se identifica. No Brasil,
infelizmente, parte da direita tem aceitado o inaceitável e demora a
perceber que pagará caro por isso.
Os brasileiros adoecem também de apatia. Só assim para explicar como o
ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, pode fazer apologia do
crime duas vezes numa só semana, assim como ameaçar e chantagear uma
nação inteira, e rigorosamente nada acontecer. Ao defender a reforma da
Previdência, o ministro de Bolsonaro afirmou: “O Chile lá atrás teve que
dar um banho de sangue para aprovar princípios macroeconômicos”.
Os chilenos se revoltaram. Ivan Flores, presidente da Câmara dos Deputados do Chile, afirmou que as declarações de Onyx são "um desatino sem paralelo"
e uma grave ofensa às vítimas da ditadura de Pinochet. “A menção deste
porta-voz do presidente Bolsonaro, um personagem importante do Governo
brasileiro, a um ‘banho de sangue’ no Chile, é uma afronta a todas as
pessoas que perderam familiares, a todos que sofreram com as violações
de direitos humanos”. O parlamentar, que também se recusou a almoçar com
Bolsonaro, afirmou que acreditava jamais "ter experimentado algo
parecido" antes.
Os brasileiros não se ofendem. Convivem. À direita e à esquerda, a população tem se submetido à administração do ódio praticada pelo bolsonarismo.
É esta a maior derrota. Não para a direita ou para a esquerda, mas para
a civilização, para que qualquer um possa dar bom dia para o vizinho
sem temer ser agredido. Ou para que um estudante possa ir à escola e ter
certeza que vai sair dela vivo.
À direita e à esquerda, a população tem se submetido à administração do ódio praticada pelo bolsonarismo
A cada agressão do presidente ou de sua turma, um espasmo. E outra
agressão. E outro espasmo. E tudo vai se banalizando. O que é uma
anomalia vira normal. Bolsonaro é sintoma dessa normalização da exceção
que é muito anterior a ele. Ele soube crescer e se tornar útil dentro
dela e a ampliou a níveis inéditos. Ele e sua turma sabem também usar a
deformação da democracia brasileira a seu favor e, ao governar pela
administração do ódio, justificar tanto a incompetência demonstrada nos
primeiros três meses no poder quanto criar inimigos para se manter
necessários ao país. Enquanto não arranjarem uma guerra externa, vão
mantendo a guerra viva aqui dentro.
O discurso dos pesos e contrapesos é bonito, soa bem nos salões.
Parece até funcionar razoavelmente bem em alguns países. No Brasil,
porém, as instituições já demonstraram ser incapazes de proteger a
democracia. Bolsonaro, que se elegeu fazendo apologia ao crime e
incitando o ódio às minorias, é a prova mais enfática da fragilidade das
instituições.
A oposição, por sua vez, submeteu-se ao jogo de guerra do
bolsonarismo e parece estar dominada por ele. Como a população, a
oposição parece só conseguir reagir com outro espasmo. E reagir sem
organização mínima, ocupada com suas próprias brigas internas. A
esquerda, e também a direita que não é bandida, precisam responder com
projetos, precisam convencer as pessoas que sua ideia é melhor para a
vida, precisam mostrar qual é a diferença.
Como apontou a filósofa Tatiana Roque, em entrevista a este jornal,
é preciso contrapor à reforma da Previdência de Bolsonaro uma outra
reforma da Previdência que reforme o que precisa ser reformado, sem
tornar a vida dos mais pobres ainda pior. Não adianta ficar apenas
gritando contra a reforma da Previdência. É preciso, sim, fazer uma
reforma da Previdência. Mas não essa que está aí. Então qual? O que as
pessoas querem saber é como a vida pode ficar melhor. Parte da crise
global das democracias se deve à incapacidade de democratas e de
governos democráticos de tornar melhor a vida da população ou de apontar
claramente como podem fazer isso.
Com instituições fracas e uma oposição sem projeto, diante de um
governo em que o mais moderado é um general que já defendeu um autogolpe
com o apoio das Forças Armadas, a barbárie dos dias se acentua. Tudo
indica que vai piorar. Porque está piorando. A incompetência explícita
do bolsonarismo faz com que a necessidade de ampliar a violência “contra
todos os que não são iguais a mim”, com o objetivo de ampliar a
sensação de guerra interna, também aumente. Sem projeto consistente, o
governo que aí está só pode apostar no ódio para se manter. E vai seguir
apostando. O ódio não é o oposto do amor, mas sim da justiça. É justiça
que Bolsonaro não quer.
Os brasileiros vão precisar compreender que a democracia terá que ser
defendida por cada um, se colocando junto com o outro. Às vezes só dá
mesmo para gritar. Mas é preciso fazer um esforço maior para responder
com projetos, com propostas, com ação que não seja apenas uma reação,
mas uma alternativa que permita a vida e promova vida no espaço público.
Será assim, ou não será. Não é que tenha outro. Só tem você mesmo. Com o
outro.
Podemos aprender algo com a artista russa Nadya Tolokonnikova .“A ação não deve ser uma reação, mas uma criação”, ela escreveu. Nadya é uma das integrantes da banda Pussy Riot
que foi presa em 2012 pelo Governo do déspota Vladimir Putin. Entre as
músicas tocadas em suas intervenções de ação direta, em espaços públicos
de Moscou, uma delas era: “Putin se mijou na calça”. Não há nada que os
déspotas temem mais do que aqueles que riem deles. Para manter o medo e
o ódio ativos é preciso banir o riso e o humor. Nadya aprendeu a rir de
seus carcereiros nos dois anos em que ficou na prisão por ousar
confrontar o autoritarismo do regime, provocando um movimento de
solidariedade global.
Na abertura do livro Pussy Riot, um guia punk para o ativismo político,
a artista de 29 anos parece estar escrevendo para os brasileiros que
vivem sob a administração do ódio de Bolsonaro e de suas milícias
digitais. O livro, traduzido para o português por Jamille Pinheiro Dias e
Breno Longhi, com ilustrações de Roman Durov, será lançado no Brasil em
22 de abril, pela editora Ubu. Antes, a banda fará dois shows no
Brasil, em 19 (Recife) e 20 (São Paulo).
Nadya se refere a Donald Trump, que tem Bolsonaro como um pet exótico do sul do mundo:
“Quando Trump ganhou a eleição presidencial,
as pessoas ficaram profundamente chocadas. Na verdade, o que aconteceu
no dia 8 de novembro de 2016 foi a ruptura do paradigma do contrato
social – a ideia de que podíamos viver confortavelmente sem sujar as
mãos nos envolvendo com política, de que bastava um voto a cada quatro
anos (ou voto nenhum: o pressuposto de que se está acima da
política) para resguardar as próprias liberdades. Essa crença – a de que
as instituições estão aqui para nos proteger e zelar por nós, e de que
não precisamos nos preocupar em proteger essas instituições da
corrupção, de lobistas, dos monopólios, do controle corporativo e
governamental sobre nossos dados pessoais – veio abaixo. Nós
terceirizávamos a luta política da mesma forma que terceirizávamos as
vagas de trabalho mais mal remuneradas e as guerras.
“Não dá para continuar vivendo achando que é possível não ‘sujar as mãos com a política’ ou acreditando estar acima da política”
Os sistemas atuais não conseguiram oferecer
respostas aos cidadãos, de modo que as pessoas começaram a buscar
soluções fora do espectro político dominante. Essas insatisfações estão
agora sendo usadas por políticos de direita,
xenófobos, oportunistas, corruptos e cínicos. Os mesmos que ajudaram a
criar e a agravar esse cenário vêm agora nos oferecer salvação. Esse é o
jogo deles. É a mesma estratégia de cortar os fundos de um programa ou
uma agência reguladora dos quais eles queiram se livrar e depois usar a
ineficácia resultante disso como prova de que essas iniciativas ou
órgãos precisam ser desfeitos”.
Basta trocar a data para 28 de outubro de 2018, dia da eleição de
Bolsonaro, e o nome do presidente. E a análise segue com alta precisão,
ainda que Bolsonaro seja muito mais autoritário do que Trump e as
instituições brasileiras muito mais frágeis do que as americanas.
Bolsonaro é tão tosco que até mesmo a ultradireitista Fox News
achou melhor tornar explícito que não compactuava com o pensamento do
antipresidente brasileiro: afirmou que os comentários de Bolsonaro sobre
a comunidade LGBTQI eram “incompatíveis com os valores americanos”. Ao
entrevistar o antipresidente brasileiro, perguntou diretamente sobre o
assassinato de Marielle Franco
e a ligação da bolsomonarquia com as milícias cariocas. Ou seja:
Bolsonaro é um constrangimento mesmo nos redutos mais direitistas do
país que mais ama, os Estados Unidos. Seu suposto nacionalismo, como a
visita aos Estados Unidos provou, é de chorar de rir.
Em outro trecho do livro, a artista também parece falar diretamente
com os brasileiros que pensam em desistir ou acham que já chegaram ao
seu limite: “As condenações de ativistas políticos foram naturalizadas
na opinião pública. Quando pesadelos se tornam constantes, as pessoas
param de agir. É assim que a apatia e a indiferença triunfam”. Em
seguida, finca as unhas: “As dificuldades e os fracassos não são razão
suficiente para renunciarmos ao ativismo. Sim, porque as mudanças
sociais e políticas não se dão de forma linear. Às vezes é preciso lutar
por anos para obter um resultado mínimo”.
A autoridade de suas palavras é conferida por um dos mais fortes
ativismos deste século. Quase dois anos de prisão e trabalhos forçados
não a fizeram recuar nem perder a ingenuidade, para ela um valor ético e
também estético. “Se tivéssemos que apontar um inimigo, eu diria que
nosso maior inimigo é a apatia. Se não estivéssemos de mãos atadas pela
ideia de que é impossível mudar as coisas, seríamos capazes de alcançar
resultados fantásticos. O que nos falta é a confiança de que as
instituições podem realmente funcionar melhor e de que nós somos capazes
de fazê-las funcionar melhor. As pessoas não acreditam no enorme poder
que elas têm. Este poder que, por algum motivo, não usam”.
Neste momento, a novíssima geração, a que nasceu depois da geração das integrantes da Pussy Riot,
está criando um movimento global espantoso. A juventude pelo clima,
inspirada por uma sueca de 16 anos com diagnóstico de Asperger, colocou
1,5 milhão de estudantes secundaristas nas ruas de cidades do mundo
em 15 de março para denunciar a falta de ação dos governos diante da
crise climática. Oito meses antes, nada disso existia. Em agosto de
2018, Greta Thunberg fez greve da escola e se postou sozinha diante do parlamento sueco. Agora, o movimento é uma potência.
Brasileiros de todas as idades precisam aprender, pra ontem, com as
gerações mais novas. É isso ou seguir condenado a assistir à queda de
braço entre Jair Bolsonaro e Rodrigo Maia. Sério que é este o ponto alto
do debate nacional, antes de vir outro do mesmo nível ou pior? É este
mesmo o nosso destino? Sério mesmo que o maior crítico da militarização
do governo é Olavo de Carvalho, por motivos bem outros em sua calculada
disputa de poder? E é ele o maior crítico porque parte dos que poderiam
criticar a militarização do governo por motivos legítimos e urgentes
começam a achar que Hamilton Mourão, o vice general, é uma graça? É
assim mesmo que vamos viver, esperando o que virá depois, caso exista um
depois?
Como diz a Pussy Riot Nadya Tolokonnikova, “a esperança virá dos desesperados”. Espero que ela tenha razão.
. Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
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