O
analfabeto geopolítico assiste diariamente aos poucos minutos dos
noticiários internacionais da grande mídia brasileira e já se considera
extremamente capaz de se posicionar sobre o complexo cenário da
geopolítica contemporânea. Ele não recorre a obras de autores como Eric
Hobsbawm, Noam Chomsky, Milton Santos ou Domenico Losurdo em suas
análises sobre a geopolítica global, pois estes pensadores são
“doutrinadores comunistas”, mentores intelectuais dos “movimentos
globalistas”. Além do mais, livros de História, Geografia ou Ciências
Sociais são obras prolixas, chatas e démodé. Aprofundar-se em
um determinado assunto é coisa de acadêmico, um tipo social que o
analfabeto geopolítico abomina. Os únicos professores universitários que
ele respeita são aqueles neocons que aparecem em programas de TV
pregando o conservadorismo como ideologia e prática governista, isto é,
lembrando as palavras de Chico Buarque, que defendem uma diplomacia que
fala “grosso” com a Bolívia e “fino” com os Estados Unidos.
O analfabeto geopolítico prefere o imediatismo à reflexão. Formula suas opiniões a partir das ideias de alguns youtubers
confiáveis e se mantém atualizado sobre o que acontece no mundo por
meio de postagens de amigos e parentes nas redes sociais. Quando assiste
a um vídeo de poucos minutos na Internet, em que um youtuber
“refuta” todo o pensamento de Marx, o analfabeto geopolítico já se sente
com argumentos suficientes para “lacrar” nas principais redes sociais.
Para o analfabeto geopolítico, os maniqueísmos midiáticos são
suficientes para explicar os focos de tensão do mundo contemporâneo. Ele
percebe as relações internacionais a partir de um raciocínio
dicotômico, entre nós e eles (os diferentes). Os antagonismos entre
Mundo Islâmico e Ocidente, que datam, pelo menos, ao período da expansão
muçulmana no século VII, podem ser devidamente reduzidos a dicotomias
como “civilização versus barbárie”, “luzes versus
obscurantismo”, ou, lembrando os famosos épicos de Hollywood, a uma
“batalha do bem contra o mal”. Ele também desconhece as divisões
arbitrárias e as rivalidades étnicas criadas pelos europeus no
continente africano. Consequentemente, a geopolítica da África é aquela
presente em produções hollywoodianas, e os antagonismos entre diferentes
grupos culturais africanos são causados por rivalidades seculares, que
nada têm a ver com a interferência dos “civilizados” europeus. Do mesmo
modo, a chamada “Questão Palestina” não se trata de disputas por
territórios, seria um suposto ódio histórico entre judeus e muçulmanos.
Para o analfabeto geopolítico, o complexo fenômeno do terrorismo
internacional é percebido somente a partir de sua representação
midiática, suas causas seriam meramente religiosas. Estes ataques são
consequências da inveja que os fanáticos islamitas sentem de nós,
civilizados ocidentais. “Contextualizar”, “relacionar”, “complexificar” e
“refletir” são verbos definitivamente banidas do vocabulário do
analfabeto geopolítico. Para ele, a presença imperialista no Oriente
Médio tem por único e cândido objetivo levar a “democracia” aos déspotas
árabes (diga-se de passagem, o analfabeto geopolítico não sabe
diferenciar “muçulmano” de “árabe”). Por que tem tanta convocação? Ele
se informou através da Associated Press, da United Press International,
da Agence France Press e da Reuters. Como poderosas agências
internacionais de notícias, que dispõem de altas tecnologias da
comunicação, originárias de países de Primeiro Mundo, poderiam se
equivocar? É fato: o analfabeto geopolítico também incorporou muito bem o
chamado “complexo de vira-latas”: tudo o que vem das nações do norte,
com certeza, é melhor do que o nosso.
O léxico geopolítico da grande mídia está na ponta da língua do
analfabeto geopolítico. Palavras e expressões como “democracia”,
“ditador”, “ajuda humanitária” ou “comunidade internacional”, por
exemplo, são espécies de fetiches. Por si só, já explicam uma
determinada questão das relações internacionais. “Israel é a única
democracia do Oriente Médio”, logo está justificado o genocídio do povo
palestino, “os Estados Unidos são a maior democracia do planeta”,
consequentemente podem intervir em qualquer país mundo afora. Aliás,
para o analfabeto geográfico, intervenções estadunidenses não são “ações
militares”, tampouco podem ser qualificadas como “guerras”, mas “ajudas
humanitárias”. Países como Iraque, Afeganistão ou Síria que o digam.
Não obstante, o fato de os dois únicos partidos estadunidenses
eleitoralmente viáveis – Democrata e Republicano – serem praticamente
iguais no sentido ideológico, fator que para qualquer sistema
minimamente democrático é algo extremamente danoso, consiste em mero
detalhe para o analfabeto geopolítico. Por outro lado, todo governante
que ofereça a mínima resistência aos interesses de Washington é,
automaticamente, um “ditador”. O fato de ele ter sido eleito ou não pelo
voto popular é o que menos importa.
A expressão “comunidade internacional” – recurso metonímico que
difunde os interesses estadunidenses como se fossem os interesses de
todo o planeta – é um termômetro para os posicionamentos do analfabeto
geopolítico, que, via de regra, sofre de preguiça cognitiva.
Parafraseando um conhecido dito popular, “aonde a comunidade
internacional vai, o analfabeto geopolítico vai atrás”. Ele condena
veemente os programas nucleares do Irã e da Coreia do Norte, mas apoia
incondicionalmente o programa nuclear que mais danos causou à
humanidade: o estadunidense. Falando em seletividade, vez ou outra,
algum analfabeto geopolítico se mostra engajado sobre questões
internacionais. Nas redes sociais cita Nelson Mandela, mas no shopping
prefere o apartheid. Ele também denuncia violações de direitos
humanos em Cuba ou na Síria, mas quando assiste aos noticiários
policialescos da mídia brasileira, afirma que direitos humanos aqui no
Brasil é “direito dos manos” e argumento para “defender bandido”.
Mesmo que a história insista em demonstrar o contrário, o analfabeto
geopolítico tem suas “próprias verdades”. O nazismo é de esquerda, o
Foro de São Paulo tem por objetivo implantar o comunismo na América
Latina e a escravidão no Brasil foi somente uma transferência
continental da escravidão que já existia na África.
O analfabeto geopolítico se orgulha de sua ignorância. Não pode ver
uma vergonha, que quer logo passar. Diferentemente do “analfabeto
político” de Brecht, o “analfabeto geopolítico” não bate no peito e diz
que odeia geopolítica. Pelo contrário, ele não se furta de explicitar
seus posicionamentos controversos. O analfabeto geopolítico é o hater
das redes sociais, o “idiota da aldeia” citado por Umberto Eco, o pobre
de direita e o fantoche nas mãos dos poderosos do planeta. Trata-se do
típico oprimido terceiro-mundista que adota a ideologia imperialista do
opressor. Nesse sentido, Simone de Beauvoir já dizia que o opressor não
seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos.
Esta é, talvez, a principal função do analfabeto geopolítico: contribuir
para que, no plano discurso/simbólico, o processo de dominação de
poucas nações sobre o restante do planeta siga o seu curso sem maiores
contratempos.
**
Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia
pela UFSJ e professor do PROEJA do IFES – Campus Vitória. Autor (em
parceria com Vicente de Paula Leão) do livro A influência dos discursos
geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas pedagógicas e
imaginários discentes, publicado pela editora CRV.
Nenhum comentário:
Postar um comentário