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terça-feira, 19 de março de 2019

A MORTE (CONTO - PARTE VII), POR ALEXANDRE MEIRA


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Frio. Era madrugada. A mata fechada chiava horrendamente em seus múltiplos sons. Um mal cheiro tomava aquele pedaço de selva onde um menino de seis anos abraçava os joelhos e com os olhos trêmulos e arregalados olhava para tudo que se movia. Eventuais lampejos de luz o assustavam. Uma tempestade se aproximava. Não chorava, apenas um ruído triste como uma lamúria emitia com a boca contraída de medo. O barulho constante da cachoeira invisível no fundo lhe dava a certeza de que água haveria caso precisasse, mas o medo profundo o impedia sequer de se mexer.
Algo como um grito grave se ouviu de longe.
O que João vira após acordar naquele lugar, era tão assustador que o congelou em estado de choque. A fome e a sede ficavam em segundo plano, e o seu lamento compulsivo como um animal acuado e ferido se misturavam com os sons indescritíveis da madrugada. Outro raio iluminou o seu derredor, e novamente aquele panorama se apresentava nocivo a sua frente. Quase doze horas se passaram desde que ele acompanhou seus primos Esaú e Jacó para a trilha da Pedra do Gavião. Caminhara horas com eles dentro da mata até quase anoitecer, o medo e o cansaço crescentes de todos ele lembrava bem. Depois disso não se recordava de mais nada.
Passos! Talvez não... Outro grito monstruoso.
Ele não sabia. Mas sob aquela mesma árvore sua mãe passara chorando em processo de parto seguindo pela trilha morro acima. João não sabia onde estava exatamente, mas ali naquela mata ele nasceu. Os olhos esbugalhados miravam a seqüência sombria da trilha, como se esperasse que algo saísse de lá, já que seus primos não sairiam mais. As histórias daquele lugar para um menino de seis anos ressoavam em sua memória como uma tortura sem fim.

E ele sempre ouviu dizer que era parte dessas histórias.
João se arrepiou. O pelo de seus braços eriçaram quando uma imagem pareceu se formar por detrás da escuridão.
Enfiou a cabeça entre as pernas para não ver. Ouviu uma gargalhada ao longe. Um arrepio fino correu sua nuca.
- Mãe...- o menino falou pra si.
Algo correr sobre seus pés.
Não havia lua que iluminasse completamente a mata, já que toda luminosidade esbarrava na copa das árvores. Apenas os clarões dos relâmpagos permitiam revisitar o que havia a sua volta.
João ouvia sua respiração forte. Ofegante.
Na saída da trilha escutou algo se mover.
                      Com a cabeça comprimida entre as pernas João também ouviu alguns passos intermitentes. Seu coração disparou. Trancou os olhos. Os passos se aproximavam cada vez mais. Cerrou os punhos de medo.
                    Quando os passos pareciam estar diante de si, não aguentou e gritou de desespero:
- Mãe!!!!!!!!!!!
                       Os passos cessaram. A expectativa fez o menino não respirar.
Uma voz irregular e sombria respondeu:
- Estou aqui...

A razão de todo o seu medo se revelou.

João ergueu a cabeça e tomado por um suor gelado pôde ver de baixo para cima, a sua frente, a sombria imagem de uma mulher, imensa, com uma saia negra, que escondia as pernas, a pele muito branca, e uma vasta cabeleira escura. Em seu rosto, procurou os olhos, não havia, não se via semblante. Era noite, mas sua imagem pareceu resplandecer dentro de sua identidade funérea. Parecia flutuar a meia altura. Aterrorizado, o menino João iniciou um choro copioso ao abaixar a cabeça novamente, mas ouviu a voz reincidente como um sussurro desafinado:
- Eu sabia que você viria. Você é parte de mim João. O medo que tens de mim é o medo que terão de você...
João lembrou das brincadeiras dos primos sobre a Mãe Naná. Ele se aterrorizou por imaginar que poderia ser ela. Diante dela os segundos não passavam, achou que fosse morrer. O garoto num lapso de coragem ergueu os olhos novamente. Ela não estava mais a sua frente. Respirou fundo. Suas mãos tremiam incontrolavelmente. Queria olhar para os lados mas o medo era sempre maior. Lembrou do cenário que vira ao acordar. Aquilo tudo estava ainda ali em sua volta, não poderia sequer correr.
Terror era a palavra.
Outro clarão seguido de um estrondo e um vento quente anunciavam a tempestade iminente. O menino pareceu tonto, uma confusão mental aliada a fome e sede o fizeram quase deitar em vertigem. O pavor, entretanto, o manteve acordado. Com os olhos fechados ele recostava a cabeça na árvore atrás de si para tentar  liberar a tensão dos músculos, quando sentiu seu corpo se erguer lentamente. Foi a pior sensação que tivera em sua curta vida. Ninguém o segurava. João começou então a gritar desesperadamente, embora não consiguisse se mexer nem enxergar nada. João estava levitando.
Um arrepio seguido de uma dor aguda na nuca o atacou.
Aquela mesma voz reverberava agora dentro de sua cabeça:
- Hoje é um dia importante pra mim João, e pra você também... Obrigado por me trazer essa oferenda...
Seus primos. João chorou implorando piedade sem saber ao certo naquela tenra idade o que aquilo significaria. Repetiu o que ouvira dos lamentos religiosos de sua família. Sua vida, mal sabia ele, lhe reservaria mais pedidos de piedade. Muitos mais. Nenhum deles, porém, proferidos por sua própria voz. Sentia seu corpo flutuar a metros de altura, quase na copa das árvores, quando um último clarão se deu no local, e com incalculável temor, pode ver, enfim.
A imagem sinistra de uma mulher estranha de olhar implacável o encarava causticamente a centímetros do seu rosto. Um hálito quente e um cheiro forte de perfume doce foram inesquecíveis pra ele. João gritou mas sem sair a voz:
- Mãe!!!!!
Um barulho ensurdecedor de trovão iluminou toda a mata e o fez cair rápido sob o grande susto. João desmaiou com o impacto no solo por alguns minutos.
Ainda recuperando os sentidos o menino procurou esconder o rosto entre as mãos para não ouvir mais aquela voz. Sentiu suas mãos molhadas. Quando um raio iluminou pode vê-las encharcadas de sangue. Era sangue. Subitamente o sussurro bizarro e desafinado retornou.
- Veja o que nós fizemos...
Ele mal podia entender.
Trêmulo João procurava esfregar as mãos na terra. Esfregava com muita força. Lembrou de seus primos, e começou a soluçar. “Eu não fiz isso.” - dizia o menino pra si com o coração disparado. Dosando o respirar, pela primeira vez naquele tempo todo sentiu muita fome. João envelheceu anos naqueles instantes. Ele tinha que se acalmar. Precisava rezar como sua mãe lhe ensinara, mas não conseguia se lembrar. Ajoelhou-se e baixou a cabeça procurando se distanciar de tudo. Lembrou de Bento e sua mãe. Lembrou de sua tia Mercedes. Contou até três.
João deu um grito de pavor.
Uma mão forte segurou sua cabeça e uma luz o ofuscou.  O pesadelo havia recomeçado.
- Graças a Deus!
A voz era de Bento. Com mais algumas pessoas que chegavam procurando os meninos, eles logo se espalharam pela mata em torno de João. O menino mal conseguia abraça-lo, encarnou apenas um choro desmedido e uma respiração frenética com os olhos intranqüilos.
- Fala filho! Onde estão seus primos?!Onde estão seus primos!?!? - Inquiriu Bento militarmente.
Bento iluminou o corpo de João com a lanterna em busca de algum machucado ou algo do tipo. Logo esbarrou com as manchas de sangue em sua própria blusa. Eram as marcas deixadas pelas mãos pequenas de João ao agarra-lo com medo. Viu que João também estava com sangue nas mãos, mas sem nenhum machucado. Sem entender, Bento deixou escapar:
- João... O que...?
Logo um dos homens o interrompeu:
- Sargento, dá uma olhada nisso aqui...
Abraçando o menino contra o corpo, Bento levantou e mesmo com os olhos ofuscados pôde ver o círculo formado pelos homens munidos de lanterna. Eles iluminaram todo aquele espaço exibindo um dos piores cenários que já vira em sua vida de militar.
- Meu Deus...
Era real. Terrivelmente real.
Uma série de pedaços irreconhecíveis de corpos descarnados e dilacerados estavam espalhados exalando um cheiro forte de sangue e carne. Os homens simples que acompanhavam Bento passaram a sentir medo. Era visível em seus olhos. Um misto de pavor e susto fizeram Bento sequer se aproximar. Mas ali naquele cenário, identificou algo que irremediavelmente mudaria a vida de toda aquela família, e principalmente daquele menino em seu colo. Tão simples e tão cruel.
Bento reconheceu os inconfundíveis chinelos dos gêmeos. Os dois pares espalhados de maneira disforme, quase o fizeram chorar.
Esaú e Jacó, amicíssimos e inseparáveis, não mais retornariam para casa.
Ainda assim pode sentir o coração de João contra seu corpo aos poucos se acalmar.


***

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