Frio.
Era madrugada. A mata fechada chiava horrendamente em seus múltiplos sons. Um
mal cheiro tomava aquele pedaço de selva onde um menino de seis anos abraçava
os joelhos e com os olhos trêmulos e arregalados olhava para tudo que se movia.
Eventuais lampejos de luz o assustavam. Uma tempestade se aproximava. Não
chorava, apenas um ruído triste como uma lamúria emitia com a boca contraída de
medo. O barulho constante da cachoeira invisível no fundo lhe dava a certeza de
que água haveria caso precisasse, mas o medo profundo o impedia sequer de se
mexer.
Algo
como um grito grave se ouviu de longe.
O que
João vira após acordar naquele lugar, era tão assustador que o congelou em
estado de choque. A fome e a sede ficavam em segundo plano, e o seu lamento
compulsivo como um animal acuado e ferido se misturavam com os sons
indescritíveis da madrugada. Outro raio iluminou o seu derredor, e novamente
aquele panorama se apresentava nocivo a sua frente. Quase doze horas se
passaram desde que ele acompanhou seus primos Esaú e Jacó para a trilha da
Pedra do Gavião. Caminhara horas com eles dentro da mata até quase anoitecer, o
medo e o cansaço crescentes de todos ele lembrava bem. Depois disso não se
recordava de mais nada.
Passos!
Talvez não... Outro grito monstruoso.
Ele não
sabia. Mas sob aquela mesma árvore sua mãe passara chorando em processo de
parto seguindo pela trilha morro acima. João não sabia onde estava exatamente,
mas ali naquela mata ele nasceu. Os olhos esbugalhados miravam a seqüência
sombria da trilha, como se esperasse que algo saísse de lá, já que seus primos
não sairiam mais. As histórias daquele lugar para um menino de seis anos
ressoavam em sua memória como uma tortura sem fim.
E ele
sempre ouviu dizer que era parte dessas histórias.
João se
arrepiou. O pelo de seus braços eriçaram quando uma imagem pareceu se formar
por detrás da escuridão.
Enfiou a
cabeça entre as pernas para não ver. Ouviu uma gargalhada ao longe. Um arrepio
fino correu sua nuca.
-
Mãe...- o menino
falou pra si.
Algo
correr sobre seus pés.
Não
havia lua que iluminasse completamente a mata, já que toda luminosidade
esbarrava na copa das árvores. Apenas os clarões dos relâmpagos permitiam
revisitar o que havia a sua volta.
João
ouvia sua respiração forte. Ofegante.
Na saída
da trilha escutou algo se mover.
Com a cabeça comprimida
entre as pernas João também ouviu alguns passos intermitentes. Seu coração
disparou. Trancou os olhos. Os passos se aproximavam cada vez mais. Cerrou os
punhos de medo.
Quando os passos pareciam
estar diante de si, não aguentou e gritou de desespero:
-
Mãe!!!!!!!!!!!
Os passos cessaram. A expectativa fez
o menino não respirar.
Uma voz
irregular e sombria respondeu:
-
Estou aqui...
A razão
de todo o seu medo se revelou.
João
ergueu a cabeça e tomado por um suor gelado pôde ver de baixo para cima, a sua
frente, a sombria imagem de uma mulher, imensa, com uma saia negra, que
escondia as pernas, a pele muito branca, e uma vasta cabeleira escura. Em seu
rosto, procurou os olhos, não havia, não se via semblante. Era noite, mas sua
imagem pareceu resplandecer dentro de sua identidade funérea. Parecia flutuar a
meia altura. Aterrorizado, o menino João iniciou um choro copioso ao abaixar a
cabeça novamente, mas ouviu a voz reincidente como um sussurro desafinado:
- Eu
sabia que você viria. Você é parte de mim João. O medo que tens de mim é o medo
que terão de você...
João
lembrou das brincadeiras dos primos sobre a Mãe Naná. Ele se aterrorizou por
imaginar que poderia ser ela. Diante dela os segundos não passavam, achou que
fosse morrer. O garoto num lapso de coragem ergueu os olhos novamente. Ela não
estava mais a sua frente. Respirou fundo. Suas mãos tremiam incontrolavelmente.
Queria olhar para os lados mas o medo era sempre maior. Lembrou do cenário que
vira ao acordar. Aquilo tudo estava ainda ali em sua volta, não poderia sequer
correr.
Terror
era a palavra.
Outro
clarão seguido de um estrondo e um vento quente anunciavam a tempestade
iminente. O menino pareceu tonto, uma confusão mental aliada a fome e sede o
fizeram quase deitar em vertigem. O pavor, entretanto, o manteve acordado. Com
os olhos fechados ele recostava a cabeça na árvore atrás de si para tentar liberar a tensão dos músculos, quando sentiu
seu corpo se erguer lentamente. Foi a pior sensação que tivera em sua curta
vida. Ninguém o segurava. João começou então a gritar desesperadamente, embora
não consiguisse se mexer nem enxergar nada. João estava levitando.
Um
arrepio seguido de uma dor aguda na nuca o atacou.
Aquela
mesma voz reverberava agora dentro de sua cabeça:
-
Hoje é um dia importante pra mim João, e pra você também... Obrigado por me
trazer essa oferenda...
Seus
primos. João chorou implorando piedade sem saber ao certo naquela tenra idade o
que aquilo significaria. Repetiu o que ouvira dos lamentos religiosos de sua
família. Sua vida, mal sabia ele, lhe reservaria mais pedidos de piedade. Muitos
mais. Nenhum deles, porém, proferidos por sua própria voz. Sentia seu corpo
flutuar a metros de altura, quase na copa das árvores, quando um último clarão
se deu no local, e com incalculável temor, pode ver, enfim.
A imagem
sinistra de uma mulher estranha de olhar implacável o encarava causticamente a
centímetros do seu rosto. Um hálito quente e um cheiro forte de perfume doce
foram inesquecíveis pra ele. João gritou mas sem sair a voz:
-
Mãe!!!!!
Um
barulho ensurdecedor de trovão iluminou toda a mata e o fez cair rápido sob o
grande susto. João desmaiou com o impacto no solo por alguns minutos.
Ainda
recuperando os sentidos o menino procurou esconder o rosto entre as mãos para
não ouvir mais aquela voz. Sentiu suas mãos molhadas. Quando um raio iluminou
pode vê-las encharcadas de sangue. Era sangue. Subitamente o sussurro bizarro e
desafinado retornou.
-
Veja o que nós fizemos...
Ele mal
podia entender.
Trêmulo
João procurava esfregar as mãos na terra. Esfregava com muita força. Lembrou de
seus primos, e começou a soluçar. “Eu não fiz isso.” - dizia o menino
pra si com o coração disparado. Dosando o respirar, pela primeira vez naquele
tempo todo sentiu muita fome. João envelheceu anos naqueles instantes. Ele
tinha que se acalmar. Precisava rezar como sua mãe lhe ensinara, mas não
conseguia se lembrar. Ajoelhou-se e baixou a cabeça procurando se distanciar de
tudo. Lembrou de Bento e sua mãe. Lembrou de sua tia Mercedes. Contou até três.
João deu
um grito de pavor.
Uma mão
forte segurou sua cabeça e uma luz o ofuscou.
O pesadelo havia recomeçado.
-
Graças a Deus!
A voz
era de Bento. Com mais algumas pessoas que chegavam procurando os meninos, eles
logo se espalharam pela mata em torno de João. O menino mal conseguia
abraça-lo, encarnou apenas um choro desmedido e uma respiração frenética com os
olhos intranqüilos.
-
Fala filho! Onde estão seus primos?!Onde estão seus primos!?!? - Inquiriu Bento militarmente.
Bento
iluminou o corpo de João com a lanterna em busca de algum machucado ou algo do
tipo. Logo esbarrou com as manchas de sangue em sua própria blusa. Eram as
marcas deixadas pelas mãos pequenas de João ao agarra-lo com medo. Viu que João
também estava com sangue nas mãos, mas sem nenhum machucado. Sem entender,
Bento deixou escapar:
-
João... O que...?
Logo um
dos homens o interrompeu:
-
Sargento, dá uma olhada nisso aqui...
Abraçando
o menino contra o corpo, Bento levantou e mesmo com os olhos ofuscados pôde ver
o círculo formado pelos homens munidos de lanterna. Eles iluminaram todo aquele
espaço exibindo um dos piores cenários que já vira em sua vida de militar.
- Meu
Deus...
Era
real. Terrivelmente real.
Uma
série de pedaços irreconhecíveis de corpos descarnados e dilacerados estavam
espalhados exalando um cheiro forte de sangue e carne. Os homens simples que
acompanhavam Bento passaram a sentir medo. Era visível em seus olhos. Um misto
de pavor e susto fizeram Bento sequer se aproximar. Mas ali naquele cenário,
identificou algo que irremediavelmente mudaria a vida de toda aquela família, e
principalmente daquele menino em seu colo. Tão simples e tão cruel.
Bento
reconheceu os inconfundíveis chinelos dos gêmeos. Os dois pares espalhados de
maneira disforme, quase o fizeram chorar.
Esaú e
Jacó, amicíssimos e inseparáveis, não mais retornariam para casa.
Ainda
assim pode sentir o coração de João contra seu corpo aos poucos se acalmar.
***
Nenhum comentário:
Postar um comentário