Riquíssimo em informações sobre os “anos de chumbo”, Pastor Cláudio examina os circuitos da morte mantidos pela ditadura. Em Elegia de um crime, Cristiano Burlan revê a brutalidade de um feminicídio — o de sua mãe
OutrasPalavras
Publicado 15/03/2019 às 13:16 - Atualizado 15/03/2019 às 18:49
Blog do Cinema
No país dos traumas diários, dois novos documentários iluminam os desvãos dessa nossa violência congênita. Um deles, Elegia de um crime, de Cristiano Burlan, fala da brutalidade íntima, doméstica, entre quatro paredes. O outro, Pastor Cláudio,
de Beth Formaggini, revela as entranhas da nossa histórica violência de
Estado, que teve seu apogeu na ditadura militar, mas espalha seus
tentáculos até hoje (talvez sobretudo hoje) sobre o território nacional.
Reconstituição de uma vida
Elegia de um crime fecha a “trilogia do luto” de Burlan, composta também por Construção (2007), em torno da morte suspeita do pai, e Mataram meu irmão (2013),
sobre o assassinato de um de seus quatro irmãos. O novo filme aborda a
morte da mãe, Isabel Burlan, estrangulada pelo namorado, num caso
trágico e típico de feminicídio.
Mas talvez seja redutor dizer que é um filme “sobre a morte da mãe”.
É, mais amplamente, uma reconstrução da memória da mãe, da sua
trajetória acidentada e da diáspora dos filhos pelo país. Ao entrevistar
a irmã e os dois irmãos sobreviventes, além de tios, tias e uma avó, ao
mesmo tempo em que busca localizar e levar à cadeia o assassino da mãe,
Burlan acaba por traçar o esboço de várias biografias duras, sofridas,
nas periferias de grandes cidades brasileiras por onde Isabel passou
(Porto Alegre, São Paulo, Uberlândia).
O filme tem uma pulsação vital impressionante, dolorosa até. Algumas
passagens são fortíssimas, como aquela em que a irmã, Kelly, descreve in loco o
momento em que encontrou a mãe morta, ou a conversa em que a mesma
Kelly admite pela primeira vez que sabia que Cristiano era adotado.
A porta estreita
Mas o ponto alto, em termos dramáticos e também políticos, é o
depoimento de um dos irmãos, que passou oito anos numa penitenciária e
tenta retomar a vida como trabalhador e pai de família, encontrando todo
tipo de obstáculo. O que poderia ser visto como um discurso edificante,
uma “história de superação”, é cortado bruscamente por um letreiro seco
que diz: “Depois desta entrevista, ele foi preso novamente”. A
ideologia rasteira dos “brasileiros de bem contra a bandidagem” ignora o
quanto é estreita a porta para os que vivem à margem.
Em sua estrutura, Elegia de um crime obedece a dois vetores:
de um lado, a busca do assassino; de outro, a reconstituição da vida da
mãe e da família, a recuperação dos vestígios que Isabel deixou pelo
mundo.
Significativamente, o filme começa numa estrada e termina num
cemitério. Neste último, Cristiano, em off, diz imaginariamente à mãe:
“Sua morte definiu a minha vida”.
Pastor Cláudio
Ao contrário do movimentado e heterogêneo Elegia de um crime,
o filme de Beth Formaggini é de uma concentração formal quase ascética:
passa-se praticamente todo dentro de um estúdio, onde o psicólogo e
militante dos direitos humanos Eduardo Passos entrevista Cláudio Guerra,
ex-agente da repressão na época da ditadura militar e hoje pastor
evangélico.
Com a maior serenidade e desenvoltura, o Pastor Cláudio detalha as
atrocidades de que participou, como delegado do Dops do Espírito Santo, e
descreve o funcionamento da máquina de extermínio de opositores do
regime, em especial na época da hesitante “abertura política” a partir
de meados dos anos 1970.
O filme é de uma riqueza informativa inesgotável: a “Casa da Morte”
de Petrópolis, as torturas no Doi-Codi de São Paulo, a incineração de
corpos numa usina canavieira de Campos (RJ), o assassinato de Zuzu
Angel, disfarçado de “acidente”, o atentado frustrado do Riocentro, as
articulações entre grandes empresários e a repressão, tudo isso é
descrito com frieza pelo protagonista, que já havia contado muitos
desses episódios no livro Memórias de uma guerra suja, de Rogério Medeiros e Marcelo Netto.
Uma das revelações mais estarrecedoras é a da sobrevivência dos
círculos e métodos de repressão brutal mesmo depois do fim do regime
ditatorial, em delegacias policiais, esquadrões da morte, grupos de
extermínio. A palavra “milícias” não é mencionada, mas é impossível
deixar de evocá-la.
Mais assustador ainda é ouvir que uma certa “irmandade” de grandes
empresários, com ligações com a maçonaria, continua ativa, associando-se
a políticos e financiando sicários para eliminar inimigos.
Sombras sobre os mortos
O dispositivo formal do documentário, em sua aparente simplicidade,
atinge uma força tremenda quando são projetadas numa parede imagens de
agentes e vítimas da repressão, com a sombra do pastor cobrindo em
silhueta uma parte do quadro, e alguns dos rostos projetados em suas
costas.
Há um momento particularmente inspirado em que Cláudio reconstitui o
“tiro de misericórdia” que deu na cabeça de um preso barbaramente
torturado: sob a luz emitida pelo projetor, sem imagens, o que vemos é a
sombra ampliada do pastor, com a mão em forma de arma (efígie hoje
tristemente difundida), apontando para baixo e “disparando”. “Ele estava
tão destruído que nem sei se percebeu que eu ia matá-lo.”
Numa época em que alguns insistem em negar as barbaridades da
ditadura militar, como quem nega o Holocausto, o aquecimento global, a
teoria da evolução ou a esfericidade da terra, esse depoimento de alguém
que participou ativamente dessa engrenagem de horror é, mais do que
oportuno, indispensável.
Godard nas telas
Está chegando também a seletas salas de cinema do país o novo filme de Godard, Imagem e palavra.
Toda a desumanidade da história moderna, bem como toda a potência
transformadora da arte (em especial da literatura, da música e do
cinema), estão contidas nesta hora e meia de um filme singular. Escrevi sobre ele quando foi exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo no ano passado.
Glauber Rocha, que faria 80 anos hoje (14 de março), morreu
prematuramente aos 42. Aos 88, Godard mostra que continua muito vivo,
para consolo e alegria de quem ama o cinema.
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