Há pelo menos dois meses, uma
mobilização de canais do YouTube estabeleceu uma frente de luta e
questionamento para combater canais e youtubers que disseminam conteúdo
falso, pautado pelo obscurantismo e ataques às instituições
educacionais. Juntos eles formam os Canais da Resistência e estão
empenhados a produzir conteúdos relevantes para responder, com fontes e
embasamento científico, a crescente onda de teorias da conspiração e
revisionismo científico e histórico do país.
A plataforma de vídeos só cresce no país e dados apresentados em um relatório da Google, o YouTube Insights,
em 2017, já traçava o perfil da população que consumia conteúdos pelo
site. Acessado por 95% da população brasileira, a maior parcela desse
público tem entre 18 e 35 anos. A prevalência de conteúdos em vídeos em
relação àqueles oferecidos em formato de texto era a maioria e
representava 79% dos pesquisados, que concordavam ser melhor assistir a
tutoriais, por exemplo, do que ler instruções escritas. Além disso, cada
vez mais o YouTube deixa de ser “um site de vídeos” para se tornar uma
fonte de informação. Isso porque 59% afirmaram que preferem se atualizar
pelo YouTube do que ver notícias.
Em 2018, a pesquisa da Video Viewers,
consolida ainda mais a preferência dos brasileiros por vídeos. Em
quatro anos, o consumo da web cresceu 135%, enquanto que no mesmo
período o consumo de TV aumentou 13%. O YouTube entrou de vez na vida do
brasileiro e a pesquisa mostrou que a plataforma é campeã da
preferência das pessoas, além de ser o 2º maior destino para o consumo
desse formato no país, ficando apenas 3 pontos percentuais atrás da
líder, a TV Globo. A plataforma já é maior, segundo o levantamento, que
os demais canais de TV aberta, se somados em número de vídeos
assistidos.
Por anos, o YouTube foi um campo aberto para disseminar ideias e
pensamentos. Muitos conteúdos e informações, sem justificativas de
fontes, nasceram ou se disseminaram pela plataforma, ganhando
abrangência e seguidores engajados no hype do momento, ou seja, o que
está na moda e em alta. A política, o anti-petismo, a ameaça comunista e
o marxismo cultural, além da disseminação do ódio se tornaram o auge
para que canais de youtubers brasileiros investissem na produção de
vídeos para refutar temas ou afirmar o contrário, somando, ainda, na
elaboração de narrativas de teorias da conspiração, muitas vezes
importada de outros canais conspiratórios americanos. Agora, imagine que
esses assuntos, por quase uma década, surgiram sem ao menos serem
contestados ou respondidos por especialistas.
Formado por professores de história, física, advogados, filósofos e
escritores, que já produziam conteúdos relativos às suas áreas, os
Canais da Resistência se uniram para criar uma rede de informação e
compartilhamento de ideias para elevar o debate e esclarecer conteúdos
obscuros e sem fontes de informação, que há anos circulam nas redes
sociais e repercutem para fora delas em proporções devastadoras.
Trata-se do início de um trabalho do que acontecia e víamos em portais
de notícias falsas, ou nos compartilhamentos das correntes de WhatsApp e
outras redes sociais. Agora, o embate contra o fake news acontece,
também, pela plataforma de vídeos e é protagonizado por profissionais e
especialistas que cansaram de assistir as barbaridades sendo
disseminadas sem embasamento.
Talvez o leitor já tenha ouvido falar que a Terra é plana, que Isaac
Newton é um charlatão ou que Albert Einstein plagiou a teoria da
relatividade restrita, em 1905. Ou então, sobre uma marca de
refrigerante de cola feito de células de fetos abortados e que o
Nazismo, de Adolf Hitler, foi um movimento de esquerda.
Não para por aí. Há ainda os que concentram o discurso no
anti-petismo, como por exemplo, em eventos mais recentes, em janeiro de
2019, que vinculou a culpa do estouro da barragem de Brumadinho (MG)
a um decreto da ex-presidente Dilma Roussef (PT), assinado em 2015, e
que supostamente teria alterado a responsabilidade de tragédias,
incluindo a de Mariana, para que esse tipo de evento fosse considerado
fenômeno natural e, com isso, eximindo a responsabilidade dos órgãos
competentes. Além de impossibilitar os atingidos pelas tragédias de
sacar o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS).
Há também, a teoria de que o Partido dos Trabalhadores possui uma
estratégia para incendiar o país, literalmente. Alegando que a
responsabilidade do incêndio no Centro de Treinamento do Flamengo,
que resultou em 10 mortes no Rio de Janeiro, e outras tragédias
ocorridas no Brasil, após a prisão de Lula em 2018, é culpa do partido e
seus dirigentes que estão colocando o plano em prática.
Já a mais recente surgiu com a notícia da indicação de Lula para o Nobel da Paz,
e provocou imediatamente uma tremenda confusão ao relativizar a notícia
ao afirmar que Joseph Stalin teria ganhado duas vezes o Prêmio Nobel da
Paz.
Aliás, os Canais da Resistência têm intensificado o combate ao fake
news, com publicações diárias logo depois da eleição do Governo
Bolsonaro, em outubro do ano passado. Isso ocorreu por que os mesmos
youtubers que já produziam conteúdos disseminando ódio, racismo,
revisionismo histórico e outras teorias da conspiração, foram creditados
e indicados pelo atual presidente do país como fonte confiável de informação.
Refrigerante feito de células de fetos abortados, Einstein plagiou a teoria da relatividade restrita e Isaac Newton Charlatão
Respondida pelo Canal do Pirula,
em 2012, a informação rende discussão até hoje. Disseminada por Olavo
de Carvalho, um dos youtubers indicados pelo atual presidente como fonte
confiável, o comentário dava conta de que a Pepsi utilizava em suas fórmulas, células de fetos abortados.
Uma questão de interpretação e falta de conhecimento científico,
transformou uma simples notícia da manifestação ocorrida nos Estados
Unidos, na época, por uma associação pró-vida, em algo literal e
supostamente verdadeiro aqui no Brasil. Pirula é um canal focado em
divulgação científica e aborda assuntos da área de biologia. Possui,
inclusive, o selo Science Vlogs Brasil, que reúnem youtubers
colaborativos divulgadores de ciência mais confiáveis do Youtube Brasil.
O mesmo aconteceu em outro vídeo sobre uma suposta fraude de Albert Einstein,
que dispensa comentários, e que teria copiado e plagiado a teoria da
relatividade restrita. Caio Gomes, físico formado pelo Instituto de
Física da Universidade de São Paulo, produtor de conteúdo para o Canal
Físico Turista, respondeu e esclareceu alguns pontos sobre as afirmações do tal plágio
e apontou, ainda, os erros básicos históricos do artigo, além de
esclarecer a teoria do ponto de vista da Física. Isaac Newton, que foi
chamado de charlatão em um artigo escrito em 2006 pelo youtuber, foi analisado e respondido pelo Canal Físico Turista.
O revisionismo científico de teorias não justificadas são as que mais repercutem nas redes sociais. Em janeiro desse ano, o UOL precisou responder outro vídeo de Olavo de Carvalho
sobre um questionamento de a terra orbitar ou não o sol, inclusive,
lançando dúvida sobre o heliocentrismo. O vídeo foi publicado
originalmente em 2012.
Stalin recebeu dois prêmios Nobel da Paz e Nazismo movimento de esquerda
Em 30 de janeiro deste ano, o produtor e professor de música, Nando
Moura, um dos canais indicados pelo atual presidente do país como fonte
confiável, afirmou que o político soviético Joseph Vissarionovich Stalin
ganhou duas vezes o Nobel da Paz. Imediatamente, a informação
repercutiu no seu canal do YouTube, com mais de 3 milhões de inscritos, e
em seguida, largamente disseminada no Twitter.
Em 3 de fevereiro, o canal do filósofo e escritor, Henry Bugalho, foi um dos primeiros a perceber a informação incorreta e responde. Dias depois, em um novo vídeo, o filósofo publica o segundo vídeo
em seu canal e expõe a precariedade e ausência da fonte de informação
da notícia. Em seis dias o vídeo do professor de música tomou proporções
gigantescas e chegou ao topo das notícias mais comentadas no Twitter, e
chegou a ser desmentida pela equipe de fact-checking do UOL. Eles verificaram a informação e publicaram o artigo Soviético Joseph Stalin não ganhou prêmio Nobel da Paz duas vezes,
no dia 6 de fevereiro. Outros Canais da Resistência também começaram a
criar vídeos e a comentar a notícia falsa, um deles foi o do professor e especialista em filosofia contemporânea, Clayson Felizola.
Em outra situação protagonizada pelo produtor de música, em 2017, foi
a de afirmar que o Nazismo foi um movimento de esquerda e que a fonte
dessa informação, inclusive, estaria no livro Mein Kampf, cujo
autor é Adolf Hitler. Uma primeira resposta sobre isso feita pelo casal
Leon Oliveira Martins, formado em Relações Internacionais pela PUC de
Minas e mestre em Estudos Europeus pela Universität Flensburg, na
Alemanha, e Syddansk Universitet da Dinamarca, e Nilce Moretto,
jornalista formada pela Unesp, respectivamente dos canais Coisa Nerd e
Cadê a Chave.
Por 20 minutos, Leon e Nilce apontaram diversas convergências de ideias e interpretação de texto ao comentar sobre o Nazismo
e, ainda, colocaram em cheque a veracidade das supostas fontes. O vídeo
resposta, na época, foi um dos assuntos mais comentados na rede social.
Um ano depois, em 2018, o assunto voltou às discussões nas redes
sociais e alguns veículos de comunicação apresentaram a polêmica, como foi o caso da Jovem Pan ao trazer a tona o tema. Isso ocorreu em setembro de 2018, logo após o episódio de brasileiros, que não acreditam no holocausto Nazista, garantir que o nazismo era uma ideologia de esquerda, protestando, inclusive, a história divulgada pelo Governo alemão.
Não bastasse isso e um mês depois, o assunto voltou para a plataforma
do YouTube e o canal O Historiador, do professor de história Carlito
Neto, entra em cena para contestar a fonte de Nando Moura e o mito de que o partido Nazista foi de esquerda.
Ao apresentar argumentos acadêmicos e históricos, Carlito Neto gravou
um novo vídeo, em 10 de fevereiro, para apresentar a suposta fonte
de pesquisa de Nando Moura e que outros canais de youtubers disseminam
para dizer que o nazismo foi de esquerda: o Guia Politicamente Incorreto
da História do Mundo, de Leandro Narloch. Carlito, inclusive,
contesta o conteúdo ideológico e o contexto das informações do livro,
apontado por ele como base de teorias das conspirações e revisionismo
histórico.
Tragédias CT do Flamengo e Brumadinho e a culpa do PT
O sentimento anti-petismo é pauta frequente dos canais de direita e
um deles é o de Bernardo Küster, também indicado pelo presidente do país
como fonte confiável de informações. Em 12 de fevereiro desse ano, ele
fez um vídeo para apresentar a teoria de que o Partido dos Trabalhadores (PT) e seus dirigentes possuem uma estratégia para incendiar o país,
literalmente. De forma subjetiva, o youtuber construiu uma narrativa
baseada em declarações de dirigentes do partido, incluiu áudios do
ex-presidente Lula, e relacionou notícias de tragédias que ocorreram no
Brasil, desde a prisão do ex-presidente. Bernardo alegou que há em
andamento um plano para “incendiar o país” e responsabilizou a culpa das
tragédias ao partido, inclusive, ao incêndio que atingiu o Centro de
Treinamento do Flamengo, no Rio de Janeiro, em janeiro desse ano.
O Canal Dead Consense, administrado por um advogado contestou o limite da liberdade de opinião ao atribuir publicamente crimes ao partido. Dead Consense também esclareceu sob o aspecto legal da informação falsa que circulou
nas redes sociais sobre a que vinculou a culpa do estouro da barragem
de Brumadinho (MG) a um decreto de Dilma Roussef (PT), assinado em 2015,
e que supostamente teria alterado a responsabilidade de tragédias,
incluindo a de Mariana, para que esse tipo de evento fosse considerado
fenômeno natural e, com isso, não ser de responsabilidade dos órgãos
competentes. Além de impossibilitar os atingidos pelas tragédias de
sacar o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS).
Nos vídeos publicados nos Estados Unidos, o YouTube já começou a se
mexer e percebeu que conteúdos conspiratórios, como por exemplo, aqueles
que dizem que os ataques de 11 de setembro, que a Terra é plana ou que
vacinas causam autismo, por exemplo, são uma farsa. Uma mudança de
algoritmo para os canais americanos já está valendo desde janeiro de
2019, e fará diminuir a recomendação de vídeos que promovem teorias de
conspiração e desinformação. Esse é um esforço para evitar que o serviço
seja usado para potencializar o alcance de conteúdo extremista.
Enquanto isso no Brasil, a plataforma tem passado por caso parecido
com a propagação coordenada de informações falsas e teorias da
conspiração e outras obscuridades. Só que dessa vez, a contribuição para
a produção de vídeos e conteúdos na luta contra a desinformação e
disseminação de fake news tem crescido por iniciativa dos canais. Um
movimento que avança, somente agora, à sociedade acadêmica e estendida
aos especialistas e produtores de conteúdos qualificados. Eles sabem que
chegaram tarde para o debate e estão engajados intelectualmente para a
batalha.
***
Ricardo Missão é jornalista.
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