O procurador da Justiça Militar aposentado Durval Ayrton Moura de
Araújo, de 99 anos, se considera um homem de fé. A imponente capela
localizada logo na entrada de sua casa, com a imagem de Nossa Senhora
e um crucifixo de aço, se projeta sobre os visitantes que entram na
residência. Parece ser testemunho da religiosidade deste homem hoje
franzino, de voz pausada e problemas de locomoção. Mas os familiares e
vítimas da ditadura militar e procuradores do Ministério Público Federal
apontam no capitão da reserva um comportamento muito distante dos
valores cristãos nos anos de chumbo: sua caneta transformava mentiras em
verdades. De acordo com denúncias e testemunhos, as ações do procurador
ajudaram a encobrir centenas de crimes como tortura e assassinato.
Do jornalista Vladimir Herzog, um dos casos mais emblemáticos da ditadura brasileira, ao militante Olavo Hansen, ambos mortos sob tortura,
Araújo recomendou arquivamento de processos e endossou a versão oficial
de suicídio — uma praxe comum nos anos de repressão. Ele era, segundo
reportagens da época, um “expoente máximo da linha dura na Justiça
Militar". O procurador aposentado recebeu a reportagem do EL PAÍS nos
dias 26 e 28 de março em sua residência num dos bairros mais caros de
São Paulo, e falou sobre seu papel na ditadura: “Eu estava integrado [no
aparato militar]. Não me arrependo de nada, prestei relevantes serviços
ao país e ao Ministério Público Militar”.
Nascido em Cuiabá, Mato Grosso, Araújo ingressou no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva em 1943, onde se formou capitão. Cursou Direito na Universidade de São Paulo,
tendo ingressado no Ministério Público “por volta de 1945”. Logo adotou
o ideário anticomunista característico do período da Guerra Fria. “A revolução
[termo usado por ele para designar o golpe] de 64 não foi um golpe e
nem foi contra a lei. Foi um grito da sociedade, as Forças Armadas
apenas ecoaram o desejo da sociedade civil”, diz.
Responsável por boa parte dos processos que iam parar na 2ª Auditoria
de Guerra, em São Paulo, ele nega ter tomado conhecimento de casos de
tortura. "Eu não participei nem fiquei sabendo de nenhum caso concreto
sobre isso. Dizem que havia, mas eu não sei", afirma. Mas o papel de
Araújo na ocultação dos crimes cometidos pelos militares começou a vir à
tona após a redemocratização e contam outra história.
Questionado sobre o caso de Herzog, morto sob tortura dentro do Destacamento de Operações de Informação
- Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) e cujo inquérito ele
foi designado a supervisionar em 1975, o procurador franze a
sobrancelha. “Estive no Instituto Médico Legal, vi o cadáver e também
fotografias do corpo dentro da cela. As imagens mostravam que ele havia
se enforcado com o cinto. Me convenci de que se tratava de suicídio”,
afirmou. Mais adiante ele justifica os motivos do jornalista: "Ele teria
se suicidado porque delatou companheiros. Teve uma crise de
consciência”. Ao EL PAÍS, ele aproveitou ainda para criticar a alteração
nos registros oficiais, feito após anos de luta dos filhos do
jornalista que conseguiram, em 2013, o reconhecimento de que Herzog foi morto mediante tortura: "A família queria mover ação [contra o Estado], tinha interesse financeiro".
“Eu apresentei uma denúncia contra o presidente João Goulart por incentivar greves e desordens entre os trabalhadores”
A versão em que ele acredita não tem eco mais no mundo. No ano
passado, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado
brasileiro por crime de lesa humanidade pelo assassinato de Herzog, que
não era militante político. Apesar de admitir para a reportagem que “em
todo movimento existem excessos”, Araújo é categórico quando indagado se
denunciou algum militar por estes excessos: “Os militares que denunciei
eram contra a revolução de 64”. O grosso de suas denúncias
eram “militantes comunistas”. “Cheguei a pedir a pena de morte para nove
militantes de esquerda”, explica. Dentre eles, integrantes do grupo de Carlos Lamarca.
Todos teriam participado em ações que terminaram com agentes da
ditadura mortos. “No final o Superior Tribunal Militar converteu as
penas em prisão”, lamenta.
Três décadas após o término da ditadura, outro importante caso
arquivado no currículo do procurador veio à tona. Em 30 de outubro de
2018, ele foi denunciado pelo Ministério Público Federal pelo crime de
prevaricação — que ocorre quando um servidor público deixa de cumprir
sua função por motivos pessoais. Ele teria se omitido “em seu dever
legal de apurar as torturas sofridas por Olavo Hansen, assim como a
verdadeira causa da morte da vítima”, escreveu o procurador Andrey
Borges de Mendonça. E teria feito isso “visando satisfazer sentimento
pessoal, consistente na manutenção do regime militar, a ocultação das
torturas e mortes do regime e, ainda, beneficiar-se pessoalmente, com
promoções e homenagens pessoais”.
A história de Hansen guarda semelhança com dezenas de outros casos do
período. Ele foi preso durante um ato de comemoração ao Dia do
Trabalhador em 1º de maio de 1970 na Vila Maria, zona norte de São
Paulo, e morreu no Hospital Militar da 2ª Região, no Cambuci. Ele não
resistiu a mais de uma semana de torturas no Departamento Estadual de
Ordem Política e Social de São Paulo, que incluíram horas no pau de arara, choques, queimaduras com cigarros
e a cadeira do dragão. No laudo necroscópico foram notados diversos
hematomas — inclusive na cabeça. Em algumas dessas sessões de suplício
os choques eram aplicados com tamanha intensidade que deixaram
queimaduras na pele do peito sobre o coração, que também constavam no
relatório pós-morte.
Na tentativa de acobertar o crime as autoridades falaram que Hansen
cometeu suicídio. Ele teria morrido por falência renal em decorrência da
ingestão de veneno que ele teria levado para o cárcere. E foi aí que
Araújo moveu sua caneta para transformar mentiras em verdade. “Tudo faz
crer que o investigado, na ocasião de ser preso, portava alguma
quantidade desse veneno Paration, ou já viesse sofrendo de um
processo crônico de envenenamento que lhe causou a insuficiência renal,
cujo quadro apresentou antes de ser removido para o Hospital militar,
onde veio a falecer”, escreveu à época. Ao EL PAÍS, ele disse que o
pedido de arquivamento foi feito por achar "que o processo não tinha
cabimento", mas frisou não se recordar "de detalhes" do caso.
Sobre o parecer de Araújo, a denúncia do MPF diz o seguinte: “Pouco
mais de três meses depois de instaurado o inquérito foi arquivado, sem
qualquer apuração efetiva e com a absurda conclusão de suicídio. Sem
requisitar qualquer diligência efetiva e sem sequer mencionar as
diversas evidências de tortura”. No final, a denúncia do MPF contra
Araújo teve o mesmo destino que o de dezenas de outras movidas contra torturadores e burocratas do regime militar:
foi arquivada pelo juiz. Apesar de crimes contra a humanidade como a
tortura não serem passíveis de anistia segundo tratados internacionais
dos quais o Brasil é signatário, o Supremo Tribunal Federal segue decidindo não rever a Lei de Anistia, que serve de salvo conduto legal para os responsáveis. Em fevereiro de 2018, a procuradora-geral Raquel Dodge pediu ao STF que reabrisse o caso do ex-deputado Rubens Paiva,
morto pelo regime em 1971, mas a corte até agora não pautou o tema,
numa situação que destoa de países como a Argentina, onde torturadores e
assassinos que tomaram parte na Junta Militar foram processados e
presos.
“Tudo faz crer que o investigado portava veneno
ou já viesse sofrendo de envenenamento que lhe causou a insuficiência
renal, cujo quadro apresentou antes de falecer”
Promoções e Bolsonaro
A recompensa pelos serviços prestados por Araújo ao regime vinha na
forma de promoções dentro do aparato jurídico da repressão. Segundo
consta no texto do MPF, após arquivar as investigações do caso Hansen,
“Araújo foi promovido e homenageado por diversas autoridades”. “Foi
agraciado, inclusive, com a Medalha do Pacificador, premiação
tradicionalmente concedida àqueles que contribuíram para os crimes
contra a humanidade durante o período da ditadura militar”, escreve o
procurador (o presidente Jair Bolsonaro, por exemplo, recebeu a condecoração neste ano).
O próprio Araújo fez questão de mostrar à reportagem as diversas
medalhas e honrarias na parede de seu escritório, orgulhoso de sua
carreira "anticomunista" mesmo antes do golpe de 1964. “Eu apresentei
uma denúncia contra o presidente João Goulart por incentivar greves e desordens entre os trabalhadores alguns meses antes da revolução”,
diz ele. “Ele queria transformar o Brasil em uma República socialista”.
A consequência veio dias depois com um pedido de afastamento assinado
pelo então procurador-geral, Ivo d'Aquino Fonseca. "Eu fiquei um mês
inteiro escondido no Guarujá, com medo da repressão do Governo", diz.
"Meus amigos me chamaram de louco por denunciar meu chefe".
Araújo só retornaria ao cargo meses depois, já com os militares no
poder, para construir uma trajetória de destaque, com o convívio com
nomes importantes nas engrenagens de repressão do regime, como o
delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury, considerado o criador dos
esquadrões da morte, torturador de dezenas de militantes e responsável
pela morte de Carlos Marighella, entre outros. O procurador conta que em
1º de maio de 1979 estava em seu barco no litoral norte de São Paulo à
espera de um amigo com quem faria um passeio de lancha. O barco do
colega se aproximou e Araújo pôde ver Fleury. "Ele ia passar para o meu
barco, mas teve um ataque, caiu na água e morreu", conta Araújo. Sobre a
atuação de Fleury, o procurador se resume a dizer que "ele tinha fama
de ser um delegado rígido".
Em meio às memórias, Araújo só se anima quando fala sobre o presidente Bolsonaro, admirador da ditadura militar
e que tem um torturador como herói declarado. "É o meu candidato, meu
presidente". Conclui: "Com ele o revanchismo da esquerda fica mais
longe".
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