A imprensa é pró-cíclica – ou seja,
tende a potencializar movimentos da opinião pública. Quando um ciclo
começa a esgotar, há a necessidade de criar novos ciclos, nos quais se
dará a disputa entre os jornais.
A mídia já começa a prospectar o próximo ciclo de cobertura. A novidade será denunciar a Lava Jato |
No ciclo inicial, conferem uma sensação inédita de onipotência aos
provocadores, sejam chefes de torcida organizada, insufladores de
linchamento, políticos medíocres, ou, no caso da Lava Jato, procuradores
e juízes do interior, alçados de repente ao Olimpo das celebridades.
Em todas essas pessoas, o perfil psicológico é o mesmo. São personagens
sem biografia anterior, sem grande destaque, que ganham a sorte
grande de protagonizar o sacrifício ritual alimentado pela sede de
sengue das bestas das ruas.
O roteiro exige como protagonistas pessoas amorais, despidas de
sentimento de compaixão, da piedade, de senso de justiça, de
responsabilidade pública, sem pudor de praticar ao máximo a crueldade
física ou psicológica, exercitar a covardia em todas as instâncias,
porque sua base de sobrevivência é o ódio difuso que, de repente, ganha
um foco, ao se lhe apontar um inimigo real ou imaginário.
O que estão fazendo com Lula há muito ultrapassou os limites da mera
severidade. Bloquearam todos os seus recursos, deixando familiares
passando necessidade, sendo amparados por amigos. Impediram-no de
prantear o irmão morto e tentaram impor condições indignas para ir ao
funeral do neto, que foi tratado em hospital de terceira linha, por
falta de recursos da família, bloqueados pela crueldade extrema da Lava
Jato e dos desembargadores do TRF4.
A indignidade com que um dos grandes personagens da história foi tratado pela juíza Gabriela Hardt ainda há de figurar nos futuros compêndios da psicologia do fascismo, como o exemplo mais deformado do que essas situações criam em pessoas médias, pelo prazer sádico de poder se impor sobre vultos da história.
Dallagnol, McCarthy, Marat |
Mas, como não há mal que sempre dure, em algum momento esse ciclo de
ódio tem uma inflexão. Foi assim com Jean-Paul Marat na Revolução
Francesa, com Joseph McCarthy, quando decidiu estender a caça às bruxas
ao Exército. No caso da Lava Jato, foi essa tentativa de se apropriar
de R$ 2,5 bilhões de recursos do Tesouro para uma fundação de direito
privado controlada por eles próprios.
Ai quebrou a blindagem.
Para avaliar os próximos passos, é necessário entender a lógica jornalística.
A imprensa é pró-cíclica – ou seja, tende a potencializar movimentos da
opinião pública. Quando um ciclo começa a esgotar, há a necessidade de
criar novos ciclos, nos quais se dará a disputa entre os jornais.
Foi assim em todos os episódios de linchamento midiático desde a
campanha do impeachment de Fernando Collor à Escola Base – tenho mais de
vinte casos narrados no livro “O jornalismo dos anos 90”.
A campanha de ódio, que resultou na Lava Jato, teve três motivações.
Uma delas, de ordem política, contra Lula e o PT. A segunda, a
competição pelos “furos” da Lava Jato, em um episódio grotesco de
antijornalismo, com todos os jornais comendo na mão dos procuradores e
delegados, sem nenhum esforço de checar as informações. A terceira, indo
a reboque da besta das ruas, o ódio dos leitores.
Agora, o jogo começa a inverter.
Primeiro, há o desgaste natural das operações de impacto da Lava Jato.
Quanto mais o tempo passa, menos novidade existe. Quando se enredou com
o governo Bolsonaro, a Polícia Federal de Sérgio Moro montou duas
operações de impacto, inclusive prendendo o presidente da Confederação
Nacional da Indústria. A notícia ficou um dia nos jornais. Do jeito que
as coisas caminham, nem a prisão de José Serra merecerá manchetes.
O fator Palocci – soltar trechos da delação do ex-Ministro como
antídoto para crises – é cada vez menos eficaz. Já saiu das manchetes
principais e começa a cair para o pé de páginas internas dos jornais.
Agora, vem o episódio da fundação de R$ 2,5 bilhões.
Nas redes sociais, a condenação é quase unânime. Os únicos defensores
da fundação são os próprios membros da Lava Jato, com campanhas
bisonhas, lembrando que as multas de um caso permitiram construir uma
sede para uma APAE, ou reformar seis escolas, como justificativa para a
apropriação de R$ 2,5 bilhões (!). Pela primeira vez, colegas
procuradores põem a cabeça para fora e começam a externar o incômodo que
acompanhou parte da categoria com os abusos reiterados da Lava Jato.
Em breve terá início o novo ciclo. E agora será de caça à Lava Jato.
Como ocorre em todo final de ciclo, a imprensa vai apalpando aos poucos
o novo terreno, para ver se há terra firme para começar a nova etapa.
Depois que se divulgou aqui a fundação de R$ 2,5 bi, levou alguns dias
para começar a repercussão. Era um escândalo óbvio, mas os jornalistas
precisam saber se já existe apoio tácito para a mudança na cobertura.
O apoio veio, as matérias começam a pipocar. Não virá de uma só vez,
porque os jornais teriam que explicar a parceria de tantos anos com esse
grupo. Mas a arte e o engenho jornalístico encontrarão narrativas
adequadas. Colocarão lupa nas parcerias entre Rosângela Moro e Carlos
Zucolotto, esmiuçarão os honorários dos advogados da delação, levantarão
o aumento de patrimônio de Deltan Dallagnol, com as palestras pagas,
cobrarão dele a fundação que disse que iria constituir com dinheiro das
palestras, e que sumiu do noticiário, checarão o caso Tacla Duran, e a
proposta de tacada de Zucolotto, falando em nome da Lava Jato.
Tudo isso já foi levantado por veículos independentes, furando a
barreira de silêncio da mídia. Portanto, haverá apenas o trabalho de
aprofundar as pautas.
Em um ponto qualquer do futuro, é possível até que divulguem o martírio
de Lula, as humilhações impostas a ele e Marisa, a perseguição
implacável que atingiu os familiares e pode ter sido causa da morte do
neto. E alguma reportagem lembrará que, com uma entrevista, o procurador
Carlos Fernando dos Santos Lima, decretou o fim de qualquer
possibilidade de salvar as empresas de engenharia brasileira. Já existem
levantamentos criteriosos sobre os prejuízos trazidos à economia. E
serão cobrados, também, o ex-Procurador Geral Rodrigo Janot, e seu
companheiro de noitadas Ministro José Eduardo Cardozo, pela falta de
coragem de enfrentar as turbas, em um tema de interesse nacional.
Haverá perfis detalhados sobre o deslumbramento das Hardt, dos
Dallangoll. Suas incursões pela iniciativa privada, com consultorias de
compliance e o escambau, serão acompanhadas minuciosamente.
Tudo isso por uma lógica fatal. Como operações dessa natureza dão
celebridade imediata a pessoas sem história, não há como conter o
excesso de ambição que sempre atinge esses tipos.
E a ambição da Lava Jato foi gigantesca, de R$ 2,5 bilhões.
Luís Nassif
Nenhum comentário:
Postar um comentário