O presidente Jair Bolsonaro determinou nesta segunda-feira que as Forças Armadas façam as “comemorações devidas”
ao golpe de 64, que completa 55 anos no próximo dia 01 de abril.
Temendo reações negativas em um ambiente político já bastante
polarizado, a cúpula militar orientou que as “comemorações devidas”
sejam realizadas intramuros, limitadas aos quartéis e batalhões.
A decisão não pegou ninguém de surpresa. Embora nunca tenha
feito muito pelos militares em seus quase 30 anos como deputado (a bem
da verdade, bastaria dizer: “embora nunca tenho feito muito em seus
quase 30 anos como deputado”), Bolsonaro foi bastante hábil em mobilizar
e organizar um circuito de afetos baseados principalmente no
esquecimento das violências passadas a informar a indiferença cotidiana
para com as violências presentes.
Sua ascensão meteórica à Presidência, não casualmente, ganhou impulso depois de seu voto pela abertura do processo de impeachment contra Dilma Rousseff,
quando prestou homenagens ao coronel Brilhante Ustra, responsável por
estuprar, torturar e assassinar, nos porões do DOI-CODI em São Paulo,
opositores da ditadura. São igualmente conhecidas as menções elogiosas a
ditadores de países vizinhos, como o paraguaio Alfredo Stroessner
e o chileno Augusto Pinochet. O primeiro, um pedófilo; o segundo,
responsável pelo desvio de 13 milhões de dólares, depositados em mais de
100 contas em bancos americanos.
Juntas, as ditaduras da América do Sul
mataram aproximadamente 40 mil pessoas, entre outras inúmeras
atrocidades, aí inclusas crianças sendo presas, torturadas, obrigadas a
assistir o sofrimento de seus pais e mães, ou sequestradas e adotadas
por famílias simpáticas aos governos. Mas se nos vizinhos sua memória
desperta repúdio, aqui um presidente eleito pelo voto direto, coisa
proibida nos anos de chumbo, desqualifica e fragiliza, aberta e
propositadamente, o pouco de democracia que conquistamos.
Em seu anúncio, o porta-voz da Presidência afirmou que
Bolsonaro “não considera o 31 de março de 1964 golpe militar”, mas uma
medida para conter “o perigo que o país estava vivenciando naquele
momento”. O argumento não é novo. Consagrou-se em alguns círculos, e não
apenas militares, a versão de que o golpe fez-se para evitar outro.
Trata-se, obviamente, de uma narrativa que interessa aos responsáveis
pelas duas décadas de ditadura, mas que não se sustenta em nenhuma das
muitas evidências históricas sobre o período.
Em entrevista concedida ao CPDOC da FGV, o historiador Luiz
Alberto Moniz Bandeira fala das muitas “provocações” que antecederam o
1º de abril, essenciais para criar um clima de animosidade e conflito
necessário para justificar a tomada de poder pela direita civil e
militar. E embora admita a tendência à radicalização de algumas
lideranças ligadas a João Goulart, é enfático quanto à inexistência de
qualquer condição ou pretensão golpista, dentro e fora do governo.
Havia, por certo, um ambiente de conflito, em parte decorrente da Guerra Fria e do fantasma da ameaça soviética, que ajudaram a alimentar a propaganda e a atmosfera golpista.
A realidade, no entanto, era mais complexa. Os principais
grupos de esquerda, como o PCB, eram reformistas: falavam e defendiam as
reformas agrária e de base; reivindicavam o nacionalismo contra o
capital estrangeiro; produziam uma cultura que se pretendia “popular”
como um meio de “desalienar” as massas demasiadamente influenciadas
pelos padrões culturais tidos por imperialistas, etc... Mas a ameaça de
um “golpe comunista” é apenas mais uma mentira dos artífices da
ditadura. Repetidas tantas vezes, ainda há quem nela acredite. Mas isso
não a torna verdade.
Por outro lado, abundam evidências sobre os desmandos e a
violência da ditadura, embora não apenas, principalmente depois de
decretado o AI-5, que conferiu ao regime poderes quase ilimitados. Com o
Ato Institucional, escancararam-se as portas à censura. Músicas,
livros, filmes e peças teatrais foram proibidos às centenas nos dez anos
em que vigorou, cuja capilaridade inquisitorial se estendeu também à
imprensa.
Mas ainda mais grave que o verniz de legalidade à repressão política, o AI-5 ampliou e legitimou as inúmeras ações ilegais da ditadura.
Com o seu endurecimento, disseminaram-se as muitas arbitrariedades
governamentais, inclusos intimidações, sequestros, prisões, torturas e o
assassinato de inimigos políticos. A repressão feroz que se abateu
sobre toda e qualquer forma de oposição, tem sido recentemente
relativizada aqui e acolá, inclusive por alguns historiadores.
Mas não há relativização possível quando se trata da
garantia dos direitos humanos fundamentais, sucessivamente
desrespeitados nos porões e casas da morte onde a ditadura humilhou,
torturou e assassinou centenas, nem sempre e não apenas militantes que
pegaram em armas contra o governo. A ditadura não perdoou ninguém e
tratou a todos, indiscriminadamente, como criminosos e inimigos.
Democracia e esquecimento
Em Como a democracia chega ao fim, o cientista político David Runciman parte da eleição de Donald Trump
nos EUA, para analisar o que chama de “versão caricatural do fascismo”.
A insatisfação e a desconfiança com a democracia, geradas
principalmente pela crise econômica, propiciaram a ascensão de um líder
populista, que se apresentou aos eleitores como um outsider
antissistêmico. Sem um programa claro, Trump foi eleito oferecendo
soluções fáceis para problemas complexos, somando-se a isso a produção e
proliferação serial de fake news, o preconceito contra minorias e o anti-intelectualismo.
Há semelhanças com o caso brasileiro, mas as diferenças
chamam mais a atenção. Bolsonaro conjuga elementos do fascismo
histórico — a irracionalidade, o personalismo, o elogio da força física e
da violência, a moralização da política e a demonização de supostos
inimigos, por exemplo —, a formas de autoritarismo cultivadas no terreno
fértil da história nacional: a escravidão, experiência estruturante do
nosso racismo; a violência estatal contra movimentos sociais; a
cordialidade, raiz de nossa baixa tolerância à democracia; e o
esquecimento da ditadura.
O crescimento da liderança de Bolsonaro, que de uma
excrescência política chegou à Presidência da República, se explica em
parte por esse movimento de adesão aos afetos autoritários que, no caso
brasileiro, bebe na fonte de uma política sistemática de esquecimento
que vigora desde a “abertura lenta, gradual e segura” de Ernesto Geisel,
na segunda metade dos anos de 1970, e estabeleceu o marco no interior
do qual faríamos a passagem para a democracia.
A Lei de Anistia, de 1979, desempenhou nesse processo papel
singular. Se na Argentina e no Uruguai, por exemplo, as respectivas
legislações que anistiavam os crimes das ditaduras foram derrogadas, no
Brasil não: somos o único país que perdoou os ditadores e seus asseclas
sem exigir deles o reconhecimento dos seus crimes. Entre outras coisas,
esse ordenamento jurídico limita a própria ação do Estado no cumprimento
de suas obrigações em casos de violações dos direitos humanos.
Dos quatro deveres que lhe competem — oferta de reparações;
investigar, processar e punir os violadores; revelar a verdade às
vitimas, seus familiares e à sociedade; e afastar os criminosos de
órgãos relacionados ao exercício da lei e outras posições de autoridade
—, mal cumprimos o primeiro. Mesmo a Comissão Nacional da Verdade
não mudou substancialmente isso, porque o fundamental restou por fazer:
nenhum dos governos eleitos a partir de 1989 enfrentou o imenso
edifício de olvido sobre o qual se estrutura parte de nossa cultura
política contemporânea.
No último livro publicado ainda em vida, A memória, a história, o esquecimento,
o filósofo francês Paul Ricoeur contrapõe ao que considera as dimensões
positivas do esquecimento, seus efeitos potencialmente danosos como
gesto forçado de apagamento da lembrança, o que ele denomina de “memória
impedida”. É esse impedimento que fundamenta aquelas políticas que,
como a nossa, confundem anistia com amnésia e tomam essa como critério
para associar aquela ao perdão.
O equívoco não é apenas semântico — anistia não significa
necessariamente perdão nem, tampouco, esquecimento —, mas político.
Desde a transição para a Nova República, há uma interdição, um
silenciamento a impedir que tratemos a Lei de Anistia e as políticas de
esquecimento daí derivadas pelo que elas são: um obstáculo à efetivação
de uma cultura democrática sensível, entre outras coisas, aos muitos
riscos a que está exposta, e aos restos de uma ditadura que, mesmo
institucionalmente, continuam a ameaçá-la.
As democracias modernas, nos ensina David Runciman, morrem
por dentro. A eleição de líderes populistas autoritários, argumenta, é o
primeiro passo para um caminho de difícil retorno: quando abrimos mão
de nossos direitos e liberdades, ou simplesmente votamos insensíveis ao
fato de que indivíduos e grupos serão forçosamente privados deles,
porque parte de “minorias” ou porque vistos como “inimigos políticos”,
estamos legitimando com nossas escolhas o fascismo em uma de suas muitas
versões coevas.
Se a elaboração do passado, e particularmente do passado
traumático, pressupõe a eliminação das condições que o permitiram, a
anistia concedida pela ditadura criou as condições que seguem
autorizando a indiferença para com a desigualdade, a violência de
gênero, o racismo e, mesmo, a indiferença para com o terrorismo de
Estado, ativo principalmente nas periferias e prisões. Passados 55 anos,
a eleição de Bolsonaro em 2018 e sua decisão de comemorar o golpe
representam simbólica e, espero, provisoriamente, a derrota da
democracia e a vitória da memória e do sentimento autoritário.
Clóvis Gruner é historiador e professor do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba.
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