São Paulo
James Green já foi chamado de "namorado" da ex-presidenta Dilma Rousseff
(PT), com quem foi visto passeando nos Estados Unidos em 2017. Ambos se
aproximaram quando ela ainda estava na presidência e ele escrevia um
livro sobre o militante de esquerda Herbert Daniel, que participou da
luta armada durante a ditadura, foi amigo de Rousseff e teve que, numa
época em que a homossexualidade era vista como um desvio burguês pela
esquerda, reprimir sua sexualidade. Revolucionário e gay: A extraordinária vida de Herbert Daniel
foi lançado no Brasil em agosto de 2018 pela editora Civilização
Brasileira. Historiador e brasilianista norte-americano, Green estudou
ciências sociais na Universidade de São Paulo (USP) no final dos anos 70
e ajudou a fundar o PT em plena transição para a democracia. Hoje,
conta, vem ao Brasil ao menos quatro vezes por ano.
Aos 68 anos, o também ativista LGBT e professor de história
latino-americana e brasileira da Brown University coordena um movimento
internacional nos Estados Unidos para informar sobre a atual conjuntura
política do Brasil. "Já temos uma rede com 40 grupos filiados e vamos
organizar 100 atividades no aniversario do assassinato de Marielle Franco,
no dia 14 de março", explica. "E vamos lançar um observatório em inglês
sobre a democracia no Brasil, para o público norte-americano que quer
acompanhar a situação. Vamos fazer um trabalho no Congresso americano
sobre o Brasil e organizar um lobby popular", conta. "Estive em
Washington para falar com assessores de congressistas que estão muito
interessados no Brasil, e muito preocupados com o que está acontecendo",
acrescenta ele, que costuma dizer que o presidente Jair Bolsonaro "é 10 vezes pior" que seu homólogo Donald Trump. "E isso assusta as pessoas".
O historiador recebeu o EL PAÍS para uma conversa na
quinta-feira, 21 de fevereiro, véspera do lançamento, para o qual foi
convidado, de um site do Ministério Público Federal sobre Justiça de Transição no Brasil, um conjunto de medidas para reparar as violações de Direitos Humanos cometidas pelo Estado durante a época da última ditadura militar (1964-1985).
Estudioso sobre esse período, Green acredita que as forças
conservadoras que fizeram o impeachment de Rousseff e depois
impulsionaram a candidatura do hoje presidente Jair Bolsonaro são as
mesmas que patrocinaram o golpe de 1964. "É horrível ver tudo de novo",
afirma. Para superar essa conjuntura, prega uma renovação total da
esquerda, algo que ele prevê que demorará de 8 a 12 anos.
Pergunta. Na resistência ao Governo Donald Trump, uma nova esquerda surgiu nos Estados Unidos no ano passado. O que a esquerda brasileira pode aprender com ela?
Resposta. A primeira resistência a Trump
foi quando ele não conseguiu músicos para a posse dele. E, depois, as
mulheres organizaram milhões de pessoas, e organizaram pela base, em
todos os distritos eleitorais. Houve campanhas de base em todo o país.
Essa resistência refletiu nas eleições de 2018, quando mais pessoas progressistas foram eleitas
com capacidade de colocar uma nova pauta de ideais
sociais-democratas —não são mais que isso, mesmo o Bernie Sanders não é
um revolucionário.
P. Como essa resistência deve ser organizada no Brasil?
R. Fiquei surpreso que [Fernando] Haddad
tenha conseguido 45% dos votos. Mas fiquei ao mesmo tempo feliz e
decepcionado, porque as pessoas acordaram muito tarde. Já estava
evidente que Haddad iria para o segundo turno contra Bolsonaro, mas só
depois é que as pessoas decidiram sair na rua para oferecer café e bolo
para tentar virar voto. Ao invés de entender que era necessário fazer
campanha eleitoral para esquerda, de qualquer partido. De todas as
formas, 45% é muito se considerada a conjuntura. E uma unidade vai ser
forjada concretamente ao longo dos próximos quatro anos nas práticas e
frentes contra as medidas do Governo. Entendo que os partidos queiram
manter seu perfil, sem querer uma frente única forte, mas se as pessoas
não se unirem não vão derrotar esse Governo.
P. O que a esquerda deve trazer de novo, de propositivo?
R. Precisa pensar em como organizar as
pessoas terceirizadas, as que não têm garantias de emprego, que estão
marginalizadas pela maneira que o capitalismo quer desconstruir os
sindicatos e uma relação de emprego estável para explorar mais as
pessoas. Não existem soluções fáceis, é um processo que temos que
entender, enfrentar e responder. Mas esses setores têm que ser
protegidos pela sociedade. Nos EUA, uma saúde pública universal é
fundamental. Porque se você é terceirizado, é um freelance, você não
ganha um seguro de saúde como antigamente. Então, o Estado tem que
oferecer essas proteções para as pessoas vulneráveis. Tem que garantir
uma aposentadoria digna. Não vai ser fácil. O sistema antigo de
financiamento da Previdência tem que ser repensado. E, neste país, os
ricos não pagam impostos, quem paga é pobre e classe média. Tem que
inverter isso.
P. A esquerda, não apenas a brasileira,
está hoje muito engajada nas chamadas pautas identitárias. Fala-se muito
sobre racismo, LGBTfobia, feminismo, questões indígenas... Mas muitos
acusam esses setores progressistas de serem elitistas e sectários, por
supostamente focar em pautas que não têm apelo popular, esquecendo de
projetos para áreas como saúde e educação, e afastando parte do
eleitorado. Concorda com essas críticas?
R. É falso, porque as campanhas de Guilherme Boulos
(PSOL) e Fernando Haddad (PT) tiveram todas essas questões. Acho que a
esquerda, neste momento em que está na oposição, pode cometer um grande
erro de pensar que, como a direita está mobilizando sua base por valores
conservadores religiosas, nós precisamos esquecer e abandonar as
questões sobre a defesa dos direitos humanos e democráticos da
sociedade. Você acha que não há homossexuais da classe trabalhadora?
Claro que sim, e muitos. Tem em todos os setores sociais. Será que a
mulher trabalhadora não é vitima de assédio e violência? Claro que é
vitima, e muito. São questões totalmente integradas à luta por uma
sociedade justa, que não é somente uma sociedade onde a pessoa ganha um
salário mínimo de 2.000 reais. É um conjunto de necessidades para uma
vida digna de qualquer pessoa. Todas as famílias brasileiras têm filhos e
filhas lésbicas e gays. A maioria da população é afrodescendente e
sofre discriminação todos os dias, mesmo com o discurso de democracia
racial. Os povos indígenas, que são os donos dessas terras, estão
ameaçados a tal ponto que suas lideranças estão tentando ter um diálogo
com o novo Governo, para evitar um genocídio total. Então, dizer que são questões secundárias é não reconhecer a realidade brasileira.
P. Como esse debate se dava na época da transição para a democracia?
R. Havia setores da esquerda que diziam
que havia uma única luta contra a ditadura e que todo mundo tinha que se
unir, que as outras questões eram menores. Era um debate falso porque
as pessoas não perceberam que a abertura implicava em democracia para
todo mundo, implicava no direito das mulheres de começar a conversar
sobre sua opressão, em que os negros tivessem espaço pela primeira vez
criticar o racismo da sociedade brasileira, em que os LGBTs levantassem
uma pauta política. Lutar pela democracia era lutar pelas liberdades
democráticas para todo mundo, não só para os trabalhadores do ABC. Mas
muitos utilizavam rótulos marxistas antigos do século XIX aplicado para o
final do século XX, e agora estamos no XXI.
Hoje o PSOL consegue articular melhor essas questões, mas ainda é minoritário no campo da esquerda. O movimento Ele Não
foi muito importante, acho que foi uma das maiores mobilizações da
história do país. E é claro que isso provocou uma reação das forças
conservadoras. O século XXI é o século de eliminar todas essas
discriminações. E a onda Bolsonaro representa uma reação a 50 anos da
esquerda lutando pelos seus direitos. Acredito que vamos acumular forças
para uma contraofensiva, mas não será fácil e nem será amanhã. E, neste
processo, as pessoas vão começar a perceber, como já está acontecendo
com os filhos de Bolsonaro, que são populistas de direita autoritários que utilizam o discurso anticorrupção, mas são tão corruptos quantos os setores que estão criticando.
P. Mas basta se aproximar desses novos movimentos? Ou a esquerda precisa também renovar seus próprios quadros?
R. A esquerda não vai voltar ao poder se
não fizer uma renovação total. É uma ilusão. Acho que é um processo de 8
a 12 anos. Se a esquerda não conseguir se recompor e incluir de maneira
inteligente setores sociais, não vai ganhar a eleição. A derrota foi da
esquerda como um todo. O PT vai ser fundamental nessa resistência, ele
tem um apoio social que outros setores da esquerda ainda não possuem. E
nós vamos recompor a esquerda na resistência contra o governo Bolsonaro e
governos militares e neoliberais que vão vir depois. Bolsonaro pode se
reeleger, mas Moro também pode ser presidente, Mourão pode ser
presidente... Pode haver uma crise e os militares tomarem o poder. Bolsonaro é um cara muito fraco nesse movimento, ele não está preparado. Mas há um processo por trás dele.
P. Como vê a saída de Jean Wyllys do Brasil?
R. Convivo com ele, e me sinto triste
porque uma pessoa tão engajada e comprometida que se sente obrigada a
sair do país pode sentir como se isso fosse uma derrota. E falei para
ele algo muito importante. Quando as pessoas que resistiram durante a
ditadura deixaram o país, eles fizeram do exílio uma resistência. Então
ele vai poder, fora do país, conversar sobre a realidade brasileira. Ele
viveu isso, foi congressista três vezes, foi ameaçado, foi alvo de fake
news... Ele tem capacidade de explicar essa realidade, porque ele viveu
em carne e osso. Ele vai ser ainda maior no exílio que dentro do país.
Mas, claro, tem que se readaptar, conhecer seus rumos... Ele não é o
único exilado, e outras pessoas vão sair. Não é um exílio dourado, é
muito isolamento e angústia.
P. Qual a importância de o Ministério Público lançar um site sobre Justiça da Transição no contexto político atual?
R. Estamos preocupados com a possibilidade
de o novo Governo tirar os sites que já existem, como os arquivos de
memórias reveladas, a Comissão Nacional da Verdade (CNV), os arquivos do
DOPS dos Estados... Então, a iniciativa de lançar um site novo, que vai
recuperar, registrar e oferecer para o público informação sobre esse
processo da Justiça de Transição, é muito importe. No Brasil a história é
bem diferente das de outros países da América Latina, porque foram
quase 15 anos de transição democrática e os militares conseguiram
controlar esse processo. A Anistia perdoou agentes do governo que
cometeram graves violações de Direitos Humanos, algo totalmente
diferente da realidade argentina, por exemplo. Lá, o processo foi muito
rápido, porque o Governo era brutal, torturava e matava muito mais
gente. Foi um Governo de seis anos derrotado pela guerra das Malvinas, e
imediatamente houve investigação sobre os crimes da ditadura. No Chile,
houve o plebiscito de 1990 que Pinochet
perdeu, e logo depois fizeram a comissão para investigar os crimes da
ditadura. No Brasil, os anos 80 e 90 foram um momento de organização de
novos partidos políticos, de canalização de toda uma energia anterior
que lutava pela democratização para os novos movimentos sociais. Na
Argentina e Chile, partidos que foram proibidos se reorganizaram
rapidamente. Já estavam preparados, com projetos de Governo.
P. Essa demora em começar a falar do
passado tem a ver também com a crise econômica e inflacionária que
assolava o Brasil no momento da transição?
R. Sim, era uma crise econômica muito
forte e um setor das esquerdas optou, por uma questão pragmática, e já
derrotado pela Lei da Anistia, por enfatizar possibilidades novas e
construir uma democracia com novos partidos e novos movimentos sindicais
e sociais. Mas deixaram de lado a revisão do passado.
E outros setores do PCB, que entraram no MDB, já não estavam
interessados em revisitar o passado, com exceção de alguns casos
pessoais. Então os familiares das vítimas e as pessoas mais
comprometidas não tiveram um apoio social para levar o processo adiante.
Anos depois houve uma acumulação de forças para fazer as várias
comissões.
P. Muitos comparam o número de mortos da
ditadura brasileira com as cifras das ditaduras argentina e chilena,
para dizer que aqui não houve ditadura. Por que aqui essa narrativa
persiste? Acredita que os mecanismos de censura e propaganda do dos
Governos militares no Brasil eram mais sofisticados?
R. O fato de a ditadura brasileira ter
durado 21 anos e ter mudado as regras do jogo para se manter no poder,
manipulado muito a situação, facilitou a falta de clareza das classes
médias sobre a natureza da ditadura. Também tem o fato de que menos
pessoas foram atingidas diretamente. O Brasil é muito maior que a
Argentina, onde a repressão foi concentrada em Buenos Aires. Lá existe
uma tradição muito forte de luta e resistência, enquanto que no Brasil
uma parcela muito menor resistiu e durante um processo muito longo. E
também houve a capacidade, tanto da ditadura como da mídia, de manipular
a informação.
P. A Comissão Nacional da Verdade (CNV)
contabilizou 434 mortes causadas pelo Estado brasileiro. Mas foi na
ditadura que, por exemplo, os esquadrões da morte mais aterrorizaram
favelas e periferias. E também populações indígenas inteiras foram
dizimadas. Acha que a história da ditadura ainda não está completa?
R. A história foi contada num primeiro
momento por exilados, pessoas que estiveram envolvidas na luta armada.
Então óbvio que eles vão enfatizar a história deles. Mas, nesses 21 anos
de ditadura, a polícia e os coronéis do interior tiveram toda a
liberdade para fazer o que queriam. Entre os camponeses, houve massacre
atrás de massacre de pessoas que lutavam pela sua sobrevivência. A
política do Governo Médici de abrir a Transamazônica levou a massacres
de povos indígenas. Estamos vendo isso agora, mas não havia registros sobre essa situação. A mesma coisa sobre a questão LGBT. Não é que não existia repressão contra os LGBT
antes do golpe, mas com o Governo censurando as noticias, com a licença
para a polícia fazer qualquer coisa, havia uma violência muito grande
contra esse setor que seria mais difícil de ocorrer durante o Governo
democrático. O conceito da CNV, que foi o correto, foi o de apurar,
tentar saber quais foram as pessoas que participaram da tortura, tentar
encontrar mais informação sobre os desaparecidos, denunciar o número de
colaboradores do regime... Mas eles tiveram uma missão mais restrita. Eu
e outras pessoas que participamos como assessores conseguimos ampliar
leque e mostrar que a repressão não foi só contra o Partido Comunista,
mas contra a sociedade como um todo. Havia censura e impunidade da
polícia quando quiseram matar negros e gays nas ruas e favelas.
P. Qual é a relação que enxerga entre
violações que já ocorriam antes e durante a ditadura com as violações
que continuam ocorrendo durante o período democrático, inclusive durante
os Governos petistas? A construção de Belo Monte significou remoções forçadas de povos inteiros, como na ditadura. O fato de a história não ter sido bem contada influencia?
R. Não é que não foi bem contada.O processo de
transição, de conciliação de forças políticas para manter-se no poder,
evitou um questionamento mais profundo. Como houve a anistia para
torturadores, a polícia aprendeu que nada acontece se você torturar um negro e até matar.
Se mata, vou dizer que ele tentou me matar primeiro. Há impunidade por
causa da falta de um balanço sério sobre as implicações das violações de
Direitos Humanos durante a ditadura. Houve essa continuidade, e uma
continuidade de uma elite que se manteve sempre no poder e manipulou a
transição e o processo democrático. E uma certa continuidade de práticas
de clientelismo, de acordos de corrupção que se tornaram mais
importantes que os programas para o país. O PT também se adaptou a essa
realidade ao longo do tempo no poder, fazendo uma série de coisas que
foram debilitando sua legitimidade na sociedade. O mensalão significou
ganhar uma maioria, que não conseguiram nas urnas, com pessoas que não
tinham compromissos ideológicos.
P. Quem foi Herbert Daniel? Foi um militante gay numa época em que nem a esquerda abraçava essa pauta?
R. É mais complicado. Num primeiro momento
ele era um jovem estudante querendo fazer faculdade de Medicina. No
último ano de colégio ele descobre que é gay e descobre um mundo
clandestino de pessoas que se encontram na rua para ter relaciones
sexuais... Mas, ao mesmo tempo, ao entrar na faculdade, ele descobre o
mundo da esquerda contra a ditadura. E ele percebe que não tem espaço
dentro dos grupos para ser gay, que há uma marginalização. Então ele
opta por reprimir sua sexualidade e se compromete com a luta armada. Em
determinado momento ele se apaixona por um companheiro e foi Dilma
Rousseff quem o incentivou a se declarar para essa pessoa. O cara não
gostou, disse que podiam continuar amigos, mas que não era gay. E isso
foi um golpe muito forte. Ele percebe que, se queria fazer a revolução,
então não dava para manter uma vida homossexual.
Através de pessoas que o ajudam a se esconder em Niterói,
ele conhece um casal. E o homem desse casal, Claudio Mesquita, era
bissexual. Ficaram grandes amigos e, quando fogem para a Europa, começam
uma relação. Foram companheiros durante 20 anos. Então foi no exílio,
quando já não era militante, que ele começa a repensar tudo e perceber
que não pode mais reprimir sua sexualidade. Em Paris ele passa a
trabalhar como porteiro e assistente de uma sauna gay e a viver dentro
desse mundo. Começa a pensar e a escrever suas memórias. Ao voltar, em
1981, ele publica suas experiências na luta armada, sendo bastante
crítico com relação às estratégias da esquerda e colocando suas ideias
com relação à homossexualidade.
Ele contava sobre sua vida sexual, algo bastante chocante para
esquerda, que considerava a homossexualidade um desvio burguês, uma
preocupação pequena burguesa sobre a sexualidade. Achava ia acabar a
homossexualidade depois da revolução... A sociedade brasileira ainda era
muito conservadora nos anos 60. Havia essa juventude que estava
rompendo com valores tradicionais conservadores, mas ela mesmo vinha de
famílias muito conservadoras. Quando Herbert Daniel volta para o Brasil,
ele vai participar da campanha eleitoral de um ex-guerrilheiro para
deputado estadual no Rio e vai introduzir não somente a questão
homossexual como também a ambiental, que a esquerda ainda achava que era
uma preocupação dos países imperialistas. Mesmo hoje muitos argumentam
que questões de desenvolvimento são mais importantes que o meio
ambiente. Belo Monte é um exemplo desse conflito.
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