Ao tomar decisões pelo volume dos gritos nas redes sociais, o presidente corrompe a democracia
Em apenas dois meses de Governo, o Brasil se tornou o laboratório do novo autoritarismo. Jair Bolsonaro
mostrou que pretende governar não por planejamento nem por projetos,
não por estudos e cálculos bem fundamentados nem por amplos debates com a
sociedade, mas sim pelos urros de quem pode urrar nas redes sociais. O presidente já fritou pelo menos um ministro e tomou decisões a partir da reação de seus seguidores. Se Donald Trump
inaugurou a comunicação direta com os eleitores pela internet, na
tentativa de eliminar a mediação feita por uma imprensa que faz
perguntas incômodas, seu autodeclarado fã brasileiro deu um passo além.
Vende como democracia o que é corrupção da democracia. Governa não para
todos, mas apenas para a sua turma.
Os três filhos,
também políticos profissionais, que ele chama de 01, 02 e 03, fazem o
serviço de expressar a vontade do “Pai”, que eles tratam assim, com
letra maiúscula. Se no Governo oficial há um ministério oficial, no
cotidiano informal da internet o Governo é familiar. A bolsomonarquia
digital se mostra seguidamente mais real – e também mais efetiva.
O presidente confirma e legitima o anúncio de seus “garotos”, como
ele chama sua prole masculina, com um retuíte. Especialmente os de 02,
Carlos Bolsonaro, vereador do Rio, também conhecido como o “pitbull” do pai. A prole feminina, como Bolsonaro já nos informou, com a elegância habitual, é resultado de uma “fraquejada”.
Foi assim quando Gustavo Bebianno, então ministro da Secretaria Geral
da Presidência e parceiro de primeira hora da candidatura de Bolsonaro,
estava enroscado com o laranjal do PSL. Bebianno deu uma entrevista ao
jornal O Globo afirmando que não havia “crise nenhuma” no
Governo por conta das denúncias envolvendo o partido que presidiu
interinamente durante a campanha eleitoral. Para provar, afirmava que
havia falado com Bolsonaro três vezes naquele dia.
O filho 02 tuitou que era “mentira absoluta”
do então ministro. O pai do garoto, que por coincidência é presidente
da República, retuitou. Bebianno vazou os áudios das conversas,
desmentindo Bolsonaro. Ele de fato tinha falado com o presidente três
vezes naquele dia. Quem mentia era Bolsonaro. Mesmo contra a vontade da
ala militar do ministério, cada vez mais numerosa, Bolsonaro atendeu ao
clamor e demitiu Bebianno oficialmente, depois de tê-lo fritado no
Twitter. Esta é a seriedade com que a bolsomonarquia trata a
administração pública.
O “superministro” Sergio Moro descobriu-se menos super na semana passada. Tratado como herói por sua atuação na Operação Lava Jato,
Moro foi pressionado pelo presidente a “desconvidar” Ilona Szabó,
diretora-executiva do Instituto Igarapé, como suplente do Conselho
Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Szabó é uma reconhecida
especialista na área da segurança, mas os seguidores de Bolsonaro a
consideram “esquerdista”. Aparentemente, eles entendem que um conselho
deve ter pessoas que pensam igual, porque daí não é preciso se dar ao
trabalho de debater e apresentar dados consistentes para fundamentar as
escolhas. Os conselheiros apenas confraternizam, dividem um pão com
leite condensado, tomam um café no copinho plástico ecológico.
A capacidade cognitiva dos seguidores de Bolsonaro, porém, o país e o
mundo já conhecem. O impressionante foi Moro ter cedido. E mostrado à
população que não tem nem mesmo o mini poder de nomear uma suplente sem
ter a aprovação da prole de Bolsonaro e sua turma. Assim que o ministro
da Justiça anunciou o vexatório recuo, o 03 tuitou: “Grande dia”.
Aparentemente, os garotos adoram a hashtag #GrandeDia”.
É a estética da bolsomonarquia – e não a ética – que começa a horrorizar os apoiadores e parte do ministério
Bolsonaro sabe que não é inteligente nem preparado, sabe que sua
relação com o Congresso é precária e sabe também que uma parcela de seus
ministros e das forças de direita que o apoiaram já está horrorizada
com a vulgaridade de sua família no poder. Não significa que estes
apoiadores desaprovem a violência. Apenas que prezam as boas aparências.
É a estética da bolsomonarquia que os horroriza. E não a ética.
Como quando o presidente diz ao ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, que está preocupado em ter que pagar os honorários do ex-amigo Bebianno, que era seu advogado em ações na Justiça. “Se ele me cobrar individualmente o mínimo, eu to f… Tem que vender uma casa minha no Rio para pagar”.
O republicano diálogo do presidente da República com o ministro-chefe
da Casa Civil sobre o recém demitido ministro da Secretaria Geral da
República foi vazado numa “ligação acidental” de Onyx a um jornalista de
O Globo.
Bolsonaro sabe também que está no meio de diferentes forças que o
apoiaram para botar seus projetos de poder no topo da lista de
prioridades. E sabe que nem sempre os interesses coincidem, como no caso
da transferência da capital de Israel para Jerusalém,
que agradaria aos evangélicos, mas desagradaria ao agronegócio. Essas
forças precisavam dele para chegar ao poder central —ou para se manter
no poder com ainda mais poder do que no passado. Mas não têm apreço pela
sua presença no Planalto se sua figura trapalhona e truculenta, com
suas crias barulhentas e mal-educadas, começarem a prejudicar os
negócios.
Bolsonaro também já sentiu o bafo na nuca do vice-presidente, general da reserva Hamilton Mourão.
Todo o capital que dispõe para se manter ativo no jogo, e não apenas
uma marionete, é a popularidade nas redes sociais, as mesmas que
garantiram a sua eleição. Bolsonaro já mostrou que fará tudo, inclusive
ampliar a crise do país, se necessário, para manter esse capital ativo
—o que significa manter seus seguidores sentindo-se “representados”.
As escolhas desta época são determinadas pela fé, não pela razão: mesmo ateus se comportam como crentes
Poderia ser uma contradição. Afinal, se a situação do Brasil não
melhorar, não há popularidade que se mantenha. É preciso perceber,
porém, que Bolsonaro faz parte de um fenômeno contemporâneo: as escolhas
são determinadas pela fé, não pela razão. É o mesmo mecanismo que faz
com que, em 2019, as pessoas decidam acreditar que a Terra é plana
ou que achem sentido em afirmar que o Brasil e o mundo estão ameaçados
pelo “comunismo” ou que faz o bolsochanceler, Ernesto Araújo, garantir
que o aquecimento global é um complô de esquerda.
As eleições e o cotidiano têm sido determinados por uma interpretação
religiosa da realidade. A adesão pela fé é um fenômeno mais amplo e não
necessariamente ligado a um credo, já que há muitos ateus que se comportam como crentes. E não só na política, mas em todas as áreas da vida. Esta é a marca deste momento histórico.
É o que também explica que, mesmo com dois meses de um Governo em que
Bolsonaro disse e desdisse o que disse, seu filho 02 chamou um ministro
de mentiroso e a divulgação dos áudios mostrou que quem mentia era o
presidente, mesmo com investigações que apontam envolvimento do filho 01
com a corrupção e com a milícia suspeita de ter assassinado Marielle
Franco, que mesmo com as denúncias do laranjal do PSL, que mesmo com
ministros enrolados com malfeitos, que mesmo com os 24.000 reais de
Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama, sua popularidade pessoal
ainda é alta. Quase 58% acreditam que Bolsonaro mudará a vida dos
brasileiros para melhor, segundo a mais recente pesquisa da Confederação
Nacional do Transporte. É comprovadamente o mais desastroso início de
Governo das últimas décadas, mas ainda assim Bolsonaro segue popular.
Bolsonaro tenta convencer que se mover pelos gritos dos bolsocrentes
nas redes sociais é democracia. Não é. O que Bolsonaro faz prescinde de
qualquer instrumento que garanta a vontade da maioria dos brasileiros a
partir de processos previstos em lei, com acesso assegurado e aferição
confiável. O que Bolsonaro garante é apenas o desejo de um grupo capaz
de fazer seus gritos ecoarem na internet, muitas vezes pelo uso de
robôs. É justamente o voto que tem sido desrespeitado dia após dia no
Brasil de Bolsonaro. Mas, na época em que a verdade se tornou uma
escolha pessoal, como respeitar os fatos? Quando a verdade é autoverdade, como fazer a democracia valer?
Se Bolsonaro seguir nesse rumo, e tudo indica que seguirá, o destino
da maior economia da América Latina será decidido pela quantidade e
volume dos urros dos bolsocrentes nas redes sociais. Nos próximos meses,
a experiência brasileira mostrará como o novo autoritarismo vai evoluir
no confronto com a realidade. É improvável que os diferentes grupos no
poder, com ênfase na turma da farda, vão seguir o caminho vexatório de
Sergio Moro.
Mourão, o vice calculadamente aparecido, segue se manifestando sobre
tudo para pontuar que existe plano B – ou F de farda. Como ao declarar,
sobre o desconvite de Ilona Szabó: “Eu acho que perde o Brasil. Perde o
Brasil todas as vezes que você não pode sentar numa mesa com gente que
diverge de você. O Brasil perde. Não é a figura A, B ou C. Perde o
conjunto do nosso país e nós temos que mudar isso aí". É desconcertante
quando o maior democrata do Governo é um general que já mencionou a
possibilidade de “autogolpe”.
Ao atacar o Carnaval, Bolsonaro tentou deletar do país partido o que ainda resta de uma identidade comum
Estimulado pelo garoto 02, o pai presidente segue firme no seu
desgoverno tuiteiro. Na terça-feira de Carnaval, sentiu-se poderoso o
suficiente para abrir fogo no Twitter
contra a maior festa popular do Brasil, a mesma que enche o país de
turistas. Tentou deletar de um Brasil partido em vários pedaços o que
ainda resta de uma identidade comum, esta que mostrou mais uma vez neste
Carnaval o quanto pode ser transgressora, contraditória e insurreta. E
fazer disso uma potência criadora e uma afirmação da vida, mesmo em meio
às ruínas de um país.
O presidente, claro, não gostou do Carnaval mais insurgente dos
últimos anos, na qual ele e sua turma viraram sátiras nas ruas. Não há
maior potência do que rir do opressor. Com a desonestidade habitual,
Bolsonaro escolheu uma cena isolada de um bloco isolado, na qual um
homem toca seu ânus e outro urina na sua cabeça. Com a
irresponsabilidade habitual, tascou o vídeo no Twitter: “Não me sinto
confortável em mostrar, mas temos que expor a verdade para a população
ter conhecimento e sempre tomar suas prioridades. É isto que tem virado
muitos blocos de rua no carnaval brasileiro. Comentem e tirem suas
conclusões”.
Como sabe que os bolsocrentes acreditam em qualquer coisa, Bolsonaro
tentou convencer os brasileiros que o Carnaval inteiro é assim. Não é.
Quem foi para as ruas sabe. Que o presidente do Brasil diga o que disse
sobre a maior festa popular do país que foi eleito para governar é mais
uma vergonha. Que poste o vídeo que postou no Twitter
é mais uma violência entre as tantas praticadas pela bolsomonarquia e
sua corte. Menos pela cena, mais pela manipulação de tentar afirmar que
ela representa o Carnaval inteiro. Mentira.
O que Bolsonaro não gostou é que a obscenidade do seu Governo foi
revelada nas ruas do Brasil. Então precisou encontrar uma outra para
encobrir a sua.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
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