Revista Piauí
Em 2014 tivemos um estelionato
eleitoral, que foi ruim, mas pareceu brincadeira de criança se comparado
ao fato de que, em 2015, fomos governados por Eduardo Cunha, que, em
2016, quebrou a política brasileira ao meio para entregar a Presidência a
Michel Temer, que só não caiu porque entregou à cafetinagem o Tribunal
Superior Eleitoral e o Congresso (em duas votações) em 2017. As Forças
Armadas invadiram o Rio de Janeiro para garantir foro privilegiado ao
ministro Moreira Franco, e a vereadora em quem votei foi executada no
meio da rua. Desde que o favorito absoluto nas pesquisas presidenciais
foi condenado em segunda instância por corrupção e lavagem de dinheiro, o
primeiro lugar passou para um fascista, que, aliás, só tem 20% das
intenções de voto: se dependesse do eleitorado, essa eleição terminaria
zero a zero. Mais ou menos todo mundo foi pego nas delações das
empreiteiras.
Ou seja, não seria o pior dos exageros dizer que a democracia brasileira está em crise.
Não há dúvida de que a maior parte do
que aconteceu no Brasil provavelmente foi mesmo coisa nossa. Nossos
problemas econômicos de longo prazo, os erros de política econômica de
Dilma, os defeitos do sistema político, a fragilidade do pensamento
econômico de esquerda, o pouco apreço dos conservadores brasileiros pela
estratégia de “ganhar no voto”, tudo isso sempre foi bem conhecido, e
tudo isso foi importante para ajudar a cavar nosso buraco atual.
Mas também é verdade que a democracia
não vai bem ao redor do mundo. O cientista político Larry Diamond criou o
termo “recessão democrática” para descrever como, mais ou menos desde
2006, o número de democracias vem caindo, e a qualidade das democracias
restantes também. É um processo lento, com reviravoltas, mas a tendência
é preocupante.
Afinal, a democracia vinha em uma
ascendente de trinta anos: ao fim das ditaduras do sul da Europa
seguiu-se a democratização da América Latina, o fim das ditaduras
comunistas do Leste Europeu, e alguns processos de democratização na
Ásia e na África.
Essa onda democrática, entretanto,
parece ter chegado ao fim e, talvez, começado a refluir. Na Europa,
Polônia e Hungria são governadas por partidos de extrema direita que vêm
eliminando barreiras legais ao exercício de seu poder. A Venezuela e a
Turquia tornaram-se ditaduras. Dos países que participaram da Primavera
Árabe, só a Tunísia tornou-se democrática. Nem a longevidade no poder do
Congresso Nacional Africano, na África do Sul, nem as sucessivas
reeleições de Evo Morales são sinais de vitalidade democrática. Durante a
crise do euro, as reclamações sobre o “déficit democrático” da União
Europeia foram recorrentes, e nos Estados Unidos o presidente é Donald
Trump.
Enquanto tudo isso acontecia, Dilma
Rousseff caiu, a classe política foi desmoralizada pela Lava Jato, e as
instituições brasileiras perderam a reputação de robustez que haviam
conquistado nos anos anteriores.
O que uma coisa tem a ver com a outra? A
crise brasileira é mais uma manifestação da recessão democrática? O
exemplo brasileiro pode ajudar a entender o processo mais geral? Nossos
comentaristas e analistas políticos têm ignorado o assunto, como se
dissessem: “Não tenho nem roupa para participar da crise global da
democracia.”
Para discutir essa questão, apresento a
seguir dois livros recentes que tratam da crise da democracia sob
ângulos bem diferentes. Em seguida, proponho um ensaio de aplicação dos
conceitos de cada um dos livros para explicar a crise brasileira.
Concluo argumentando que a crise da
democracia no Brasil se destaca entre suas similares por uma implosão
muito mais acentuada do sistema partidário, o que, surpreendentemente,
fez com que o sistema político brasileiro se mostrasse mais capaz de se
recompor do que seus similares ao redor do mundo.
Os dois livros têm quase o mesmo título, que, entretanto, significam coisas muito diferentes: How Democracies Die [Como as Democracias Morrem],
de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, lançado no início do ano nos
Estados Unidos, é uma investigação de ciência política comparada sobre
como países democráticos podem retroceder para formas autoritárias ou
semiautoritárias; How Democracy Ends [Como a Democracia Morre], de David Runciman, a ser publicado em maio,
é uma discussão sobre o que pode fazer a democracia, mesmo nos lugares
onde ela funciona, aos poucos perder seu significado original e
transformar-se em algo irreconhecivelmente diferente.
O livro de Levitsky e Ziblatt –
professores de ciência política em Harvard – é empiricamente mais
rigoroso, por mais que sua motivação política – o medo de que a eleição
de Donald Trump danifique irremediavelmente a democracia americana –
seja evidente. Reconstruindo a história da democracia nos Estados
Unidos, procuram encontrar o segredo que lhe permitiu funcionar
ininterruptamente desde a Independência, bem como aquilo que, nos
últimos anos, fez com que parasse de funcionar como antes.
Runciman, professor de teoria política
na Universidade de Cambridge, escreveu um ensaio mais especulativo, o
que talvez fosse inevitável: seu livro está em busca de sinais que ainda
não são padrões. No caso, sinais de decadência democrática nos países
ricos. Segundo Runciman, o tipo de retrocesso “tradicional”, evidente,
em direção ao autoritarismo ainda pode ser possível no Egito ou no
Brasil, mas as ameaças nas democracias consolidadas são diferentes. Seu
argumento central é esse: a democracia não vai falhar da próxima vez
como falhou da última.
Vou discutir cada livro separadamente,
mas antes de mais nada, é preciso dizer: não é um bom sinal que a
bibliografia sobre a crise da democracia contemporânea venha crescendo
tão rápido.
Atese
central de Levitsky e Ziblatt é a de que não foi a excelência da
Constituição americana que garantiu a continuidade democrática desde a
Independência dos Estados Unidos. A Constituição escrita pelos founding fathers tem
muitos méritos, mas, como se sabe, é bastante curta. Há inúmeras
brechas para a manipulação das regras do jogo por dentro mesmo da
legalidade. Se essas brechas tivessem sido exploradas em todas as
oportunidades, a história política americana teria sido muito mais
turbulenta.
As condições que autorizam o impeachment
pelo Congresso, por exemplo, são vagas: a princípio, todo presidente
poderia ser impedido quando perdesse a maioria parlamentar. E,
entretanto, isso não acontece. Nos Estados Unidos, ao menos.
Levitsky e Ziblatt argumentam que a
democracia americana é sustentada por um conjunto de normas não escritas
capazes de impedir que esses pontos cegos da Constituição sejam
explorados para desestabilizar o sistema. A primeira dessas normas é o
que eles chamam de autocontrole (forbearance): a disposição de se
abster de usar contra o adversário todos os recursos institucionais
disponíveis, pelo bem do funcionamento do jogo político como um todo.
Vários presidentes americanos enfrentaram congressos de maioria
oposicionista, e sempre, nesses casos, a oposição conseguiu tornar a
vida deles bem mais difícil. Mas quase nunca a maioria optou pela “opção
nuclear” do impeachment, preferindo não correr o risco de instabilidade
que impeachments frequentes trariam para a democracia. Isto é,
demonstraram autocontrole.
O problema, dizem os cientistas
políticos de Harvard, é que essas normas não escritas têm perdido força.
Pouco antes da eleição de Trump, os republicanos deixaram de respeitar,
de maneira bastante aberta, o imperativo de autocontrole: impediram que
Obama nomeasse o substituto de Antonin Scalia, um juiz conservador da
Suprema Corte, que faleceu no último ano de mandato do presidente
democrata. A maioria republicana preferiu esperar a posse de Trump para
só então aprovar o substituto, um conservador nomeado pelo novo
presidente. Isso não foi ilegal: mas, como notaram Levitsky e Ziblatt,
foi claramente uma violação das normas que orientavam as nomeações da
Suprema Corte até então. E a democracia não funciona se todas as
possibilidades legais forem sempre utilizadas contra o adversário sem
consideração pelas consequências.
A segunda regra fundamental é a
tolerância mútua. A propaganda contra o adversário pode ser agressiva (e
é), mas deve se abster de colocar em dúvida a legitimidade do oponente:
você pode considerar seu adversário incompetente, burro, vagabundo,
ladrão, mau-caráter, defensor de ideias que prejudicarão muito o país,
mas não pode questionar seu direito de participar da disputa democrática
como um postulante legítimo.
As tentativas, ao longo do ciclo de
governos petistas, de pintar o PT como uma conspiração antidemocrática a
serviço do Foro de São Paulo foram violações da norma de tolerância. O
mesmo é verdade sobre a propaganda petista contra Marina Silva em 2014,
retratando a proposta de autonomia do Banco Central como uma conspiração
de banqueiros para roubar comida da mesa dos pobres.
A violação da norma de tolerância é
recorrente no discurso populista. Em seu livro recente sobre o
populismo, Jan-Werner Müller mostrou como populistas recortam o
eleitorado entre “o povo de verdade”, “o povo que importa” e os outros,
os estrangeiros ou “penetras” do jogo democrático.
Nesse, como em outros casos, é mais
fácil explicar uma regra pela sua violação: quando a escritora Ann
Coulter diz que o eleitorado americano não está virando à esquerda, mas
sim que está diminuindo (porque está incorporando mais negros, latinos
etc.), ela está dando uma aula de populismo, e violando a norma da
tolerância.
Assim,
para Levitsky e Ziblatt, a eleição de Trump seria o coroamento de um
processo de deterioração das normas democráticas americanas. Mas Trump,
eles insistem, é um sintoma dessa crise, não seu criador.
Desde o fim da segregação racial a
política americana se tornou cada vez mais polarizada. O Partido
Republicano passou a ser visto e a atuar como o partido da maioria
branca. A desigualdade econômica aumentou, e amplos setores da sociedade
americana se sentem “deixados para trás” pela globali-zação. A política
americana tornou-se menos tolerante; os conflitos, crescentemente
acirrados; e a disposição para jogar pesado (o hardball) contra o adversário é cada vez maior.
Apesar de tudo isso, em seu primeiro ano
de mandato Trump não conseguiu quebrar a democracia americana.
Certamente gostaria de tê-lo feito. Na campanha, o republicano
manifestou todos os sinais de candidatos a líderes autoritários
identificados por Levitsky e Ziblatt. Mas as instituições americanas,
até agora, foram capazes de controlá-lo. Os trumpistas já disseminam
teorias da conspiração sobre o “Estado Profundo” (deep state), uma conspiração de insiders que
estariam impedindo o presidente americano de cumprir suas promessas de
campanha. Na verdade, quem está contendo Trump são as instituições
criadas pelos founding fathers para se prevenir contra presidentes como ele.
Mas seria um erro adotar a atitude
complacente de “as instituições estão funcionando”, mesmo em terras
distantes em que de fato estão. Afinal, notam Levitsky e Ziblatt, um
surto de popularidade de Trump ou uma crise nacional grave – uma guerra,
um grande atentado terrorista – pode fortalecê-lo e permitir que
consolide sua reversão autoritária. Se isso acontecer, dizem os autores,
a América terá falhado em seu verdadeiro excepcionalismo, o projeto de
construir uma grande e vibrante democracia multiétnica.
Olivro
de Runciman parte do princípio de que, cedo ou tarde, tudo acaba. Será
que também a democracia pode, em algum momento, acabar? Trata-se de um
fenômeno histórico relativamente recente, lembra o professor de
Cambridge. Nada garante que vá durar mais ou menos do que outras formas
de governo.
Runciman vê paralelos entre o período
atual de crise democrática e a última década do século XIX, marcada por
movimentos populistas, teorias da conspiração, mudanças tecnológicas,
desigualdade crescente, e a falta de uma guerra (que ofereceria uma
experiência de trauma coletivo semelhante àquela que o populismo
encena).
Aquela crise da democracia deu origem a
uma espetacular era de reformas, em que se consolidaram as duas bases de
sustentação da democracia: a garantia de prosperidade futura,
conseguida por meio da combinação entre capitalismo e estado de
bem-estar social, e o reconhecimento da dignidade individual, pelo
respeito aos direitos individuais e o direito ao voto. Nos lugares em
que a democracia conseguiu se consolidar, a crise da democracia do final
do século XIX a fez ressurgir mais forte do que nunca.
A crise atual, entretanto, dificilmente
será resolvida como a do século XIX. Não há como expandir o estado de
bem-estar social indefinidamente, e, nos países desenvolvidos, o direito
ao voto é universal. Se esses limites já não bastassem, há uma outra
característica, bastante particular, específica dos dias atuais, segundo
Runciman: os problemas colocados diante da sociedade moderna talvez
estejam se tornando ou grandes demais ou pequenos demais para serem
resolvidos pela governança democrática.
Por um lado, há uma série de ameaças
existenciais pairando sobre a espécie: o risco de guerra nuclear, o
risco de catástrofe ambiental, e, talvez, em um futuro não tão distante,
o risco de subjugação pela tecnologia.
Não é claro que a democracia consiga
lidar bem com esses problemas de grande escala. Os governos democráticos
deixaram o problema do aquecimento global chegar a um ponto em que
talvez não seja mais possível evitar uma catástrofe. Poderíamos ter
votado por limites ao nosso próprio consumo, mas, até agora, não
votamos. Da mesma forma, devemos mesmo dar a Donald Trump o poder de
destruir o mundo apertando um botão? Mas, se não o fizermos, quem deve
ter esse poder? Os generais americanos provavelmente são mais confiáveis
do que Trump, mas o quão confiáveis eles são?
Da mesma forma, há um risco real de que a
mudança tecnológica comprometa a democracia. O caso mais evidente é a
possibilidade de aprimoramento genético para quem puder pagar. Se os
filhos dos ricos forem programados para serem superinteligentes ou
supertalentosos, será que a igualdade jurídica ainda vai significar a
mesma coisa? As possibilidades abertas pela tecnologia podem ser
fascinantes: um futuro de automação total em que passemos nossa vida nos
divertindo, por exemplo. Mas também podem ser terríveis – uma ditadura
de super-homens geneticamente aprimorados, uma vida social destruída
pela virtualidade e pela fragmentação da identidade que ela traz. Ainda
não temos instrumentos analíticos para prever sequer que problemas
teremos nesse front.
Essas ameaças grandes demais para a
democracia transferem poder aos tecnocratas e outros tipos de
especialistas, que, cada vez mais, também controlam áreas importantes da
vida social, como a gestão macroeconômica. Isto é, a participação na
gestão dos benefícios de longo prazo do desenvolvimento é cada vez menos
decidida democraticamente.
E não basta simplesmente injetar o ruído
da democracia na gestão tecnocrática: isso pode funcionar quando o
problema é a insensibilidade social ou a inércia dos especialistas, mas e
se a gestão do problema exigir o mínimo de turbulência possível? O
acrobata será beneficiado se o público começar a urrar sua desaprovação
no meio do trajeto? Como saber o que é insensibilidade e inércia e o
que, de fato, exige deixar o acrobata em paz? Não é uma questão simples.
Naturalmente, todo sujeito inerte e insensível vai mentir que é
acrobata.
Por outro lado, a dimensão “dignidade
pessoal” da democracia – o respeito aos direitos individuais e à livre
expressão dos cidadãos – é cada vez mais privatizada, e cada vez mais
deriva para o anarquismo das redes sociais. E esse espírito
ultrademocrático das redes sociais, se tem um lado bom evidente, também
traz riscos significativos. Runciman lembra que Tocqueville via nos
linchamentos americanos uma manifestação deformada do espírito
democrático: a maioria se sente autorizada a descontar suas frustrações
nas minorias vulneráveis. Na democracia moderna esses impulsos são
domesticados pelas instituições, pela presunção de inocência, pelos
direitos das minorias. Mas ainda não há nada disso na democracia das
redes. Na frase de Runciman, “nós não linchamos mais; a não ser no
Twitter”.
O tipo de individualidade formado pelo
anarquismo das redes sociais também desfavorece a política democrática.
No Facebook, no Instagram ou no Twitter, as pessoas se acostumam a ter
gratificações imediatas, na forma de likes, compartilhamentos,
retuítes, comentários. A democracia representativa funciona de outra
forma: não gera gratificação imediata, e, como nota Runciman, não foi
feita para fazê-lo. O ritmo mais lento dos compromissos partidários, dos
procedimentos parlamentares, das negociações e acordos, deveria servir
de contrapeso aos vieses cognitivos que nos tornam míopes. Os partidos
políticos, em especial, deveriam administrar esse processo de avanços e
tréguas, o tempo longo do compromisso.
Daí a tendência recente à substituição
do partido – incapaz de gerar gratificações imediatas – pelo movimento. O
Podemos da Espanha começou como movimento, o En Marche! de Emmanuel
Macron foi criado em torno de seu líder, e o trabalhismo de Jeremy
Corbyn representou a tomada do Partido Trabalhista por um movimento.
Esses movimentos, para Runciman, são como o Facebook: combinam máxima
horizontalidade – as redes, a espontaneidade etc. – com lideranças
fortemente verticais. O Facebook é uma rede horizontal, sem dúvida, mas é
também, no fim das contas, o brinquedo do Mark Zuckerberg. É ele quem
decide as regras do jogo, e as modifica como e quando quer. O mesmo vale
para Macron no En Marche!
A conclusão do livro é a de que só a
política pode resgatar a política. É preciso que as tentativas de
manipulação tecnológica e o poder do mercado sejam enfrentadas por
políticos com coragem de desafiar fortíssimos interesses econômicos. O
próprio mercado global é uma máquina que saiu de controle, e — – como
no New Deal, em reação à crise econômica da década de 30 – a
solução é simples: só o exercício do poder político pode limitar o poder
do mercado ou da técnica. Só o antigo Leviatã pode enfrentar o novo
Leviatã.
Como essas duas perspectivas – a dos cientistas políticos de Harvard e a do professor de Cambridge – se cruzam? Ao final de Como a Democracia Morre,
Runciman lamenta que o trabalho de Levitsky e Ziblatt tenha sido
publicado quando seu próprio livro já estava pronto, e manifesta sua
torcida para que as duas perspectivas se revelem complementares. São?
Há temas em comum entre os dois livros:
em primeiro lugar, o caráter muito mais gradual dos retrocessos
democráticos recentes. Como notou Runciman, as democracias frágeis têm
uma, e só uma vantagem sobre as sólidas: elas sabem quando acabam. Os
generais fecham o Congresso, ocupam as estações de tevê, e todo mundo
sabe o que aconteceu. Não é só que a democracia pode acabar de forma
lenta: há toda uma área cinzenta entre democracia e ditadura dentro da
qual é possível se mover com avanços e retrocessos. E talvez a
democracia não acabe, ela só passe a significar menos do que já
significou.
O caso de sucesso mais evidente da
democracia – os países desenvolvidos no pós-guerra – aconteceu quando a
discussão política se dava em torno de pautas de “médio alcance”, como o
tamanho do estado de bem-estar social ou os níveis de tributação.
Conforme essas questões foram resolvidas (ou excluídas da pauta pela
exigência de competitividade global), os problemas passaram a girar em
torno de temas que talvez sejam grandes demais (o risco de guerra
nu-clear) ou pequenos demais (a epidemia de opiáceos nos Estados
Unidos). Esse deslocamento do eixo da discussão pode ajudar a explicar
por que retrocessos democráticos começaram a afetar mesmo as democracias
mais maduras, favorecendo o surgimento de populistas como Trump. A
erosão dos valores democráticos identificada por Levitsky e Ziblatt e a
necessidade de gratificação imediata discutida por Runciman podem ser
processos que se alimentam. A desigualdade de renda, que para Levitsky e
Ziblatt faz crescer a polarização partidária, em Runciman (seguindo
Paul Krugman) dificulta a articulação política em torno da produção de
bens públicos.
Além disso, é possível pensar em um
cenário em que o esvaziamento da democracia descrito por Runciman torne
um retrocesso como o descrito por Levitsky e Ziblatt mais provável. Por
mais que a política se transforme, é bem provável que o controle da
máquina estatal continue a ser um bom negócio. Se os vínculos entre
expectativas e valores do público das redes – cada vez mais imediatistas
– e a realidade da política institucional se esvaziar, a disputa pelo
poder vai continuar, agora sem o público e sem valores. Se decidirmos,
definitivamente, que o poder não nos representa mais, podemos ter
certeza de que alguém vai torná-lo seu representante. E é muito
improvável que o vencedor dessa briga não seja quem já conta com
recursos de poder consideráveis.
Talvez
os dois livros tenham o mesmo defeito: é bem claro que o pano de fundo
de suas análises é a crise de legitimidade do liberalismo depois da
crise financeira de 2008, mas a crise e seus desdobramentos não são
partes importantes de nenhum dos dois livros. Ao menos como respostas às
analogias correntes com os anos 30, que transcorreram sob o impacto da
crise de 1929, a crise de 2008 merecia mais atenção em uma explicação da
crise atual nas democracias.
A desigualdade já vinha crescendo havia
um bom tempo, mas em 2008 ficou claro que ela não seria revertida em
prosperidade geral: ao contrário, os governos salvaram os bancos (como
era mesmo necessário fazer) e deixaram os pobres entregues à própria
sorte (o que foi um crime). A União Europeia, símbolo de integração
pacífica entre países, passou a ser vista como uma agência de cobrança
que vetava ou aprovava os líderes eleitos em cada país-membro. Os países
ricos já eram cheios de imigrantes, mas até pouco tempo atrás o
multiculturalismo era só uma das manifestações de uma integração
cultural global que prometia prosperidade para todos. Como os trabalhos
do cientista político Peter Mair já haviam mostrado, os partidos
políticos vinham perdendo legitimidade, mas a alternativa a eles foi,
por um bom tempo, o desinteresse e a abstinência eleitoral. Só
recentemente esses partidos enfraquecidos tiveram que enfrentar a
concorrência de movimentos populistas agressivos. Não é por acaso que
Trump centrou fogo nas elites cosmopolitas dos grandes centros, ou que
todos os outsiders europeus – à esquerda e à direita – centrem fogo em Bruxelas.
A análise da crise global também é
importante por outro motivo: a “política de médio alcance” de que fala
Runciman desapareceu porque faltam boas propostas para encaminhar um
novo pacto social como os que foram alcançados pela social-democracia do
pós-guerra ou pela “terceira via” da primeira fase da globalização. Há
boas razões para suspeitar que a solução da crise da democracia passe
pela recomposição do pacto social em torno da globalização. Se um novo
compromisso começasse a gerar prosperidade compartilhada nos países
ricos amanhã, é provável que quinze dias depois as ameaças populistas já
estivessem bem mais enfraquecidas, e as partes desse novo acordo mínimo
servissem de base para um renovado padrão de concorrência eleitoral.
No geral, os dois livros têm muitas
semelhanças e pontos de contato, mas, além das semelhanças, há, sim,
complementariedades. Runciman dá mais atenção aos problemas que se
apresentam à democracia e à sua relação com a vida na sociedade
contemporânea. Levitsky e Ziblatt dão mais atenção à competição política
no sentido mais estrito (disputas entre partidos etc.) e à deterioração
das instituições. Supondo que a competição política dependa do que
acontece na vida concreta das sociedades, e que as instituições dependem
de legitimidade produzida culturalmente, é fácil ver que as duas
perspectivas se complementam.
Vejamos agora como esse cruzamento de
perspectivas pode nos ajudar a entender a atual crise democrática
brasileira, a maior desde a redemocratização.
Um dos
elementos mais importantes da política brasileira nos últimos anos foi o
surgimento de uma política da indignação sustentada pelas redes
sociais. O papel dessa política de indignação nas manifestações de 2013 e
na luta pelo impeachment é evidente, mas ela é fundamental para
entender como a Lava Jato funcionou desde 2014: foi por meio das
mobilizações nas redes sociais que o sistema político mediu o grau de
insatisfação popular contra as diversas tentativas de interromper as
investigações.
Mas desses três processos – junho de
2013, as passeatas da Paulista, a mobilização pela Lava Jato – só um foi
claramente bem-sucedido: Dilma Rousseff caiu. As manifestações de 2013
tiveram efeitos políticos modestíssimos, e a Lava Jato vem sofrendo
derrotas cada vez mais frequentes desde o impeachment.
O que isso nos diz sobre o tipo de
política das redes sociais que preocupa tanto Levitsky e Ziblatt quanto
Runciman? A experiência brasileira é clara: a política das redes só foi
eficaz quando teve um ponto de entrada na luta política tradicional.
Saudada como “refundação da república”
pelos mais exaltados no momento em que aconteceram, as manifestações de
2013 perderam prestígio. A direita perdeu o interesse quando teve seu
próprio 2013, as manifestações pelo impeachment. E, na esquerda
institucional, a interpretação dominante tornou-se algo mais ou menos
assim: voluntária ou involuntariamente, talvez (nas interpretações mais
doidonas) com participação estrangeira, as manifestações de 2013
ajudaram a criar uma onda conservadora que deu origem ao impeachment (ou
golpe) de 2016. O culto a “Junho” sobrevive, entretanto, no PSOL, na
Rede Sustentabilidade, entre os anarquistas e na esquerda universitária.
Mas as manifestações foram simplesmente
espetaculares. As grandes cidades brasileiras pararam. Foi,
provavelmente, a maior onda de manifestações da história do Brasil.
Subitamente, pequenos grupos da esquerda não lulista (o Movimento Passe
Livre, os coletivos anarquistas, os black blocs) pautavam a vida
nacional. O efeito de espetáculo dos carros queimados gerou evidente
fascínio, ao mesmo tempo que todos manifestavam seu repúdio à violência.
O aumento da tarifa de ônibus foi cancelado, e todos nos familiarizamos
com personagens como Sininho, Game Over, Pablo Capilé e a economia dos
“cubo cards”.
E, entretanto, Junho não deixou nenhum
legado institucional. Não teve nenhuma influência sobre a eleição
presidencial seguinte, vencida pela situa-ção. Nenhum dos líderes do
movimento teve uma carreira de sucesso. Poucos anos depois de termos
discutido a sério ônibus de graça para todo mundo, estávamos debatendo
que escolas fechar porque o dinheiro acabou.
Nenhum movimento ou partido foi fundado a
partir de Junho de 2013. O partido que mais se aproximou do espírito de
Junho foi a Rede Sustentabilidade, de Marina Silva, legenda que até
hoje enfrenta seríssimas dificuldades para se consolidar. A Rede
Sustentabilidade, aliás, apresenta diversos problemas que Runciman
identifica em movimentos como o En Marche! (e no Facebook): tem alta
horizontalidade, mas, ao mesmo tempo, é o brinquedo de Marina Silva,
como o En Marche! é de Macron. Entre os dissidentes da Rede, são comuns
reclamações sobre a concentração de poder em torno do círculo de Marina
(no qual só ela tem peso eleitoral). Nenhum partido tem mais a cara de
“Junho” do que a Rede Sustentabilidade, e a Rede não conseguiu se
consolidar. Seria culpa de Junho?
Talvez seja, ao menos em parte. A baixa
tolerância à frustração, identificada por Runciman na política das redes
sociais, pode ter contribuído para evitar que Junho de 2013 tenha
deixado legados políticos consistentes. O “não me representam” pode não
ter sido apenas uma crítica à classe política realmente existente, mas
um desafio à própria ideia de representação, uma falta de tolerância ao
tempo lento do compromisso. A Rede Sustentabilidade vem demonstrando
grande dificuldade em fazer alianças, e mesmo críticos simpáticos ao
partido (como eu) se preocupam com a estratégia que a Rede adotaria para
montar uma maioria parlamentar se Marina vencesse a eleição
presidencial. Há algo de narcisista nesse purismo, como há algo de
narcisista na política das redes sociais.
Ainda acho que as manifestações de 2013
foram bem-vindas, porque a situação da classe política brasileira, nos
termos de Runciman, era muito mais parecida com a do político inerte do
que com a do acrobata na corda bamba. Mas a consolidação desse tipo de
atitude pode ter sido prejudicial. Imaginem a vantagem para o país se,
em 2015, houvesse um partido forte capaz de bancar a pauta da convocação
de novas eleições em vez da fraude do impeachment?
Os movimentos pelo impeachment foram
outra história. Também se caracterizaram pela utilização ativa das redes
sociais, e usaram amplamente o repertório das manifestações de 2013
(inclusive o slogan “Vem Pra Rua”). A diferença crucial é que a turma de
2015 não teve pudor de se aliar a um dos lados da briga política
institucional, a direita, e abandonar a reivindicação de “apartidarismo”
assim que Dilma caiu. Seus líderes hoje são assessores de políticos e
concorrem a cargos eletivos. O Movimento Brasil Livre tornou-se um
pequeno exército de trolls de internet que negocia seu apoio a candidatos presidenciais de qualidade duvidosa.
Ao aliar a política de indignação das
redes com o que havia de mais poderoso na política institucional – os
partidos de direita, os ricos –, o movimento pelo impeachment tornou-se
muito diferente de Junho, mas muito parecido com os movimentos
populistas que venceram ao redor do mundo.
A insurreição de Trump teve tempo e
lugar: aconteceu nas prévias partidárias. Depois disso, ele concorreu
como o legítimo candidato do Partido Republicano. Como notaram Levitsky e
Ziblatt, o trágico é que a legenda tenha deixado de desempenhar sua
função de filtro contra gente como Trump, permitindo que, daí em diante,
a eleição fosse “normal” (e o normal é a troca do partido na
Presidência de oito em oito anos). Da mesma forma, o Brexit aconteceu
pelas mãos do Partido Conservador britânico, e é difícil imaginar algo
mais establishment do que os tories. David Cameron imaginava que o
Brexit seria derrotado no plebiscito, enfraquecendo o Ukip (sigla em
inglês para Partido da Independência do Reino Unido), que desafiava os tories pela direita. Perdeu, e agora são os tories a
implantar o programa do Ukip. Do outro lado, o trabalhismo também se
viu tomado por dentro, pelo movimento de Jeremy Corbyn, que foi
bem-sucedido onde Bernie Sanders fracassou. Esses movimentos foram
vitoriosos porque conseguiram jogar o jogo tradicional de esquerda versus direita. Como o mbl conseguiu, mas a Rede Sustentabilidade não.
E a mesma dinâmica pode ser vista na história da Lava Jato.
A Lava Jato é fruto de um processo de
aprimoramento institucional de muitos anos. Mas a conversão da Lava Jato
em força política passou por sua absorção pela política de indignação
das redes sociais. Quando se fala da pressão da opinião pública em favor
da Lava Jato, a esperança (ou o medo) reside exatamente nessa
capacidade das redes sociais de organizarem manifestações como as de
2013 ou 2015.
Enquanto a Lava Jato convergiu com o
movimento do impeachment, isto é, com interesses poderosos dentro do
sistema político, ela fez o que quis. Entre 2015 e 2016 vivemos o que a
jornalista Renata Lo Prete chamou de “Império da Lava Jato”. Assim que
Dilma caiu, a Lava Jato tornou-se mais parecida com Junho de 2013: uma
expressão poderosa de indignação popular que, entretanto, não conseguiu
produzir um Leviatã que enfrentasse o Leviatã do outro lado. Assim que
deixou de ser bom negócio para a direita, e com a esquerda já
denunciada, a Lava Jato começou a refluir.
A Lava Jato, como as manifestações de
2013, atacava o sistema político como um todo. A direita conseguiu
apoiar a Lava Jato hipocritamente enquanto as denúncias não chegavam até
ela, mas, no fim das contas, todo mundo era financiado pelo cartel das
empreiteiras.
E aqui talvez esteja a chave para
entender a especificidade da crise democrática brasileira diante das
outras: exatamente porque ela foi mais grave que as outras – porque a
Lava Jato explodiu o sistema partidário –, a política de indignação
popular não achou uma brecha no sistema político. Não havia mais
partidos fortes para fornecer-lhes um ponto de entrada, como os
republicanos foram para Trump, os tories para o Brexit ou os trabalhistas para Corbyn.
Longe de dar o poder a um outsider, a turbulência política no Brasil derrubou Dilma Rousseff para promover uma extraordinária recomposição do sistema.
No livro
de Levitsky e Ziblatt, um dos exemplos de exercício de autocontrole
institucional é justamente a parcimônia com que o instituto do
impeachment sempre foi utilizado pelos americanos. Podemos acrescentar
que o próprio fato do julgamento do impeachment ser realizado pelo
Congresso – e não por um tribunal – mostra o quanto os legisladores se
preocuparam com as consequências políticas do processo. Não se trata,
nem de longe, de uma questão eminentemente jurídica. É a redistribuição,
pelo Congresso, do principal prêmio em disputa em um sistema
presidencialista – o cargo de presidente da República. É o tipo de coisa
que pode degenerar em guerra civil. Ao final do livro, Levitsky e
Ziblatt acautelam os democratas: só pensem em impeachment para Trump se
isso for resultado da construção de um grande consenso nacional que
envolva também parte importante da direita. Aceitem compromissos
programáticos com a direita moderada se isso for necessário para
derrotar o radicalismo de Trump.
O impeachment de Dilma Rousseff, em
contraste com as recomendações de Levitsky e Ziblatt, foi realizado
assim que se tornou institucionalmente possível: quando Eduardo Cunha
deu início ao processo, em represália ao voto do PT contra ele no
Conselho de Ética. Não houve qualquer esforço de estabelecer um consenso
entre esquerda e direita durante o impeachment de Dilma – ao contrário
do que houve no impeachment de Collor. Os votos a favor e contra o
impeachment são mapeáveis quase que perfeitamente na divisão direita versus esquerda
no Congresso. Temer chegou ao Planalto com um programa de governo
claramente pró-mercado, o que impediu que os partidos de esquerda
concorrentes do PT apoiassem o impeachment. O impeachment de Dilma foi
um ato de poder de um dos lados do espectro político – o lado que havia
perdido em 2014 –, exercido como gesto de autoafirmação, sem qualquer
esforço de incorporar bandeiras do outro lado.
E o impeachment foi só a conclusão do processo que Levitsky e Ziblatt chamaram de hardball, o uso de toda e qualquer possibilidade institucional para derrotar o adversário.
A direita tentou impedir a posse de
Dilma Rousseff com base em boatos de Facebook: passado algum tempo, o
candidato derrotado em 2014, Aécio Neves, admitiu que havia entrado com o
processo “só para encher o saco”. E a eleição de Eduardo Cunha para a
presidência da Câmara dos Deputados foi um marco: daí em diante, as
instituições brasileiras seriam ligadas ou desligadas conforme o
interesse dos derrotados de 2014.
Em seu segundo mandato, Dilma tentou
corrigir as atrocidades que fez na gestão macroeconômica no primeiro,
que, não custa enfatizar, foram inúmeras. Ninguém deixou. Essa mesma
turma que agora faz anúncio “Sem a reforma da Previdência, o Brasil vai
quebrar” votou a favor do fim do fator previdenciário em 2015 para
impedir Dilma de arrumar as contas públicas. Ao menos demonstraram
coerência – involuntária – fracassando em aprovar a reforma durante o
governo Temer. Eduardo Cunha esvaziava o plenário quando os vetos de
Dilma às pautas-bomba iam à votação, e todos os parlamentares
direitistas, dos mais radicais aos mais moderados e pretensamente
civilizados, deixavam o recinto como um rebanho dócil.
Na verdade, o Brasil teve outra
Constituição em 2015-2016, e ela foi revogada após o impeachment. Em
2015, delações eram provas suficientes para derrubar políticos e
encerrar carreiras. Em 2017, deixaram de ser. Em 2016, era proibido
nomear ministros para lhes dar foro privilegiado; em 2017 deixou de ser.
Em 2016, os juízes eram vistos como salvadores da pátria, em 2017
viraram “os caras que ganham auxílio-moradia picareta”. Em 2015, o
sujeito que sugerisse interromper a guerra do impeachment em nome da
estabilidade era visto como defensor dos corruptos petralhas; em 2017
tornou-se o adulto no recinto, vamos fazer um editorial para elogiá-lo.
Em 2015, presidentes caíam por pedaladas fiscais; em 2017 não caíam nem
se fossem gravados na madrugada conspirando com criminosos para comprar o
silêncio de Eduardo Cunha e do doleiro Lúcio Funaro. Em 2015, a
acusação de que Dilma teria tentado influenciar uma decisão do ministro
Lewandowski deu capa de revista e inspirou passeatas. Em 2017, Temer
jantou tantas vezes quanto quis com o ministro do Supremo Tribunal
Federal que o julgaria no TSE e votaria na decisão sobre o envio das
acusações da Procuradoria-Geral da República contra ele, Temer, ao
Congresso. Em 2015, Gilmar teria cassado a chapa Dilma-Temer. Em 2017,
não cassou.
Oleitor
pode ter qualquer opinião sobre temas jurídicos: talvez não lhe pareça
razoável considerar delação como prova; talvez não fosse razoável cassar
a chapa no TSE; talvez seja legítimo nomear ministros para lhes dar
foro privilegiado; talvez seja errado prender logo após o julgamento em
segunda instância; talvez valha o benefício da dúvida quando o
presidente é gravado combinando crimes.
O que é obviamente errado, e
indiscutivelmente aconteceu no Brasil nos últimos anos, é um dos lados
da disputa política ter o poder de ligar ou desligar instituições
conforme seus interesses.
E lembrem-se: não se trata só da
conquista da Presidência. Os áudios de Romero Jucá deixaram claro que o
impeachment era uma contrarreforma, uma reação do sistema contra a Lava
Jato. Não há dúvida de que o PT teria parado a operação, se pudesse –
desde que caiu, o partido só fala nisso. Mas não era a esquerda quem
tinha poder para fazê-lo. Como já vimos, depois que a Lava Jato deixou
de servir de degrau para o impeachment, sua luta contra o sistema
político tornou-se muito mais desigual. A operação ainda continua, e
talvez ainda produza frutos, mas o Império da Lava Jato caiu.
Além disso, a elite econômica mostrou-se capaz de controlar o timing das
quedas dos políticos. Dilma caiu quando era presidente. Lula foi
condenado quando liderava a pesquisa presidencial. Cunha foi poupado até
a semana seguinte da aprovação do impeachment. Se Temer for
investigado, será quando nenhuma reforma desejada pelo mercado depender
mais dele. Se Temer caísse em 2017, se Cunha caísse em 2015, a Bolsa
despencaria na hora (como despencou no Joesley Day). Quando Cunha
caiu em 2016, a Bolsa continuou feliz da vida. Se Temer cair em 2019,
será a mesma coisa. Se quiserem ver poder, poder de verdade, procurem
quem teria perdido dinheiro se a Bolsa tivesse caído.
Mesmo sem supor qualquer viés
conservador nos investigadores da Lava Jato, seu efeito sobre cada um
dos lados da disputa política foi claramente enviesado: a direita
conseguiu segurar os seus no poder até eles perderem importância. A
esquerda perdeu uma presidente e um candidato favorito.
Isso é poder, meu amigo, poder em estado
puro. Aqui já não tem mais norma, não tem mais instituição. E esse
exercício descarado de poder é um sintoma claro de que nossa democracia
anda bastante doente.
Isto é, no Brasil, ainda mais do que nos
Estados Unidos, a norma do autocontrole foi para o espaço até o PT
cair. Nossa deterioração institucional foi muito mais grave do que
qualquer coisa que Trump tenha feito até agora. Talvez as instituições,
em 2019, sejam, por fora, iguais ao que eram em 2013. Mas o fato de que,
em 2015-2016, a direita as ligou e desligou conforme seu interesse não
vai ser esquecido por ninguém.
Odebate
sobre o “golpe de 2016” corre o risco de obscurecer a natureza e a
dimensão da crise democrática brasileira. A essa altura, só gente muito
protegida na própria bolha ideológica dirá que a democracia brasileira
não está funcionando muito pior do que funcionava até 2015. Mas talvez
“golpe” não seja mais o conceito relevante aqui: talvez a democracia
brasileira, nos termos de Runciman, esteja dando errado de uma forma
diferente.
O impeachment de 2016 fez parte de um
processo maior de deterioração democrática, que só se acelerou desde
então. As normas de tolerância e autocontrole deixaram de operar em grau
muito mais intenso do que nos Estados Unidos de Trump ou no Reino Unido
do Brexit. A separação entre a política macro em que foi decidido o
ajuste fiscal e a política micro da indignação moral foi total. Talvez a
política de indignação das redes sociais consiga se transformar em uma
força positiva na política brasileira, mas, até agora, só foi escada
para as manobras palacianas mais cínicas possíveis. E a recomposição do
sistema político por meio do impeachment ainda arrisca fortalecer
movimentos populistas nas eleições deste ano.
A democracia brasileira está em crise, o
mesmo tipo de crise que diversos países do mundo vêm experimentando
desde a crise de 2008. Demos mais sorte do que os países em que a
democracia colapsou, como a Venezuela ou a Turquia, mas foi
particularmente ruim ter que administrar os efeitos da “nova matriz
econômica” enquanto a política brasileira desmoronava.
Oque o
exemplo brasileiro sugere, portanto, é que fenômenos como Trump ou o
Brexit dependeram dos sistemas partidários estarem em crise, mas não
destroçados. A bomba atômica da Lava Jato tornou a política partidária
brasileira inutilizável pela indignação popular. E, como seria de se
esperar, a indignação popular, sozinha, não é suficiente para construir
partidos: é bem mais fácil fazer uma passeata ou um linchamento com a
indignação popular do que uma aliança partidária ou uma composição de
interesses semelhantes. Justamente por ter sido mais aguda do que as
outras, a crise democrática brasileira, até agora, terminou com o
sistema recomposto, não com a ascensão de um outsider.
Dentro de poucos meses, teremos uma
eleição presidencial. Só então saberemos como acaba essa história.
Talvez o sistema se apresente recomposto e os partidos tradicionais
consigam disputar a Presidência como vinham fazendo. Talvez novas forças
partidárias – seja a Rede de Marina, seja o PDT repaginado de Ciro
Gomes, seja o PSL de Bolsonaro – consigam quebrar a recomposição da era
Temer.
Neste caso, teríamos um difícil processo
de negociação entre a insurreição eleitoral e a recomposição do
sistema. O próximo mandato exigiria compromissos muito mais inteligentes
do que os que fomos capazes de estabelecer desde o início da crise da
democracia brasileira.
É difícil saber como a crise da
democracia dos anos 2010 será vista no futuro. Talvez a recomposição do
sistema e o fim da Lava Jato pareçam menos piores por comparação, se os outsiders pelo
mundo afora se revelarem muito mais nocivos do que foram até agora.
Talvez o arranjo pós-impeachment tenha sido o pior dos mundos, e ainda
tenhamos que enfrentar um surto populista que se some à sequência das
tragédias “nova matriz econômica” e impeachment. Uma alternativa
perfeitamente possível é que um presidente Bolsonaro recorra ao
autogolpe e nossa geração tenha votado pela última vez.
Talvez haja movimentos positivos
acontecendo que ainda não estejam no radar. E talvez tudo seja lembrado
apenas como uma sequência estúpida de erros grotescos conduzida por
personagens ridículos demais para serem lembrados de uma forma ou de
outra. Se a economia melhorar, é possível que voltemos à vida normal e
todo mundo prefira não falar mais nisso. Há cenários piores.
Mas a crise sempre é uma aula.
Aprendemos que, independente de quem vinha ganhando eleições
presidenciais, a direita é incomparavelmente mais forte que a esquerda, e
as instituições brasileiras eram mais fortes quando o lado mais fraco
estava no poder. E aprendemos que a política de indignação das redes
sociais pode, sim, influenciar a política, mas não conduzi-la; e isso a
torna presa fácil para manobras cínicas da velha política.
A política de indignação não conseguiu
produzir seu próprio Leviatã, e, sem isso, nosso velho Leviatã está cada
vez mais soltinho.
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