– on 18/05/2018Categorias: Brasil, Cinema, Cultura, Destaques
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No documentário de Maria Augusta Ramos, dois destaques: os ambientes fechados do Congresso, expondo a pequenez da política imediata; e a fala autocrítica de Gilberto Carvalho
José Geraldo Couto, no blog do IMS
A primeira imagem de O processo é uma tomada aérea da Esplanada dos Ministérios, em Brasília, com a câmera avançando em direção à Praça dos Três Poderes por sobre a cerca que separa apoiadores e opositores do impeachment de Dilma Rousseff. É de um país cindido ao meio que tratará este filme impressionante, em cartaz no IMS Paulista e no IMS Rio.
No documentário de Maria Augusta Ramos, dois destaques: os ambientes fechados do Congresso, expondo a pequenez da política imediata; e a fala autocrítica de Gilberto Carvalho
José Geraldo Couto, no blog do IMS
A primeira imagem de O processo é uma tomada aérea da Esplanada dos Ministérios, em Brasília, com a câmera avançando em direção à Praça dos Três Poderes por sobre a cerca que separa apoiadores e opositores do impeachment de Dilma Rousseff. É de um país cindido ao meio que tratará este filme impressionante, em cartaz no IMS Paulista e no IMS Rio.
O que mantém vivo e incômodo o
documentário de Maria Augusta Ramos, e que o torna difícil de manusear
como um ferro em brasa, é o fato de que essa cisão continua: pesquisas
recentes dão conta de que metade da população brasileira acredita que
Dilma foi derrubada por um golpe, enquanto a outra metade, ou hoje um
pouco menos, ainda julga que o impeachment foi um processo legítimo.
Como enfrentar, num documentário, um tema
tão explosivo e espinhoso? Como organizar e dar sentido a uma sequência
tão confusa e vertiginosa de eventos? Para se ter uma ideia do tamanho
do desafio, a diretora e sua montadora, Karen Akerman, tinham 450 horas
de material filmado para condensar em pouco mais de duas horas.
Construção dramática
Sem entrar, na medida do possível, no
mérito das questões discutidas na tela, pois isso já está sendo feito
por ensaístas e comentaristas políticos, vamos examinar alguns dos
procedimentos e opções adotados pela cineasta e os resultados assim
atingidos, em termos de construção cinematográfica e eficácia dramática.
Antes de tudo, há um rígido recorte
temporal. O filme começa com a abertura do processo de impeachment na
Câmara e termina com sua conclusão no Senado e o consequente afastamento
da presidente. A esse recorte temporal corresponde também uma
delimitação geográfica: tudo se passa na Praça dos Três Poderes (em
especial no Congresso Nacional) e em suas proximidades, isto é, na
Esplanada dos Ministérios. O que ocorre fora desse território e que tem
efeito sobre o processo é mostrado sob a forma de noticiários em telas
de TV instaladas nos próprios ambientes retratados (corredores do
Congresso, gabinetes de parlamentares).
A sensação de claustrofobia provocada por
essa circunscrição em ambientes fechados é aliviada ocasionalmente pela
inserção de planos externos abertos, em que sempre se pode ver o
horizonte e o céu de Brasília. Estas imagens, em geral planos de ligação
entre os nervosos embates parlamentares, têm também o efeito de
instilar uma certa melancolia, um sentimento de solidão profunda, de
diluição daquela agitação superficial na imensidão inamovível do país,
do continente, do cosmo. O tempo incomensurável do universo contraposto
ao tempo miúdo da política imediata.
Jogo de contrastes
O jogo de contrapontos parece ser a opção
básica da construção dramática do filme, em vários aspectos. Há a
oposição básica entre os pró e os contra o impeachment, claro. Isso se
mostra não apenas na alternância de discursos de um lado e de outro e na
briga de torcidas entre vermelhos e verde-amarelos, mas na maneira como
são filmadas e montadas essas falas e essas palavras de ordem.
Quando a acusadora Janaína Paschoal
discursa, por exemplo, vemos a reação fisionômica da senadora petista
Gleisi Hoffmann; quando fala o advogado de Dilma, José Eduardo Cardozo,
contemplamos a expressão irônica do senador tucano Aloysio Nunes, e
assim por diante. Do lado de fora, os gritos de “Fora Dilma” e “Lula na
prisão” são respondidos por “Fora Temer” e “Não vai ter golpe”, menos de
acordo com uma sequência linear, cronológica, e mais por uma lógica,
digamos, conceitual.
Mas há também contrastes de outra ordem,
mais formais, por assim dizer: sequências de debates acalorados são
seguidas de imagens de corredores vazios do Congresso na madrugada, ou
de um ponto de ônibus num final de tarde. Há toda uma arquitetura sonora
e visual em que se alternam ruído e silêncio, tumulto e calmaria,
ambientes abarrotados e espaços desertos. Cada sequência de
acontecimentos parece atingir um ápice de tensão antes de ser sucedida
por um longo escurecimento da tela que serve não apenas para a inserção
de letreiros com informações factuais e marcos temporais, mas
principalmente para propiciar um tempo de assentamento, uma pausa para
reflexão.
Depois de um tempo, essa alternância
rítmica de agitação frenética e tempos mortos, de vociferação e
silêncio, luz ofuscante e escuridão, termina por compor uma sensação de
cansaço, de desalento, ou mesmo de luto – e nisso talvez esteja a tomada
mais profunda de posição da cineasta. O que começa como um filme de
terror, como um Kafka filmado por Fellini – o circo bizarro da votação
do impeachment na Câmara, com seus discursos em defesa das criancinhas,
da família e dos militares torturadores –, termina como uma elegia, um
réquiem por um país que já se acreditou risonhamente cordial e que já
sonhou com um futuro de justiça e prosperidade.
O tempo dos bastidores
Uma última observação sobre o evidente
desequilíbrio, nas cenas de bastidores, entre o tempo dedicado às
conversas entre partidários de Dilma e o dedicado aos partidários do
impeachment. A produção do filme esclareceu que os políticos e advogados
petistas concederam um acesso a seus gabinetes e reuniões que foi
negado pelos representantes do outro lado. A julgar pelo que se soube
depois, e pelo que a imprensa vem revelando a cada dia, não terá sido
casual o veto às conversas dos articuladores do impeachment: elas devem
ter sido muito pouco republicanas.
Das confabulações nos gabinetes petistas,
para além das táticas momentâneas de enfrentamento jurídico-parlamentar,
o que deve ficar para a posteridade, provavelmente, é a dura
autocrítica do então ministro Gilberto Carvalho, para quem o PT deu
munição a seus inimigos ao entrar no jogo de toma lá dá cá da velha
política e se distanciar dos movimentos sociais que estavam na sua
origem. Mas isso é assunto para analistas políticos, e eles já estão se
refestelando com o material fornecido por O processo.
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