Leitura das letras do compositor mostra aproximação surpreendente
com as ideias do filósofo. “A minha alucinação é suportar o dia a dia e
meu delírio é a experiência com coisas reais”, cantava em “Alucinação” (1976)
Por Elstor Hanzen
A semelhança entre o compositor brasileiro Antônio Carlos Belchior e o
filósofo alemão Friedrich Nietzsche vai muito além do bigode. Sem
ostentar e sequer se manifestar diretamente sobre esta influência,
Belchior bebia nos conceitos nietzschianos, como a moral do rebanho,
vontade de poder, eterno retorno e a crítica ao mundo idealizado pela
própria filosofia, pela religião e pela ciência. A relação fica evidente
quando se faz um passeio pelas letras do cearense.
Nietzsche só viveu 56 anos. Contudo, bastou para ele ser considerado
um dos maiores marcos do pensamento contemporâneo. Embora não muito
valorizado pelo establishment, o autor é uma referência para
organização da história desde o século 19 e se tornou pop entre o
público jovem. Desconstruiu a moral e os valores estabelecidos pela
filosofia grega, chegando ao desmantelamento da cultura dos ídolos e da
religião. Nietzsche, portanto, foi o primeiro a interromper a órbita de
compreensão do mundo criado por Sócrates, Platão e Aristóteles.
Os gregos inauguraram a filosofia ocidental, separando a natureza
humana e toda sua relação instintiva/sensível da parte racional e
objetiva da vida, a fim de criar um mundo ideal – o metafísico –,
resultado de um imaginário: o homem projeta nas coisas aquilo que ele
gostaria de ser. Essa mesma lógica, posteriormente, foi popularizada
pelo cristianismo, já que o povo em geral não tinha acesso nem
compreensão da filosofia.
Por isso, para o alemão, o juízo moral tem em comum com o juízo
religioso o crer em realidades que não existem. Ou seja, no entendimento
dele, assim se criou o mundo ideal para negar o real.
Realista e vitalista tal como na linha das ideias afirmadas pelo
filósofo alemão, Belchior entendia a experiência com o real como a
verdadeira emancipação do ser humano. Como em A Palo Seco: “Se
você vier me perguntar por onde andei no tempo em que você sonhava, de
olhos abertos, lhe direi: amigo, eu me desesperava”.
Essa leitura pode ser percebida explicitamente em vários fragmentos
das letras do compositor e, de modo geral, permeia toda a obra do
músico. “Eu não estou interessado em nenhuma teoria, nem nessas coisas
do oriente, romances astrais. A minha alucinação é suportar o dia a dia e
meu delírio é a experiência com coisas reais”, cantava no disco Alucinação, em 1976.
O cantor via a arte com finalidade útil para o homem se emancipar, um
instrumento para libertar os sentidos e a certeza de viver coisas
novas, não como algo meramente ornamental e ideal. Na mesma perspectiva,
Nietzsche tinha a arte como estimulante da vida, afirmava que ela só
era possível com a embriaguez de todo o ser, com a manifestação da
vontade de potência dos sentidos fisiológicos. O filósofo comparava a
verdadeira arte ao grego Dionísio, deus da festa, do sexo, da alegria,
da liberdade, enfim, dos sentidos do corpo e dos afetos. Ao contrário,
portanto, à lógica da razão e da verdade, representado pelo deus Apolo.
O embate de Belchior também se dava em torno das travas morais da
culpa e das coisas idealizadas por certo pensamento filosófico. Para se
firmar poeta de sua geração, o compositor atravessou territórios entre a
alma e o corpo para forjar sua obra, buscando elementos na crueza da
realidade e na sinceridade das coisas, até mesmo empregar certa
violência na construção de suas letras, em que a dor ensina aproveitar
melhor os momentos alegres. Ou nas palavras dele, “a felicidade é uma
arma quente”.
Ademais, traziam à tona as frustrações ideológicas, filosóficas e
políticas. Para este mundo cruel e caótico, Belchior procurava despertar
uma lucidez e luminosidade com o conteúdo do seu discurso. Ele sabia
que nada era divino e maravilhoso, e a vida real era bem pior que a
letra de uma canção.
Viver é melhor que sonhar
Esta leitura mostra que a arte e a vida não podem ser separadas da
realidade, em nome de um mundo idealizado, seja filosófico ou religioso.
Conforme o pensamento nietzschiano, o homem forte e verdadeiro aceita e
vive a vida como ela se apresenta. Já o sujeito que busca a certeza e o
paraíso é um fraco e decadente, porque não sabe conviver com a
pluralidade do mundo e com a incerteza do devir – as mudanças.
De forma simples e em bom português, o cearense também deixava claro
sua preferência pelo mundo real. “Deixando a profundidade de lado, eu
quero é ficar colado à pele dela noite e dia fazendo tudo de novo. E
dizendo sim à paixão, morando na filosofia”, diz a letra da Divina Comédia Humana.
Por isso, quem vive só na razão e na verdade está separado dos
sentimentos humanos – aquilo que Platão fazia, por exemplo: corpo x
espírito, pensamento x sentimento – com o objetivo de criar o mundo da
luz e da razão. Para Nietzsche e Belchior, pelo contrário, a verdadeira
experiência vem da realidade e do pensamento vivo que só pode ser
coletado na prática humana mais visceral, como aquela que se experimenta
na aspereza das ruas.
Em Apenas Um Rapaz Latino Americano, o cearense afirma essa
visão. “Não me peça que eu lhe faça uma canção como se deve: correta,
branca, suave, muito limpa, muito leve. Sons, palavras, são navalhas e
eu não posso cantar como convém, sem querer ferir ninguém. Mas não se
preocupe, meu amigo, com os horrores que eu lhe digo. Isso é somente uma
canção: a vida realmente é diferente. A vida é muito pior”.
À proporção que se passeia pela obra do músico e se recolhem algumas
amostras, tanto mais se evidencia o pensamento do alemão. Na faixa Como Nossos Pais,
Belchior usa as expressões “viver é melhor que sonhar” e “mas sei
também que qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa”,
construções que valorizam o sujeito em detrimento de uma projeção
metafísica.
Mais adiante na mesma música, deixa transparecer certa frustração com
a eterna repetição das coisas, geração após geração. “Minha dor é
perceber, que apesar de termos feito tudo que fizemos, ainda somos os
mesmos, e vivemos, como nossos pais”. Sugerindo, portanto, que é
preciso alterar a ordem social e instaurar uma nova forma de vida para
as coisas mudarem, assim como Nietzsche fez ao romper com a órbita do
pensamento grego e cristão.
Moral de rebanho
A postura de sempre desobedecer, nunca reverenciar também é comum
entre os dois autores. Essa atitude é assumida pelo homem forte e
predador como uma ave de rapina, que encara a vida com altivez e anda
solitário; não como um carneiro, que anda sempre em bando porque e fraco
e submisso. Num artigo acadêmico publicado em 2017, sob título – Nietzsche e Belchior: muito além do bigode -, já foi discutida essa comparação.
Escreveram as autoras, Regina Rossetti e Paula Cristina: “A
construção do conceito de Ave de Rapina, defendido pelo filósofo alemão,
ganha voz na poesia de Belchior. Segundo Nietzsche, a ética cristã é
uma moral de escravos, de indivíduos fracos e que havia – em função da
construção religiosa – desvirtuado o espírito senhorial e dominante do
homem”.
Para Nietzsche, os valores foram invertidos, pois tudo aquilo que é
débil, humilde, sofrido ou mediano passou a ser encarado como “bom”. Por
outro lado, valores como austeridade, vivacidade e ímpetos foram
taxados como “mal” pelo homem fraco. Graças a essa inversão, a região, a
ciência e o própria conceito de verdade ganharam tantos seguidores e
submissos, porque não conseguem viver a vida como ela é e aceitar a
falta de controle do futuro.
No mesmo sentido, Belchior instiga o homem a se desvincular do animal
de rebanho, seguir a vida num ‘andar com os próprios pés’. “Não quero
regra nem nada. Tudo tá como o diabo gosta, tá. Já tenho esse peso que
me fere as costas, e não vou eu mesmo atar minha mão. O que transforma o
velho no novo, Bendito fruto do povo será. E a única forma que pode ser
norma. É nenhuma regra ter. É nunca fazer nada que o mestre mandar.
Sempre desobedecer, nunca reverenciar”, afirma em Não Leve Flores.
Espíritos livres
No livro Humano, demasiado humano, Nietzsche afirma o
destino do espírito verdadeiramente livre: “Quem alcançou em alguma
medida a liberdade da razão, não pode se sentir mais que um andarilho
sobre a Terra e não um viajante que se dirige a uma meta final: pois
esta não existe. Mas ele observará e terá olhos abertos para tudo quanto
realmente sucede no mundo; por isso não pode atrelar o coração com
muita firmeza a nada em particular; nele deve existir algo de errante,
que tenha alegria na mudança e na passagem”.
Belchior, nos últimos anos de vida, aplicou radicalmente as palavras
do alemão e levou uma vida de andarilho, errante. Enfrentou dias e
noites incertas, encontrou muitas portas fechadas e em alguns lugares
conseguiu repouso. A tudo está sujeito quem vive livremente, mas só
assim é possível “o equilíbrio de sua alma matutina, em quieto passeio
entre as árvores, das copas e das folhagens lhe cairão somente coisas
boas e claras, presentes daqueles espíritos livres que estão em casa na
montanha, na floresta, na solidão, em sua maneira ora feliz ora
meditativa, são andarilhos e filósofos”, escreveu Nietzsche.
Os pensamentos e as evidências em comuns entre as obras dos dois
autores mostram que o cearense de Sobral se guiou e aplicou muitas
ideias do filósofo alemão na música brasileira. O próprio Nietzsche
declarava que a música era a linguagem que mais se aproximava da genuína
comunicação humana. De modo que, além da ligação direta do gosto pela
música, os principais conceitos do alemão aparecem nas letras de
Belchior, semelhança bem mais profunda que os bigodes
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