Gerente-executiva do relatório da Comissão da Verdade diz que ainda há arquivos a serem analisados.
Bolsonaro questiona documento, que "não vale um tostão" na avaliação de presidente do Clube Militar
As feridas abertas durante a ditadura militar brasileira (1964-1985) insistem em não cicatrizar. Revelado na quinta-feira, o documento da CIA que expõe a cúpula do Governo militar discutindo execuções
em 1974 "implode o núcleo da versão oficial", segundo Vivien Ishaq,
gerente-executiva do relatório da Comissão da Verdade. Responsável por
coordenar os esforços das mais de 300 pessoas que participaram ao longo
de 30 meses da pesquisa que revirou o passado recente do país, a
historiadora chama atenção para o nível em que a mensagem da CIA foi
trocada. "Do ponto de vista do poder dos personagens, é top secret.
De diretor da CIA para primeiríssimo escalão. É extremamente
importante", diz Ishaq. O conteúdo da mensagem é posto em dúvida pelos
militares, contudo.
De acordo com a pesquisadora, que também coordenou o recolhimento dos
arquivos da ditadura no Arquivo Nacional em Brasília, a maior parte do
material dessa época disponível no Brasil diz respeito a pessoas
investigadas pelo serviço secreto. "Aqui [no memorando da CIA] se vê de
outro ponto. De primeiro escalão para primeiro escalão. É documento de
Governo, não de serviço secreto", analisa Ishaq, para quem mensagem da
agência norte-americana reforça as conclusões da Comissão da Verdade. O
relatório final, apresentado em dezembro de 2014,
demonstrava a existência de uma política de repressão. "Ao implodir
esse núcleo central, também se joga por terra teses muito caras para as
Forças Armadas e para os defensores da ditadura", diz a pesquisadora,
que cita duas delas: "De que a maioria das mortes teria ocorrido em
confronto ou de que seriam resultado de excessos de determinados agentes
do Estado", o que eximiria de responsabilidade o comando hierárquico.
Como esse documento estava à disposição para consulta desde 2015, é
de se imaginar que ainda há mais para ser descoberto sobre o período.
Pelo menos a partir dos arquivos norte-americanos, porque o Exército
divulgou uma nota desencorajadora na quinta-feira. Reproduzida pela Agência Brasil,
a mensagem do Centro de Comunicação Social do Exército "informa que os
documentos sigilosos, relativos ao período em questão e que
eventualmente pudessem comprovar a veracidade dos fatos narrados foram
destruídos, de acordo com as normas existentes à época – Regulamento da
Salvaguarda de Assuntos Sigilosos (RSAS) – em suas diferentes edições”.
O Ministério da Defesa reforçou a mensagem do Exército em nota
praticamente idêntica. Mais tarde, questionado por jornalistas sobre o
assunto, o ministro Raul Jungmann, da Segurança Pública, disse que o
valor das Forças Armadas "permanece nos mesmos níveis [em] que se
encontra até aqui". "São documentos da CIA, e o Governo brasileiro não
tem conhecimento oficial de nada do que diz respeito a isso. Para se ter
um pronunciamento oficial a respeito desse assunto, nós não podemos
ficar apenas [nisso]", comentou.
O Arquivo Nacional guarda pelo menos dois lotes de documentos
enviados pelos Estados Unidos após a conclusão do relatório da Comissão
da Verdade. São 651 os documentos disponíveis para os pesquisadores
brasileiros. "A produção documental sobre o assunto é gigantesca. Há 20
milhões de páginas no Arquivo Nacional", diz Vivien Ishaq. Segundo ela, o
relatório da Comissão da Verdade
produziu apenas uma "fotografia do período em que funcionou" e ainda
"tem muita investigação a ser feita e muito documento a ser analisado". E
é possível até que existam documentos brasileiros, porque o termo de
destruição dos registros também foi destruído. Ou seja, não existe prova
de que os documentos foram de fato destruídos.
Militares
Além do Exército, do Ministério da Defesa e do ministro da Segurança Pública, também falou pelos militares o deputado federal Jair Bolsonaro (PSL-RJ). Em entrevista à rádio mineira Rádio Super,
o pré-candidato à presidência questionou onde estão os 104 mortos que
teriam sido executados pelo regime em 1973, de acordo com o documento da
agência de inteligência norte-americana. "Quantas vezes você falou ali
num canto que tem que matar mesmo, tem que bater, tem que dar
canelada...Talvez esse cara tenha ouvido uma conversa como essa e fez o
relatório e mandou", questionou o deputado, referindo-se ao então
diretor da CIA, William Egan Colby.
Único dos pré-candidatos à presidência a defender o regime militar, Bolsonaro interpretou a comoção em torno da questão como uma reação a seu prestígio eleitoral. "Voltaram à carga, né? Um capitão está para chegar lá, é o momento. Olha, foi um memorando de um agente, que a imprensa não divulgou. É um historiador que diz que viu, mas não mostrou. Tem que matar a cobra e mostrar o pau. Eu respondo de forma simples: quem nunca deu um tapa no bumbum de um filho e depois se arrependeu?", disse o deputado durante a entrevista.
Único dos pré-candidatos à presidência a defender o regime militar, Bolsonaro interpretou a comoção em torno da questão como uma reação a seu prestígio eleitoral. "Voltaram à carga, né? Um capitão está para chegar lá, é o momento. Olha, foi um memorando de um agente, que a imprensa não divulgou. É um historiador que diz que viu, mas não mostrou. Tem que matar a cobra e mostrar o pau. Eu respondo de forma simples: quem nunca deu um tapa no bumbum de um filho e depois se arrependeu?", disse o deputado durante a entrevista.
O presidente do Clube Militar, Gilberto Pimentel, engrossou o coro. Em entrevista ao Estado de S.Paulo,
ele classificou a comunicação norte-americana de "inteiramente
fantasiosa" e disse que o documento "não vale um tostão furado". Na
entrevista, Pimentel destaca o momento em que a mensagem surgiu. "Temos
agora na liderança das pesquisas para as eleições presidenciais um
candidato que surgiu do nosso meio e um grupo expressivo de militares
que, democraticamente, nesses dias consolidou a intenção de
candidatar-se aos mais variados cargos de governo, desde os municipais,
passando pelos estaduais até os federais”. Levantamento do Estado de S.Paulo aponta a que pelo menos 71 militares pretendem se candidatar na eleição deste ano.
O presidente eleito do Clube Militar, Antonio Hamilton Mourão, que
assume o posto em junho, também comentou o assunto em entrevista. Ao
jornal gaúcho Zero Hora: “A quem interessa manchar a reputação das Forças Armadas,
que segundo pesquisas são as instituições em que a população mais
confia, hoje, no Brasil? Gostaria de saber por que esse documento surgiu
justo agora, num momento turbulento da nação.”
Anistia
Órgãos do Ministério Público Federal divulgaram nota nesta
sexta-feira para questionar a Lei de Anistia. A Procuradoria Federal dos
Direitos do Cidadão e a Câmara Criminal do MPF dizem que o "Brasil é o
único país do continente que, após ditadura ou conflito interno, protege
os autores de graves violações aos direitos humanos com uma Lei de
Anistia". "O documento do governo americano, ao revelar nova evidência
de que a repressão política pela ditadura militar incluiu uma política
de extermínio de opositores do regime, convida para uma resposta breve
do Estado brasileiro em favor da promoção da justiça", defendem os
órgãos, que dirigem sua pressão diretamente ao Supremo Tribunal Federal.
"A Suprema Corte brasileira, ao conformar a aplicação da Lei de Anistia
e da prescrição penal às normas vinculantes do direito internacional e
às decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, ajustará o
Brasil ao parâmetro adotado por todos os Estados da América Latina que
passaram por ditaduras ou conflitos internos durante os anos setenta e
oitenta".
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