Não sei se vocês percebem, mas o golpe aniquilou o bom senso e a
capacidade de codificação básica de enunciados do brasileiro (o pouco
que ele tinha). É devastador.
O primeiro sintoma é no comércio. Comerciantes, cabisbaixos, com
medo, não entendem mais nada. Eles esqueceram de como lidar com
clientes. Estão mais preocupados – com razão – com a própria
sobrevivência. Você pergunta uma coisa, eles respondem outra.
Exemplo? Acabo de ligar para a imobiliária para comunicar um problema
na casa em que moro. Digo que é preciso avisar o proprietário. A
resposta: “desculpe, senhor, mas é preciso antes avisar o proprietário”.
É uma réplica do debate político. Muitas vezes, a pessoa discorda de você e diz exatamente o que você disse. É o efeito-Globo.
Essa mania de a imprensa facilitar demais o texto para o leitor
produziu, ademais, uma classe média leitora com déficits severos de
leitura, que só poderão ser sanados gerações adiante.
Tudo isso é grave e vinha sendo grave já no período democrático. Mas,
agora, o mergulho foi profundo e de cabeça (sendo que a piscina é
rasa).
Eu não facilito para o meu leitor. Acho que seria uma falta de
respeito. Deixo muitos espaços ‘em branco’ mesmo para que ele tenha a
oportunidade de preenchê-los e contribuir para o debate.
Voltando à cena de guerra das ruas e das pessoas desamparadas e
desoladas: trabalhadores do comércio mal conseguem sorrir. Nem fazem
mais questão. Isso é muito sintomático. É o estado de espírito que tomou
conta do país.
Nem precisaria o relato factual de quem anda nas ruas: o índice
sempre favorável nas pesquisas de ‘otimismo’ que o Brasil vinha
liderando caiu por terra. Hoje, o brasileiro é um dos povos mais
infelizes do mundo.
Não é pouco esse estado de espírito devastado. Isso afeta todo o
resto, da economia à expectativa de vida. Pessoas sem esperança morrem.
Por dentro e por fora.
Muito mais que tecnicalidades de ‘reformas’ e ‘retomadas’ que nunca
chegam, a questão no Brasil é recobrar a autoestima. Sem ela, nada vai
acontecer.
Eu me lembro do contraste a tudo isso nos governos Lula. Você ia ao
comércio popular comprar qualquer coisinha e o vendedor travava uma
conversa olho no olho, com respeito e com muita assertividade Queria o
resultado – e era ótimo para ambos os lados.
Havia sorrisos, ideias, conversas e sempre um bom negócio no final.
Sem bom negócio não há muita chance de se ter uma boa relação simbólica.
O tão comentado ‘tecido social’, portanto, se desfez. Rasgou. A
metáfora nem funciona mais (que ‘tecido’, cara-pálida? Isso aqui é um
trapo puído e desfiado).
Transportem esse termômetro agora para todos os outros segmentos:
gestão pública, gestão empresarial (a febre dos coachings caça-níqueis
na falta de se ter empreendedorismo real), gestão educacional, cenário
político. Óbvio que a coisa vai mal.
Aí, entra o ponto central: nós vivemos uma escalada sem precedentes
de ceticismo. Tem cético saindo pelo ladrão. Eles concentram sua
anti-energia nos seguintes enunciados: “ah, o Lula vai ficar preso muito
tempo”; “ah, o golpe venceu”; “ah, a esquerda é burra”.
São esses os enunciadores da desgraça brasileira, muito mais que o
próprio golpe (que mal consegue enunciar qualquer coisa, tão destituído
de competências linguísticas básicas que é).
Muita gente reclama do amor incondicional que Lula provoca nas
pessoas. Morrem de desgosto de ver gente apaixonada por Lula e pelo PT. É
o clássico ‘despeito’. O que eles esquecem é que não há democracia sem
tesão.
A paralisia que grassa no Brasil neste momento é afetiva, é
libidinal. É um medo lascado de amar de novo (como amaram os 13 anos de
democracia insinuante da esquerda).
Só quando esse bloqueio emocional for rompido, o país retomará o
raciocínio. Só assim, eu poderei comprar qualquer coisinha no comércio
popular e voltar com a felicidade de ter conhecido um vendedor – ou
vendedora ou vendedorx – interessante, altivo e de posse de seus
sentidos.
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