- Minha filha,
responde!!! Que que tá acontecendo!?!?”
Os murros secos na porta
travada por uma enxada eram ameaçadores. A menina encolhida no canto comprime a
barriga com força. Tão ofegante que não responde, e mesmo que quisesse não
conseguiria responder, sobretudo às outras perguntas que viriam, e a surra,
talvez, que por força do hábito sua pele já pudesse até aguentar.
- Mariana!! Abre!!!
E a dor compulsiva
reverberava, como um parasita que o
corpo procura expulsar a todo esforço. Não era mais possível conservar aquele
segredo enorme de forma adolescente como quem esconde as provas de uma
travessura. O sol escaldante e a realidade crua roubaram já há muito tempo da
menina a possibilidade de experimentar a vida através de pequenos erros.
Não era o nascimento. Era
uma morte, o aborto de uma infância atropelada pela aridez que sempre esteve
atrás daquela porta. Uma segunda vida rompia as paredes do seu corpo enquanto a
sua própria esvaia-se através de um rosto sem brilho.
Mais alguém havia chegado
do lado de fora e resignada Mariana chorava copiosamente a espera da “vida
nova”. Ela quer muito voltar no tempo e buscar uma explicação pra tudo que
aconteceu, talvez reescrever uma história, mesmo que possibilidades houvesse
muito poucas para mudá-la. Mas a menina subitamente é tomada por um calor que
consome todo o corpo ao ver um mar vermelho aquecer seus pés e umedecer todo
seu vestido. Agora não era só ela quem precisava ser salva.
Como um raio a garota
sobe a cama ainda desfeita abre a pesada janela de madeira, ultrapassa-a, e
desce rolando o barranco atrás da casa de sua tia. Aquela mulher tentava
arrombar aquela porta com a ajuda de um mascate velho que o desespero obrigou a
tragá-lo à pensão. Ainda escutou os gritos da velha quando mancando se lançava
na estradinha tórrida deixando um rastro de sangue delator.
Agora ela corre
tropegamente emitindo um som estranho meio choro, meio gemido, quase desumano,
cuja dor insistia em reger. Cidade pequena, cuidava a menina de não se prender
a ninguém que encontrasse pelo caminho. Ainda mais que a curiosidade sempre
aguçou aquela gente pobre que a viu crescer às voltas da pensão brincando com
suas primas. E por muitas vezes a viu correr como um garoto ora delas, ora da
mãe, viciada que era, quase, nas traquinagens, mas que não suportaria vê-la
mulher tão cedo, e de tal forma.
- Mas é mais uma, com
certeza, das crias de Mariana, correndo assim descabelada e chorando, no mínimo
foi mais uma dela. A velha deve aparecer logo atrás com o chicote na mão. - E assim a garota ia se
distanciando do povoado, com as pernas sujas de sangue e barro.
Dormente pela tensão, flashes
tomavam seus pensamentos justamente na hora em que mais precisava de
clareza e foco. A credulidade daquele povo não era pouca, e para uma menina que
mergulha sozinha em dilemas tão complexos, às vezes, as respostas mais simples
são as mais acalentadoras. Havia sim como resolver parte dos problemas. Talvez
fosse parte de um processo de redenção, um expurgo necessário, pelo qual
mulheres em iguais condições se utilizavam para se justificar. Mas tudo isso
não tinha mais nenhuma importância. “Pede pra Mãe Naná filha, você não dá
conta disso sozinha”. Lembrou que era assim que algumas mulheres movidas
pela desconfiança se dirigiam a ela, sem maiores constrangimentos.
- Vai aonde menina?! - Perguntou mais uma assustada de
dentro de um casebre desbotado. Prontamente ignorada.
A essa hora sua tia,
primas e alguns bêbados cativos daquela pensão, já estariam a sua procura pela
cidade, e em poucos minutos a miudeza daquela gente já estaria toda mobilizada
atrás de Mariana. Não seria difícil a encontrar, assim como para muitos aquela
barriga apertada nas roupas cada vez mais largas, que a isolavam cada vez mais
dentro de casa, e que nos últimos dias não a tiravam do quarto, sempre foram
provas óbvias de que a velha deveria abrir os olhos com aquelas meninas.
“Todo mundo sabia que
um dia ia dar nisso”-.
A estrada de barro
estreitava a medida que a copa das árvores refrescavam o calor. O terreno
acidentado não a impedia de seguir adiante. O choro, o gemido e o semblante
atormentado já não eram constantes. A dor lancinante ainda a roubava alguns
gritos, porém ela sabia exatamente como aquilo iria terminar. Ela sabia aonde
estava indo. Uma certeza visceral que ninguém tinha. Era o final da linha e
dentro de toda sua precoce convicção, fraquejar aquela hora seria negar o
sentimento maternal que germinava junto com aquela criança. A menina morreu na
estrada. Quem embrenhava a mata fechada e temida era a mulher.
O terreno ingrato agora
ascendia num declive, o que forçava a barriga prenha, e desenhava o caminho com
ainda mais sangue. Obstinada, escalava algumas pedras e barrancos com a
agilidade de um gato, enquanto o feto se acostumava as agruras e descaminhos
que sua experiência terrena lhe trariam.
“Tenha uma boa hora
minha filha e pega na mão de mãe Naná... nessas horas ela protege”
Faltava pouco pra chegar
ao lado da pedra do gavião. Ali, mulher não chegava mesmo, e poucos homens
acreditariam que lá ela ousasse estar. No mínimo na casa de algum safado desses
que costumam se acovardar quando uma cidade inteira está querendo a cabeça de
alguém.
Mas não havia homem
nenhum. Pelo menos alguém que ela pudesse dividir a responsabilidade daquilo
tudo. Assim como para qualquer um, um pouco menos ignorante, após ver aquele
rastro de sangue, constataria que não haveria criança alguma no final. Mas
criança ainda havia. Ela sentia, arrebentando-lhe a barriga, o ventre. Ela
intuía. Ela ainda lembra daqueles pesadelos repetidos, incessantes. O zumbido
no ouvido. Pesadelos duros que lhe roubavam a esperança. E talvez seus catorze
anos não fossem claros o suficientes ainda para entender que os namoricos com
aqueles pobres-coitados, por mais que lhe levassem a virgindade, não seriam
suficientes pra povoar tão morbidamente a cabeça de uma menina tão simples.
Como um carma que devesse ainda cumprir, ela corria destemidamente por aquela
mata. Não era o medo de assumir que teve um filho com um daqueles bóias-frias
que a fazia sacrificar sua vida, com certeza isso não era.
Mais lembranças.
Quem era a senhora
despudorada e lasciva que a acordava do sonho dizendo: “Ele é meu!!”. A
angustia que vinha depois dos sonhos era forte demais. E essa
necessidade sufocante de pedir ajuda? O que ela queria?
Mariana parou. Não
conseguia mais. A dor a dobrou de vez e mal abria os olhos. Abraçada aos
joelhos, não consegue enxergar a pele encardida de seus pés. A dor
indescritível iria matá-la, definitivamente, como a missão de um hospedeiro.
Olha para o alto e por entre a copa fechada vê à distância a pedra do gavião.
Não tivesse ela sonhado também tantas vezes com aquela pedra talvez, a essa
hora descansaria envolta de mulheres que a socorreriam daquela dor.
Por que ela estava ali?
Sozinha!
Ela deveria entregar o
que não era dela, e implorar pela sua vida e a do nascituro. “Por favor, mãe
Naná, me ajuda!”. Balbuciou a menor trancando os dentes. Buscou alguma
oração na lembrança, mas a dor a impediu.
- Não me deixa ir! Me
deixa viver pra cuidar do seu filho.
Às três da tarde, a mata
fechada profere um grito mortal. A menina desfalece sobre uma poça de sangue, e
em meio a sublimação da dor, vê passando atrás de uma árvore uma senhora altiva
de cabelos negros soltos, olhar fixo e sombrio. Mariana mal teve tempo de
sentir medo.
João nasceu.
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