O capitalismo financeirizado tenta destruir todas as conquistas democráticas e republicanas, dissolver seu imaginário e erradicar da cena seus protagonistas
Uma paisagem sinistra instaurou-se no planeta com a tomada de poder mundial pelo regime capitalista
em sua nova dobra – financeirizada e neoliberal –, poder que leva seu
projeto colonial às últimas consequências, sua realização globalitária.
Junto com este fenômeno, um outro, simultâneo, também contribui para o
ar tóxico da presente paisagem: a ascensão ao poder de forças conservadoras
por toda parte, cujo teor de violência e barbárie nos lembra os anos
1930 que antecederam a segunda guerra mundial e os anos mais recentes
das ditaduras que persistiram até os anos 1980.
Como se tais forças jamais houvessem desaparecido de fato, mas apenas
tivessem feito um recuo estratégico temporário à espreita de condições
favoráveis para sua volta triunfal.
Neoliberalismo
e neoconservadorismo são sintomas de forças reativas radicalmente
distintos, originados em distintos tempos históricos e que coexistem em
nossa contemporaneidade. À primeira vista, a simultaneidade entre eles
nos parece paradoxal, o que turva nossa compreensão: o alto grau de
complexidade, flexibilidade, sofisticação e refinamento perverso próprio
do modo de existência neoliberal e suas estratégias de poder está a
anos luz do arcaísmo tacanho e da rigidez das forças abrutalhadas deste
neoconservadorismo – que só merece o prefixo “neo” por articular-se com
condições sócio-político-econômicas distintas daquelas em que havia
estado no poder na história recente. Porém, passada a perplexidade
inicial, torna-se evidente que o capitalismo financeirizado precisa
destas subjetividades rudes no poder. São como capangas que se
incumbirão do trabalho sujo: destruir todas as conquistas democráticas e
republicanas, dissolver seu imaginário e erradicar da cena seus
protagonistas – o que inclui as esquerdas em todos seus matizes, mas não
só elas.
A aliança entre neoconservadores e neoliberais é facilitada pela coincidência de seus interesses em relação a este objetivo específico. Tal interesse por parte dos neoconservadores, acrescido do fato de que sua torpe subjetividade seja arraigadamente classista e racista, os leva a cumprir o papel de capangas sem qualquer barreira ética e numa velocidade estonteante. Quando nem bem nos damos conta de uma de suas tacadas, uma outra já está em vias de acontecer, geralmente decidida pelo congresso na calada da noite. O exercício desta tarefa lhes proporciona um gozo narcísico perverso, a tal ponto inescrupuloso, que chega a ser obsceno. Com o trabalho sujo destes capangas do neoliberalismo, prepara-se o terreno para o livre fluxo do capital transnacional. É neste cenário que se dá o novo tipo de golpe, criado pela atual versão do capitalismo: um seriado que se desenrola em três temporadas.
Na primeira temporada, se estabelece uma aliança entre, de um lado, os poderes Legislativo, Judiciário e Policial e, de outro, os grupos que detém o poder da mídia. Sustentados por esta aliança, os capangas do capitalismo financeirizado dão o golpe que expulsa do governo seus líderes mais à esquerda. Mas o golpe não se encerra por aqui: uma vez concluído este primeiro trabalho sujo, tem início sua segunda temporada. Trata-se agora do desmonte da constituição, sobretudo das leis que garantem direitos aos mais desfavorecidos, bem como a privatização dos bens e empresas estatais mais rentáveis. E o Estado vai sendo assim rapidamente reduzido ao mínimo para, ao final do seriado, passar a cumprir a mera função de facilitador de investimentos do capital transnacional.
Enquanto se desenrola esta operação, os próprios capangas do capitalismo globalitário serão os novos alvos das denúncias de corrupção, preparando-se o terreno para sua ejeção tão logo sua tarefa esteja concluída. No final da última temporada do seriado do golpe, o novo regime os jogará no lixo da história, sem o menor constrangimento. Paralelamente, ainda nesta segunda temporada, o mesmo se faz com o empresariado nacional, cuja permanência em cena interessa ao neoliberalismo apenas enquanto precise de sua cumplicidade para as privatizações e para o extermínio de tais leis (principalmente as trabalhistas, o que no Brasil não se limitará à precarização mas chegará ao cúmulo de legalizar o trabalho escravo). E em pleno processo de seu desmonte pelo congresso, o empresariado já começa a tornar-se também ele alvo de denúncias de corrupção, cujo objetivo é tirá-lo do comando das obras públicas, assim que as privatizações estiverem consumadas.
Com esta dupla ejeção e já tendo se instaurado no país uma grave crise institucional e econômica, intensificada pela paralisia das obras públicas após as condenações do empresariado nacional, o terreno estará totalmente pronto para a chegada dos investimentos sem entraves do capital transnacional. Nesta segunda temporada do seriado do golpe, são particularmente importantes as cenas do ringue entre distintas máfias de políticos sórdidos, assim como entre eles e as máfias do empresariado. “Premiados” por suas delações, eles se destroem mutuamente diante da sociedade que, noite após noite, assiste perplexa ao espetáculo grotesco da derrocada de ambos nas telas da TV – espetáculo ao qual se tem acesso igualmente pelas redes sociais que se pode buscar a qualquer hora, assim como pelos jornais, que parte das classes médias e altas leem ao despertar. São imagens e mensagens, escritas ou faladas, de negociações de falcatruas econômicas e políticas, clandestinamente captadas em telefonemas, e-mails e gravações, bem como em documentos entregues pelos delatores ou encontrados pela polícia nas devassas de suas casas e escritórios. É um verdadeiro show de psicopatia, que nos lembra os mais hilários filmes de série B e seus canastrões. A triste diferença é que, neste caso, a narrativa ficcional é baseada em elementos da realidade, cuja edição visa provocar efeitos micropolíticos nas subjetividades: a propagação da insegurança e do medo de colapso.
Isto não é novo: o poder no regime colonial-capitalístico atua na esfera micropolítica desde sua fundação no século XV. Sua matriz nesta esfera é o abuso da vida enquanto força de criação e transmutação – sua essência e também condição para sua persistência, na qual reside seu destino ético. Isto inclui a potência vital em todas suas manifestações e não apenas como força de trabalho, como se pensava no marxismo. O intuito do abuso é desviá-la de seu destino, convertendo a força de “criação” de novos modos de existência, toda vez que a vida assim o exige, em força de “criatividade” investida na composição de novos cenários para o consumo e a acumulação de capital (econômico, político, cultural e narcísico) e que reproduz e reacomoda a cartografia estabelecida. No entanto, na nova dobra do regime, a intervenção nesta esfera refina-se e se intensifica. Isto pode ser constatado não só nas tecnologias de manipulação das subjetividades acima descritas, mas também no último trabalho sujo destes patéticos capangas do neoliberalismo, roteiro do final da segunda temporada do seriado do golpe, no qual o golpe incide mais direta e veementemente na esfera micropolítica.
Trata-se da irrupção do surto conservador mencionado no início. Apelando à moral religiosa, toma-se como como alvo a cultura, em seu sentido amplo que vai das produções artísticas aos modos de existência – o que inclui todos aqueles que não se encaixam nas categorias machistas, homofóbicas, transfóbicas, racistas e xenofóbicas de sua alma capitalista-colonial-escravocrata. Com ampla divulgação pela mídia, certos tipos de práticas passam a ser associadas ao demônio, como o eram nos séculos da Inquisição (e não só) as práticas de mulheres chamadas pejorativamente de bruxas, o que autorizava sua prisão, tortura e morte.
Fiquemos apenas em três exemplos. O primeiro é a arte: certas práticas artísticas passam a ser desqualificadas e criminalizadas. Nesta operação, busca-se destruir a dignidade ética de sua pulsão criadora, para neutralizar sua potência micropolítica: tornar sensíveis as demandas da vida quando esta se vê sufocada nas formas vigentes de existência individual e coletiva. Materializadas em obras, tais demandas teriam o poder de contágio dos públicos que a elas tem acesso, o que tenderia a mobilizar a força coletiva de transfiguração das formas da realidade e de transvaloração de seus valores. Ao atacar a arte, pretende-se desmobilizar a possibilidade de irrupção social de tal força. O segundo exemplo são os movimentos em torno das mutações das subjetividades, especialmente nos âmbitos da sexualidade e das relações de gênero (movimentos feministas, LGBTQ, etc). Mobiliza-se a volta aos valores da heterossexualidade monogâmica da família nuclear patriarcal como forma absoluta de erotismo e de laço social, visando interromper o processo pulsional de criação de novas formas, desencadeado pela urgência da vida em livrar-se do sufoco em que se encontra nas formas dominantes nestes terrenos.
O terceiro exemplo são as tradições culturais africanas e indígenas, fortemente presentes em todas as ex-colônias: estas são sistematicamente perseguidas e humilhadas. No Brasil, opera-se uma destruição em série de terreiros de Candomblé e a expulsão dos indígenas de suas terras, ao que se soma a abolição das leis que as haviam demarcado, fruto de uma árdua luta das décadas anteriores – isto, quando os indígenas não são literalmente exterminados num despudorado genocídio. Se no último exemplo o objetivo destas operações do poder é mais obviamente macropolítico (o roubo dos terrenos do Candomblé e das terras indígenas), basta colocá-lo lado a lado com os dois exemplos anteriores, para nos darmos conta de que há também nesta operação um objetivo mais sutil, micropolítico. Nesta esfera, a meta é a neutralização da alteridade e a desmobilização da potência de transfiguração da realidade coletiva de que a oportunidade de habitar a trama relacional tecida entre esses distintos modos de existência seria portadora.
À operação macropolítica de desmonte do Estado e da economia, soma-se a operação micropolítica de produção de subjetividades. A fragilização resultante do medo inculcado pelo tom apocalíptico da mídia em sua narrativa sobre a crise intensifica-se com o humilhante ataque à dignidade dos modos de existência acima mencionados. Isto faz com as subjetividades tendam a agarrar-se a qualquer promessa de estabilidade e segurança, do que faz parte a projeção da causa de sua fragilidade nas figuras de bode expiatório construídas em tais narrativas. Nestas estratégias defensivas, sua pulsão vital entrega-se ao abuso colonial-capitalístico por seu próprio desejo. Com esta dupla operação indissociável, macro e micropolítica, prepara-se a sociedade para a terceira e última temporada: a tomada do poder político e econômico pelo capitalismo globalitário. Ela estará enfim pronta para recebê-lo como o salvador “civilizado” que saneará a economia de sua falência e restabelecerá a dignidade da vida pública, devolvendo ao país seu prestígio perdido e a serenidade a seus cidadãos. Fim do seriado. Golpe concluído.
O novo tipo de golpe de Estado oculta-se, assim, sob a máscara de legalidade democrática, sem fazer uso da força militar, nem expor seus verdadeiros agentes. A composição da máscara é sutil e astuta. A segunda temporada do seriado do golpe começa a ser veiculada pela mídia imediatamente após o final da primeira. Os scripts são idênticos, só mudam os personagens que desempenham o papel de réus acusados de corrupção: os líderes progressistas da primeira temporada são agora substituídos pelos elementos mais inescrupulosos da classe política e seus cúmplices da classe empresarial. havido um golpe de estado, já que não só os políticos de esquerda foram punidos. Se na primeira temporada, parcelas significativas da população ainda viam claramente que se tratava de um golpe, cujo objetivo era aniquilar a imagem dos políticos progressistas e tirá-los do poder, com a a substituição dos personagens na segunda temporada, vence na maioria a ideia de que a expulsão dos governantes progressistas havia sido, de fato, uma ação imparcial e digna, visando a necessária moralização da vida pública. Tal ideia é inclusive assumida por aqueles que tem menos acesso aos direitos – parcela majoritária da população – e que haviam sido favorecidos pelos governos progressistas.
Em suma, o novo tipo de golpe, próprio do capitalismo globalitário, consiste num complexo conjunto de operações micro e macropolíticas, no qual mata-se vários coelhos numa cajadada só (todos os coelhos cuja existência estorva o livre fluxo de capital transnacional): os líderes de esquerda e o imaginário progressista a eles associado (o que facilita o desmantelamento da Constituição, as privatizações e a entrega do país ao capital privado transnacional), os políticos de alma escravocrata e pré-republicana, os líderes do empresariado nacional e, por fim e não menos importante, a própria potência coletiva de ação pensante criadora que se mobilizaria diante do intolerável. E o capitalismo transnacional globalitário sai vitorioso e de mãos aparentemente limpas. Esta será, provavelmente, a apoteótica cena final do seriado do golpe.
O que não estava previsto no script deste seriado é que passados os primeiros capítulos da segunda temporada , na qual se conseguiu instaurar a ilusão de que não se tratou de golpe, seus capítulos seguintes – onde se vê a destruição das conquistas democráticas e a penalização da criação cultural – não terão o mesmo êxito. Por colocarem a vida manifestamente em risco, diante de tais operações o véu da ilusão tende a cair: instaura-se nas subjetividades um estado de urgência que faz com que o desejo consiga deslocar-se de sua entrega ao abuso e passe a agir de modo a transfigurar o presente, impedindo que prossiga a carnificina. Uma resistência micropolítica começa então a surgir por toda parte, de modo a enfrentar a nova modalidade de golpe, na qual ficou mais explícito o fato de que sua estratégia não é apenas macropolítica.
Insurgir-se também nesta esfera é o avanço que nos trazem os movimentos que vem desestabilizando aqui e acolá o poder mundial do capitalismo financeirizado – movimentos que se intensificaram após o tsunami dos golpes de estado provocado pelo novo regime por toda parte. Este avanço nos ajuda a ver que o horizonte do modo tradicional de resistência das esquerdas reduz-se à esfera macropolítica e que esta redução seria uma das causas de sua impotência frente ao atual estado de coisas. Tal entendimento tem o poder de nos tirar da paralisia melancólica fatalista na qual nos faria soçobrar a sombria paisagem que nos rodeia e tende, inclusive, a fortalecer a resistência na esfera macropolítica.
As próximas temporadas do seriado do capitalismo globalitário – que começa bem antes dos recentes golpes e certamente seguirá após os mesmos –, serão delineadas coletivamente nos embates entre as forças reativas que promovem o abuso da vida em sua potência pulsional de criação e as forças ativas que promovem sua afirmação transfiguradora. Impossível prever o desfecho (sempre provisório) deste embate. Mas há um alento no ar que cria condições favoráveis para liberarmos a pulsão das sequelas de seu abuso abuso colonial-capitalista, de modo a imaginarmos novos cenários e agirmos em sua direção. O alento nos vem da crença de que é possível despoluir o ar ambiente de sua poeira tóxica e que isto depende de agregarmos às estratégias de resistência este trabalho coletivo de descolonização na esfera micropolítica.
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A aliança entre neoconservadores e neoliberais é facilitada pela coincidência de seus interesses em relação a este objetivo específico. Tal interesse por parte dos neoconservadores, acrescido do fato de que sua torpe subjetividade seja arraigadamente classista e racista, os leva a cumprir o papel de capangas sem qualquer barreira ética e numa velocidade estonteante. Quando nem bem nos damos conta de uma de suas tacadas, uma outra já está em vias de acontecer, geralmente decidida pelo congresso na calada da noite. O exercício desta tarefa lhes proporciona um gozo narcísico perverso, a tal ponto inescrupuloso, que chega a ser obsceno. Com o trabalho sujo destes capangas do neoliberalismo, prepara-se o terreno para o livre fluxo do capital transnacional. É neste cenário que se dá o novo tipo de golpe, criado pela atual versão do capitalismo: um seriado que se desenrola em três temporadas.
Na primeira temporada, se estabelece uma aliança entre, de um lado, os poderes Legislativo, Judiciário e Policial e, de outro, os grupos que detém o poder da mídia. Sustentados por esta aliança, os capangas do capitalismo financeirizado dão o golpe que expulsa do governo seus líderes mais à esquerda. Mas o golpe não se encerra por aqui: uma vez concluído este primeiro trabalho sujo, tem início sua segunda temporada. Trata-se agora do desmonte da constituição, sobretudo das leis que garantem direitos aos mais desfavorecidos, bem como a privatização dos bens e empresas estatais mais rentáveis. E o Estado vai sendo assim rapidamente reduzido ao mínimo para, ao final do seriado, passar a cumprir a mera função de facilitador de investimentos do capital transnacional.
Enquanto se desenrola esta operação, os próprios capangas do capitalismo globalitário serão os novos alvos das denúncias de corrupção, preparando-se o terreno para sua ejeção tão logo sua tarefa esteja concluída. No final da última temporada do seriado do golpe, o novo regime os jogará no lixo da história, sem o menor constrangimento. Paralelamente, ainda nesta segunda temporada, o mesmo se faz com o empresariado nacional, cuja permanência em cena interessa ao neoliberalismo apenas enquanto precise de sua cumplicidade para as privatizações e para o extermínio de tais leis (principalmente as trabalhistas, o que no Brasil não se limitará à precarização mas chegará ao cúmulo de legalizar o trabalho escravo). E em pleno processo de seu desmonte pelo congresso, o empresariado já começa a tornar-se também ele alvo de denúncias de corrupção, cujo objetivo é tirá-lo do comando das obras públicas, assim que as privatizações estiverem consumadas.
Com esta dupla ejeção e já tendo se instaurado no país uma grave crise institucional e econômica, intensificada pela paralisia das obras públicas após as condenações do empresariado nacional, o terreno estará totalmente pronto para a chegada dos investimentos sem entraves do capital transnacional. Nesta segunda temporada do seriado do golpe, são particularmente importantes as cenas do ringue entre distintas máfias de políticos sórdidos, assim como entre eles e as máfias do empresariado. “Premiados” por suas delações, eles se destroem mutuamente diante da sociedade que, noite após noite, assiste perplexa ao espetáculo grotesco da derrocada de ambos nas telas da TV – espetáculo ao qual se tem acesso igualmente pelas redes sociais que se pode buscar a qualquer hora, assim como pelos jornais, que parte das classes médias e altas leem ao despertar. São imagens e mensagens, escritas ou faladas, de negociações de falcatruas econômicas e políticas, clandestinamente captadas em telefonemas, e-mails e gravações, bem como em documentos entregues pelos delatores ou encontrados pela polícia nas devassas de suas casas e escritórios. É um verdadeiro show de psicopatia, que nos lembra os mais hilários filmes de série B e seus canastrões. A triste diferença é que, neste caso, a narrativa ficcional é baseada em elementos da realidade, cuja edição visa provocar efeitos micropolíticos nas subjetividades: a propagação da insegurança e do medo de colapso.
Isto não é novo: o poder no regime colonial-capitalístico atua na esfera micropolítica desde sua fundação no século XV. Sua matriz nesta esfera é o abuso da vida enquanto força de criação e transmutação – sua essência e também condição para sua persistência, na qual reside seu destino ético. Isto inclui a potência vital em todas suas manifestações e não apenas como força de trabalho, como se pensava no marxismo. O intuito do abuso é desviá-la de seu destino, convertendo a força de “criação” de novos modos de existência, toda vez que a vida assim o exige, em força de “criatividade” investida na composição de novos cenários para o consumo e a acumulação de capital (econômico, político, cultural e narcísico) e que reproduz e reacomoda a cartografia estabelecida. No entanto, na nova dobra do regime, a intervenção nesta esfera refina-se e se intensifica. Isto pode ser constatado não só nas tecnologias de manipulação das subjetividades acima descritas, mas também no último trabalho sujo destes patéticos capangas do neoliberalismo, roteiro do final da segunda temporada do seriado do golpe, no qual o golpe incide mais direta e veementemente na esfera micropolítica.
Trata-se da irrupção do surto conservador mencionado no início. Apelando à moral religiosa, toma-se como como alvo a cultura, em seu sentido amplo que vai das produções artísticas aos modos de existência – o que inclui todos aqueles que não se encaixam nas categorias machistas, homofóbicas, transfóbicas, racistas e xenofóbicas de sua alma capitalista-colonial-escravocrata. Com ampla divulgação pela mídia, certos tipos de práticas passam a ser associadas ao demônio, como o eram nos séculos da Inquisição (e não só) as práticas de mulheres chamadas pejorativamente de bruxas, o que autorizava sua prisão, tortura e morte.
Fiquemos apenas em três exemplos. O primeiro é a arte: certas práticas artísticas passam a ser desqualificadas e criminalizadas. Nesta operação, busca-se destruir a dignidade ética de sua pulsão criadora, para neutralizar sua potência micropolítica: tornar sensíveis as demandas da vida quando esta se vê sufocada nas formas vigentes de existência individual e coletiva. Materializadas em obras, tais demandas teriam o poder de contágio dos públicos que a elas tem acesso, o que tenderia a mobilizar a força coletiva de transfiguração das formas da realidade e de transvaloração de seus valores. Ao atacar a arte, pretende-se desmobilizar a possibilidade de irrupção social de tal força. O segundo exemplo são os movimentos em torno das mutações das subjetividades, especialmente nos âmbitos da sexualidade e das relações de gênero (movimentos feministas, LGBTQ, etc). Mobiliza-se a volta aos valores da heterossexualidade monogâmica da família nuclear patriarcal como forma absoluta de erotismo e de laço social, visando interromper o processo pulsional de criação de novas formas, desencadeado pela urgência da vida em livrar-se do sufoco em que se encontra nas formas dominantes nestes terrenos.
O terceiro exemplo são as tradições culturais africanas e indígenas, fortemente presentes em todas as ex-colônias: estas são sistematicamente perseguidas e humilhadas. No Brasil, opera-se uma destruição em série de terreiros de Candomblé e a expulsão dos indígenas de suas terras, ao que se soma a abolição das leis que as haviam demarcado, fruto de uma árdua luta das décadas anteriores – isto, quando os indígenas não são literalmente exterminados num despudorado genocídio. Se no último exemplo o objetivo destas operações do poder é mais obviamente macropolítico (o roubo dos terrenos do Candomblé e das terras indígenas), basta colocá-lo lado a lado com os dois exemplos anteriores, para nos darmos conta de que há também nesta operação um objetivo mais sutil, micropolítico. Nesta esfera, a meta é a neutralização da alteridade e a desmobilização da potência de transfiguração da realidade coletiva de que a oportunidade de habitar a trama relacional tecida entre esses distintos modos de existência seria portadora.
À operação macropolítica de desmonte do Estado e da economia, soma-se a operação micropolítica de produção de subjetividades. A fragilização resultante do medo inculcado pelo tom apocalíptico da mídia em sua narrativa sobre a crise intensifica-se com o humilhante ataque à dignidade dos modos de existência acima mencionados. Isto faz com as subjetividades tendam a agarrar-se a qualquer promessa de estabilidade e segurança, do que faz parte a projeção da causa de sua fragilidade nas figuras de bode expiatório construídas em tais narrativas. Nestas estratégias defensivas, sua pulsão vital entrega-se ao abuso colonial-capitalístico por seu próprio desejo. Com esta dupla operação indissociável, macro e micropolítica, prepara-se a sociedade para a terceira e última temporada: a tomada do poder político e econômico pelo capitalismo globalitário. Ela estará enfim pronta para recebê-lo como o salvador “civilizado” que saneará a economia de sua falência e restabelecerá a dignidade da vida pública, devolvendo ao país seu prestígio perdido e a serenidade a seus cidadãos. Fim do seriado. Golpe concluído.
O novo tipo de golpe de Estado oculta-se, assim, sob a máscara de legalidade democrática, sem fazer uso da força militar, nem expor seus verdadeiros agentes. A composição da máscara é sutil e astuta. A segunda temporada do seriado do golpe começa a ser veiculada pela mídia imediatamente após o final da primeira. Os scripts são idênticos, só mudam os personagens que desempenham o papel de réus acusados de corrupção: os líderes progressistas da primeira temporada são agora substituídos pelos elementos mais inescrupulosos da classe política e seus cúmplices da classe empresarial. havido um golpe de estado, já que não só os políticos de esquerda foram punidos. Se na primeira temporada, parcelas significativas da população ainda viam claramente que se tratava de um golpe, cujo objetivo era aniquilar a imagem dos políticos progressistas e tirá-los do poder, com a a substituição dos personagens na segunda temporada, vence na maioria a ideia de que a expulsão dos governantes progressistas havia sido, de fato, uma ação imparcial e digna, visando a necessária moralização da vida pública. Tal ideia é inclusive assumida por aqueles que tem menos acesso aos direitos – parcela majoritária da população – e que haviam sido favorecidos pelos governos progressistas.
Em suma, o novo tipo de golpe, próprio do capitalismo globalitário, consiste num complexo conjunto de operações micro e macropolíticas, no qual mata-se vários coelhos numa cajadada só (todos os coelhos cuja existência estorva o livre fluxo de capital transnacional): os líderes de esquerda e o imaginário progressista a eles associado (o que facilita o desmantelamento da Constituição, as privatizações e a entrega do país ao capital privado transnacional), os políticos de alma escravocrata e pré-republicana, os líderes do empresariado nacional e, por fim e não menos importante, a própria potência coletiva de ação pensante criadora que se mobilizaria diante do intolerável. E o capitalismo transnacional globalitário sai vitorioso e de mãos aparentemente limpas. Esta será, provavelmente, a apoteótica cena final do seriado do golpe.
O que não estava previsto no script deste seriado é que passados os primeiros capítulos da segunda temporada , na qual se conseguiu instaurar a ilusão de que não se tratou de golpe, seus capítulos seguintes – onde se vê a destruição das conquistas democráticas e a penalização da criação cultural – não terão o mesmo êxito. Por colocarem a vida manifestamente em risco, diante de tais operações o véu da ilusão tende a cair: instaura-se nas subjetividades um estado de urgência que faz com que o desejo consiga deslocar-se de sua entrega ao abuso e passe a agir de modo a transfigurar o presente, impedindo que prossiga a carnificina. Uma resistência micropolítica começa então a surgir por toda parte, de modo a enfrentar a nova modalidade de golpe, na qual ficou mais explícito o fato de que sua estratégia não é apenas macropolítica.
Insurgir-se também nesta esfera é o avanço que nos trazem os movimentos que vem desestabilizando aqui e acolá o poder mundial do capitalismo financeirizado – movimentos que se intensificaram após o tsunami dos golpes de estado provocado pelo novo regime por toda parte. Este avanço nos ajuda a ver que o horizonte do modo tradicional de resistência das esquerdas reduz-se à esfera macropolítica e que esta redução seria uma das causas de sua impotência frente ao atual estado de coisas. Tal entendimento tem o poder de nos tirar da paralisia melancólica fatalista na qual nos faria soçobrar a sombria paisagem que nos rodeia e tende, inclusive, a fortalecer a resistência na esfera macropolítica.
As próximas temporadas do seriado do capitalismo globalitário – que começa bem antes dos recentes golpes e certamente seguirá após os mesmos –, serão delineadas coletivamente nos embates entre as forças reativas que promovem o abuso da vida em sua potência pulsional de criação e as forças ativas que promovem sua afirmação transfiguradora. Impossível prever o desfecho (sempre provisório) deste embate. Mas há um alento no ar que cria condições favoráveis para liberarmos a pulsão das sequelas de seu abuso abuso colonial-capitalista, de modo a imaginarmos novos cenários e agirmos em sua direção. O alento nos vem da crença de que é possível despoluir o ar ambiente de sua poeira tóxica e que isto depende de agregarmos às estratégias de resistência este trabalho coletivo de descolonização na esfera micropolítica.
O artigo da filósofa brasileira Suely Rolnik faz
parte da série Diálogos Brasil-Europa, uma iniciativa da EUNIC -European
Union National Institutes for Culture in São Paulo- para que
intelectuais dos dois continentes debatam sobre o tema "Populismo e
Cultura"
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