Historiador escocês, professor de Harvard e nome que esteve na lista
das 100 pessoas mais influentes do mundo pela revista “Time”, Niall Ferguson
afirmou: parcelas menos educadas da população tendem a aderir a discursos
extremistas de direita como solução para crise. Em passagem em evento promovido
pelo banco Itaú em São Paulo, Ferguson referiu-se como a baixa qualidade
educacional cria a percepção de que “o mundo não funciona” e a fácil aceitação
de que pessoas sozinhas com soluções extremistas resolveriam problemas como
criminalidade e imigração. Apesar de ser um intelectual muito solicitado como
palestrante em eventos corporativos, a fala de Ferguson revelou como a baixa
qualidade educacional cria o ressentimento: a matéria-prima psíquica da qual se
aproveitou a guerra híbrida brasileira. Mas agora, discursos extremistas de
direita brasileiros estão prontos para oferecer novos bodes expiatórios para
direcionar o ressentimento de jovens universitários que sentem que o “mundo não
funciona”: a distância entre o diploma conquistado com esforço e a realidade
profissional precarizada. Pauta sugerida pelo nosso leitor Paulo Manetta.
Niall
Ferguson não é apenas um historiador escocês, professor na Universidade de Harvard
e palestrante bastante requisitado na Europa e Estados Unidos. E que passou
esse mês aqui pelo Brasil no evento Macro Vision, promovido pelo banco Itaú em
São Paulo. Ele também é um “think tank” (instituição ou personalidade
especializada em influenciar a opinião pública e decisões políticas), que já
esteve na lista das 100 pessoas mais influentes da revista americana Time.
Ferguson
costuma vender o diagnóstico de que o mundo ocidental está em decadência: a
democracia, o capitalismo, o respeito às leis e a sociedade civil estão em
crise e que as políticas dos governos dos EUA e Europa só pioram a situação.
Como
não poderia deixar de ser, por onde passa diz que a solução é aquilo que as
atentas audiências formadas por CEOs e banqueiros já pensam: limitar o governo
e desregulamentar o mercado. Em outras palavras, Niall Ferguson é aquele que
atira primeiro a pedra na vidraça para depois tocar a campainha da casa para
vender seguro – a estratégia da “vidraça quebrada”.
Mas às vezes devemos ficar atentos às falas desses intelectuais insiders que acenam soluções neoliberais
para a banca. Muitas vezes apresentam dados cuja interpretação é “invertida”: apontam
para tendências e fenômenos sociais muitas vezes verdadeiras, porém não como
denúncia de uma realidade que precisa ser mudada. Mas como prospecção de
matéria-prima para futuras ações de guerra híbrida.
Baixa educação e populismo de direita
Em declaração ao jornal Valor
Econômico, Ferguson apontou que as experiências recentes do Brexit e das
eleições americanas de 2016 sugerem que a parcela menos educada da população
tende ao populismo de direita como solução para as crises – clique aqui.
“O que vimos é que pessoas de mais baixa educação têm maior
probabilidade de votar no populismo de direita. Isso se mostrou verdadeiro em eleições
europeias recentes”. Para Ferguson, “pessoas com maior educação tendem ao
centro, seja de esquerda ou direita, porque o mundo funciona para essa parcela
da população, que por isso é favorável à manutenção do status quo”.
E completou: “As pessoas que não se beneficiam do status quo são
atraídas por quem diz que pode mudar o sistema, que pode sozinha resolver o
problema, seja de imigração ou criminalidade”.
Segundo Ferguson, sempre após as crises o populismo de direita tende a
ter bom desempenho. E alerta os brasileiros: “imagino que o pesadelo de vocês
seja, com a ausência de Lula, uma disputa entre Bolsonaro e o substituto de
Lula”.
“O mundo não funciona”
Fica claro que o conceito de “baixa educação” não se refere a uma
insuficiência de nível escolaridade formal, mas à precarização da qualidade. Por
exemplo, conseguir um diploma de ensino superior em faculdades privadas de
baixo nível ou em cursos EAD acessíveis ao nível de renda. Como o pesquisador
escocês aborda no livro “The Great Degeneration: How Institutions Decay and
Economies Die” – veja “US education and economy are on the skids, says britsh
historian” In: Mercatornet, clique aqui.
Isso talvez explique o porquê de Bolsonaro ter melhor resultado entre os
mais escolarizados (aqueles que completaram o ensino superior) segundo pesquisa
Datafolha (clique aqui e aqui). Além da pesquisa apontar que 60% dos eleitores do parlamentar de
direita serem jovens – entre 16 e 34 anos.
Nem tampouco essa “baixa educação” tem a ver exclusivamente com a
desinformação que levariam jovens a serem seduzidos pelo canto da sereia dos
discursos extremistas – repostas simples baseadas em soluções finais do tipo
“subir a Rocinha dando tiros” como defendeu certa vez Jair Bolsonaro.
A chave de compreensão do diagnóstico de Niall Ferguson está na
percepção dessas pessoas de que, para elas, “o mundo não funciona”, apesar da
escolaridade superior conquistada a muito custo e motivada pela crença da
justiça do sistema meritocrático.
A percepção de que “o mundo não funciona” deixa de ser uma questão
eminentemente sociológica para entrarmos no campo explosivo psicossocial –
campo embrionário do fascismo que sempre esteve vinculado com o ressentimento
do indivíduo contra uma sociedade injusta que parece sempre burlar as regras do
jogo.
Os anos de governos lulopetistas das políticas de inclusão de estudantes
no ensino superior (crescimento de 65%, e destes 75% em instituições privadas, setor
que se tornou um parceiro do governo federal) criaram expectativas para a
chamada “Classe C” de que estava entrando no jogo da meritocracia em condições
de igualdade. Como reza a boa ideologia do mérito e do empreendedorismo.
Mas essa inclusão quantitativa não foi acompanhada pela qualificação das
escolas de ensino superior. O que significa que a conquista do diploma
universitário não significou necessariamente a conquista de empregos
qualificados ou uma carreira bem remunerada com perspectivas de crescimento
profissional.
Ressentimento e precarização
Pesquisadores como Giovanni Alves observaram que o modelo
neodesenvolvimentista conduzido pelos governos do PT basearam a inclusão social
através do mercado de consumo e da precarização do trabalho. Uma nova geração
de trabalhadores cujas noções de cidadania e trabalho passaram muito mais pelas
ambições por consumo do que pelos valores de classe social, direitos de
trabalho e sindicalização – leia ALVEZ, Giovanni, “Neodesenvolvimentismo e
precarização do trabalho no Brasil” – clique aqui.
E os diplomas conquistados em faculdades com educação também precarizada
fechou essa conta que mais ampliou expectativas do que as satisfez. Jovens
diplomados foram jogados em um mercado de trabalho que confundiu ícones de
softwares, sistemas operacionais e aplicativos como um verdadeiro saber
profissional. Quando na verdade não passavam de trabalho simplificado,
rotinizado e fragmentado, pronto para ser controlado e monitorado por gestores.
E nesse gap entre o diploma e
a realidade precarizada (carreira frustrante de baixa remuneração) está o mal
estar psíquico do ressentimento – a humilhação e revolta de que “o mundo não
funciona”, a percepção genérica de que “tudo que está aí” está errado.
Pronto! Temos a atmosfera psíquica perfeita que busca bodes expiatórios.
Apenas aguardando uma tradução em uma bomba semiótica, em um slogan, em uma
guerra híbrida.
Em postagens anteriores este Cinegnose
vem apontando que a combinação explosiva de meritocracia com ressentimento
motiva a atual guerra simbólica empreendida pelo complexo
jurídico-policial-midiático cujo ápice foi a prisão de Lula e a sua tradução
cinematográfica: o rebento de José Padilha, a série Netflix O Mecanismo – veja links abaixo.
Para o ressentido, o bode expiatório da corrupção é mais atraente do que
as críticas dos juros altos, das políticas
econômicas antinacionalistas, do neoliberalismo ou do sucateamento proposital
do patrimônio público para as privatizações serem aceitas como fato consumado –
de novo, a “estratégia da vidraça quebrada”.
A vantagem é que a corrupção pode ser midiaticamente personalizada em
políticos com rostos, partidos etc. – serem demonizados, caçados, presos em
espetáculos de meganhagem policial ao vivo na TV, com armas e carros negros
reluzentes. Alívio psíquico regressivo (sádico-masoquista) para o
ressentimento.
Crítica ao juros alto ou perda da soberania nacional são abstratas
demais para um ressentido.
Com a prisão de Lula (vendida a um preço simbólico muito baixo, sob a
égide da “rendição”) como o epílogo ideológico da Lava Jato, restam os
discursos extremistas de direita, como o de Jair Bolsonaro, herdarem o
ressentimento de uma massa de jovens universitários. Frustrados porque o “mundo
não funciona”.
De tudo isso, ficam duas questões que sempre atormentaram pesquisadores
como esse humilde blogueiro: por que historicamente a frustração social sempre
foi melhor traduzida politicamente como ressentimento pelos discursos
extremistas de direita? Por que até aqui o ressentimento nunca foi revertido em
frustração que motivasse uma crítica ao verdadeiro mecanismo, o sistema reprodutor
da desigualdade?
O fato é que diagnósticos como os de Niall Ferguson não são usados para
a transformação social. Mas para a prospecção de novas oportunidades no atual
quadro de guerra híbrida em escala planetária.
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