"Em todo o mundo, a crise ressuscitou os piores reflexos do passado, em particular o racismo, o antissemitismo e o desprezo pelos pobres. E no Brasil, ressurgiram as atitudes herdadas de uma sociedade escravocrata. Não é o custo – bastante moderado – do Bolsa Família que escandaliza, mas a ideia de que os pobres possam ter direitos."
Entrevista especial com Anselm Jappe.
A atual
crise política no Brasil é um sintoma da impossibilidade de lutar contra
o capitalismo com seus próprios meios. A avaliação é do filósofo e
crítico social Anselm Jappe, um dos principais representantes atuais da
crítica marxista do valor. Professor do Colégio
Internacional de Filosofia, em Paris, desde o final da década de 90
Jappe tem passado pelo Brasil e acompanhado de perto a conjuntura
política, econômica e social no país frente às dinâmicas do capitalismo
global de hoje. Para ele, o atual quadro “tem
efetivamente ares de um golpe que traz à tona tempos sombrios” mas ao
mesmo tempo reúne os melhores motivos para se retomar uma verdadeira “antipolítica”
– termo que longe de significar a renúncia da ação pública e coletiva,
descreve um ato de superação do que atualmente chamamos de “política”
ancorado em uma recusa da lógica econômica que a enseja.
Esta
conversa, conduzida por Gabriel Zacarias (pós-doutorando
USP/EHESS-Paris) e traduzida por Luc Duffles Aldon (MD18), dá sequência à
série de entrevistas do Movimento Democrático 18 de Março (MD18) com grandes intelectuais de esquerda publicadas no Blog da Boitempo. Leia a primeira entrevista da série, com o sociólogo franco-brasileiro Michael Löwy, clicando aqui, a segunda, com o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, clicando aqui, a terceira com o historiador Luiz Marques clicando aqui, e a quarta, com o cineasta Eryk Rocha, clicando aqui.
* * *
Você
visitou o Brasil pela primeira vez no final da década de 1990 e voltou
várias vezes, sendo a última logo após as manifestações de junho de
2013. Quais são as mudanças que você observou durante esse período?
Visitei o
Brasil pela primeira vez em 1999 e depois voltei quase todos os anos
para participar de conferências no meio acadêmico, e também tive a
oportunidade de observar outros meios da sociedade. Nos primeiros anos,
notei a forte “xenofilia” dos intelectuais brasileiros: boa parte dos
professores brasileiros havia estudado no exterior, e o fato de ter
feito um doutorado em Paris ou em Londres era uma garantia quase certa
de obter, em seguida, um cargo de professor no Brasil – especialmente
após o fim da ditadura. Da mesma forma, intelectuais europeus, ainda que
não fossem muito conhecidos em seus próprios países, eram recebidos no
Brasil com grande respeito e, por vezes, tornavam-se estrelas. Os
visitantes estrangeiros eram facilmente convidados para ficar e ensinar
em condições muito favoráveis. Assim, predominava a impressão, até no
plano intelectual, de se estar em um país “semiperiférico”.
Alguns anos
depois, isso mudou. As importações foram substituídas por produtos
locais. As principais universidades brasileiras passaram a produzir um
grande número de doutores, de boa qualidade, que em seguida ocupavam as
cadeiras das universidades em rápida expansão no país. Sentia-se que
universidades como as de São Paulo ou de Porto Alegre se propunham a
competir com Harvard ou com a Sorbonne, queriam jogar com os grandes. A
cada ano, chegavam mais estudantes brasileiros na Europa. Paris estava
repleta. Parecia que qualquer estudante brasileiro que quisesse uma
bolsa para estudar no exterior a recebia. Na Europa, ao contrário, as
universidades estavam em crise. Aqui só se falava em cortes no orçamento
e em cortes de empregos, e encontrar trabalho tinha se tornado quase
impossível para os jovens doutores. Vi vários universitários europeus
chegarem ao Brasil em busca de emprego, até em lugares distantes dos
grandes centros. Além disso, nunca parecia faltar dinheiro para
organizar simpósios e convidar palestrantes. Lembro-me bem que por volta
de 2010, confrontando as situações das universidades brasileiras e
europeias, eu tinha a sensação de que era eu que vinha do terceiro
mundo!
Mas isso não durou muito…
Sim, o
milagre desapareceu tão rápido quanto havia aparecido. A situação atual
em muitas universidades brasileiras parece desastrosa – disseram-me que
professores são orientados a não acender a luz muito cedo! O número de
bolsistas brasileiros na Europa parece ter caído tão rápido quanto o
número de colóquios faustosos no Brasil, e o fluxo de migração se
reverteu novamente. Embora essas observações só se refiram ao microcosmo
universitário, eu acho que refletem uma realidade mais ampla. A ambição
de sair do “subdesenvolvimento”, a convicção, depois de vários anos de
crescimento, de ter definitivamente virado a página e de ser agora “um
país como os outros”, isto é, como os Estados Unidos ou Europa; e,
finalmente, a amarga desilusão, que é uma das causas da crise política
atual.
A
“crítica do valor”, corrente crítica na qual se inserem seus escritos,
argumenta que o capitalismo entrou numa fase irremediável de crise,
devido a uma contradição estrutural. O Brasil é um país onde essa
corrente tem suscitado interesse desde os anos 1990. As vicissitudes que
você descreveu afetaram a forma com a qual a wertkritik foi recebida no país?
Sim,
poderíamos acompanhar essa evolução também através do recebimento da
crítica do valor e do seu autor mais conhecido, o alemão Robert Kurz.
Ele atingiu um grande público no Brasil na década de 1990, depois da
tradução de O colapso da modernização (Paz e Terra, 1991). Esse
livro anunciava que o capitalismo mundial, apesar da atmosfera de
triunfo que prevaleceu no Ocidente depois da queda da URSS,
inevitavelmente entraria em colapso. Enquanto novas catástrofes
econômicas reapareciam no Brasil (por exemplo, o retorno da
hiperinflação que se repetiu várias vezes), a teoria da crise de Kurz
permaneceu bastante debatida. Através de sua coluna na Folha de São Paulo,
ele se tornou um formador de opinião no Brasil. Ele me disse que, cada
vez que havia uma má notícia econômica no Brasil, seu telefone começava a
tocar e chamavam-no para entrevistas. Mas, com a euforia coletiva que
começara a se estabelecer durante os anos Lula, ninguém queria ouvir
falar de crise. Mesmo os grupos de pesquisa no Brasil que se inspiravam
na crítica do valor relatavam manter apenas alguns de seus aspectos.
Eles diziam que, naquele contexto, era impossível falar de uma crise do
capitalismo no Brasil sem que rissem da nossa cara. A Folha fechou a coluna de Kurz.
O fato de
que o Brasil aparentava ter sido poupado da crise mundial de 2008
parecia reforçar ainda mais a impressão de que o capitalismo só estava
em crise nos seus antigos centros e que simplesmente havia passado a
tocha para a ex-periferia: os famosos países BRICS. Assim, o sentimento
de nova riqueza foi acompanhado pela satisfação de uma espécie de
revanche histórica que finalmente permitia ao Brasil fazer parte do
clube das potências. O país reivindicava então um assento permanente no
Conselho de segurança da ONU, propunha-se como mediador entre países em
conflito em outros continentes e investia maciçamente fora das suas
fronteiras. Finalmente, o Brasil não era mais o “primo pobre”.
Além disso,
aqueles que aprovavam o governo do PT podiam enfatizar que não eram
apenas os indicadores econômicos que subiam, mas que também havia uma
evolução para uma maior igualdade social e mais serviços básicos, mais
respeito das minorias e um espírito menos colonialista. Por isso,
inclusive nesse sentido, o Brasil tornou-se “moderno” e foi integrado ao
mundo globalizado. De fato, eu já não via mais, ao longo da estrada que
leva do aeroporto de Guarulhos a São Paulo, as favelas particularmente
miseráveis que havia visto em 1999 – quem sabe para onde eles foram
deslocadas… Em todo caso, agora sabemos que bastou pouco para acabar com
este conto de fadas.
O que houve?
O país foi
alcançado pela crise mundial, com uma crise política caseira em bônus.
Não é necessário recordar aqui os detalhes. Há, sobretudo, duas questões
que devem ser colocadas: o fato de que o Brasil tenha caído tão
rapidamente seria o resultado de más políticas que poderiam ter sido
evitadas ou seria a consequência inevitável de uma lógica pétrea do
capitalismo mundial? E por que os grupos dominantes no país – o grande
capital, a finança, os latifundiários, a grande mídia – têm atacado
obstinadamente o governo de Dilma, apesar dos anos de prosperidade que o
governo do PT lhes proporcionou, desde 2002? Que razão teria o Capital
para desaprovar o PT (e não os seus eleitores populares decepcionados)?
Você diz que o Brasil teve uma “recaída”. Você acredita que o que está acontecendo pode ser descrito como um retrocesso?
“Recaída”,
“retrocesso”, sim, é o caso de usar essas palavras. No plano econômico,
em primeiro lugar. A situação atual demonstra que o Brasil nunca tinha
se liberado do pecado capital das economias “atrasadas”: a dependência
das exportações de matérias-primas. Pelo contrário, a sua incidência na
economia nacional quase dobrou desde 2000. A economia brasileira
continua tão frágil e dependente quanto antes, o que resultou no rápido
retorno da inflação e da pobreza, a partir do momento em que a economia
mundial piorou. Os observadores sérios são unânimes no seu diagnóstico:
era essencialmente a demanda voraz da China, em termos de
matérias-primas, que estimulava a economia brasileira, e a economia
chinesa dependia, por sua vez, da capacidade dos países ocidentais de
absorver seus produtos manufaturados. No momento em que esse esquema
mundial instável – que se baseava apenas no crédito – começou a vacilar,
o milagre econômico brasileiro já tinha terminado. Mesmo internamente,
ele só funcionava a base de crédito. O crédito ao consumo e o crédito
imobiliário criavam uma sensação de enorme expansão das classes médias e
geravam consenso social, enquanto que o Estado fazia investimentos
maciços que eram igualmente financiados a crédito. A famosa inclusão de
milhões de pessoas pobres não era fruto de qualquer redistribuição real,
mas apenas um subproduto – um “derivado” – da bolha especulativa
global. O PT anunciou que deveria fazer o bolo crescer para poder
distribuir a todos; mas, no final das contas, o bolo tinha apenas
inchado com fermentos artificiais… Em suma, o boom econômico não tinha base sólida em termos capitalistas, mas era estritamente o resultado de fatores externos e incontroláveis.
Você acredita então que essa nova queda era previsível?
Sim, esta
queda era previsível porque a economia global, na era neoliberal, não é
mais baseada na única fonte real de “rentabilidade” no sentido
capitalista: isto é, a transformação do trabalho vivo em valor e sua
constante acumulação. Desde que a substituição do trabalho vivo pela
tecnologia – que não cria valor econômico – ultrapassou um determinado
nível, mais ou menos na década de 1970, a economia mundial só simulou
o crescimento econômico, com uma utilização cada vez mais maciça de
crédito e de todas as formas de capital fictício (bolsas, valores
imobiliários etc.). A crise de 2008 foi apenas o começo do colapso dos
valores irreais criados pela finança e, desde então, nada foi feito para
reavivar a economia global de forma sustentável – apenas empréstimos e
ainda mais empréstimos.
Também era
previsível que o deslocamento de acumulação global dos centros –
imaginados como velhos e cansados – para a periferia – imaginada como
jovem e cheia de energia – não ocorreria. O capitalismo não é uma
receita que, se devidamente aplicada, dá os mesmos resultados em todos
os lugares. Foi baseado desde o início sobre o caráter não-contemporâneo
das diversas economias e sobre uma divisão de tarefas, tudo em
benefício dos países que tinham um nível maior de produtividade. São
sempre os mesmos países que, inevitavelmente, têm mantido suas vantagens
iniciais, o que remonta ao século 19. A globalização, a partir da
década de 1970, destruiu as últimas possibilidades de estabelecer
economias nacionais ou regionais, seja na União Soviética, seja como
parte de um “desenvolvimentismo”. A partir daí, a única integração
possível ao mercado mundial se deu pela via das exportações – o Brasil e
a Rússia o fizeram com as matérias-primas; a China, com produtos
manufaturados que os estadunidenses compravam quase gratuitamente,
graças à função do dólar como moeda mundial. Neste sistema, sempre há um
país “atrasado” que deve vender barato seus recursos ou seu trabalho
para países mais “produtivos”. Pode-se, é claro, combater essa
desigualdade global, mas deve-se, então, lutar contra o sistema
capitalista como tal. Quando se aceita o capitalismo como horizonte
intransponível, também se aceita, goste-se ou não, o fato de que há
vencedores e perdedores. As políticas mais ou menos apropriadas dos
diferentes governos só podem mudar detalhes – vemos isto todos os dias.
Em
outras palavras, poderíamos dizer que assistimos mais uma vez ao
fracasso daquilo que Kurz chamara de “modernização retardatária”?
Sim,
exatamente. Se podemos aplicar o conceito de “retrocesso”, também é
nesse outro sentido: o fracasso da “modernização retardatária” mostrou
que a modernização da sociedade brasileira em si foi em muitos aspectos
um verniz superficial. Uma vez que o quadro econômico piorou e que não
havia mais abundância para distribuir aos ricos e aos pobres, os velhos
demônios, que nunca dormiram realmente, finalmente despertaram. Apesar
de todas as benesses que favoreceram a burguesia, esta nunca gostou da
política do PT. De um ponto de vista puramente econômico e prático, isso
pode parecer ódio irracional ou pelo menos ingrato. Mas a satisfação
social do sujeito capitalista não é medida apenas pelos produtos que
consome, mas também por sua distinção em relação aos outros sujeitos. E essas questões de status
são ainda mais importantes, onde os restos de uma mentalidade
pré-moderna e colonialista persistem. Dizem que o Bolsa Família
desagradou aos pequenos burgueses porque havia se tornado mais difícil
encontrar empregadas domésticas. A presença delas, até mesmo em famílias
da pequena burguesia, é uma característica da vida brasileira que causa
grande impacto nos visitantes estrangeiros. A perda desse status
simbólico foi certamente angustiante para muitas pessoas. Da mesma
forma, estudar na universidade ou viajar para o exterior deixou de ser o
sinal de se pertencer a uma elite.
Como diziam alguns, “os aeroportos viraram rodoviárias”…
Sim, isso
mesmo. E por que os velhos burgueses suspiravam assim? Eles não tinham
perdido nada de seus bens materiais, mas agora dificilmente poderiam
sentir o prazer abjeto de ver o engraxate aos seus pés. Vemos que
questões de identidade podem contar tanto quanto questões materiais. Em
todo o mundo, a crise ressuscitou os piores reflexos do passado, em
particular o racismo, o antissemitismo e o desprezo pelos pobres. E no
Brasil, ressurgiram as atitudes herdadas de uma sociedade escravocrata.
Não é o custo – bastante moderado – do Bolsa Família que escandaliza,
mas a ideia de que os pobres possam ter direitos.
Mas que relação podemos estabelecer entre a persistência de mentalidade ultrapassada e o cenário político atual?
Também
reconhecemos essa persistência do passado na facilidade com que os
“poderes fortes” em alguns países invertem o jogo “democrático” assim
que o jogo não lhes convém. É claro que, em nenhum lugar do mundo, os
dominantes aceitam mais as regras “democráticas” antes estabelecidas por
eles mesmos. Mas, no caso brasileiro, a ânsia pelo poder tem
efetivamente ares de um golpe que traz à tona tempos sombrios. Claro,
não temos que ter pena do PT: ele tropeçou no seu próprio tapete, ele
foi vítima de seu próprio jogo, traído por aliados que ele próprio levou
ao poder e os instalou em lugares de onde eles poderiam golpeá-lo. Mas
esta consideração não altera o fato de que as camadas mais reacionárias
do país retomaram o seu antigo poder. A composição do governo Temer é
uma confirmação caricatural. Do ponto de vista da pura lógica do capital
e do dinheiro, um branco e um negro, uma mulher e um homem, um gay e um
pai de família, um evangélico e um ateu, um descendente dos
colonizadores e um descendente de escravos são iguais – mas a mesma
lógica ainda mantém seu lado obscuro irracional de que essas pessoas não
se equivalem, de forma alguma.
No entanto, a
queda da Dilma não foi apenas o resultado de uma conspiração nos
corredores de um Parlamento de corruptos. Foi precedida por enormes
manifestações pedindo o impeachment, muito maiores e mais
contínuas do que as de 2013. Um dos fatores que precipitaram a desgraça
do PT, junto ao estrato social que até então tinha beneficiado de suas
políticas, foi o fenômeno já observado pelo sociólogo francês Emile
Durkheim no final do século XIX, quando tentava entender por que,
paradoxalmente, a taxa de suicídio aumentava durante períodos de
prosperidade: as expectativas crescem mais rápido do que as
possibilidades reais, causando uma maior decepção do que antes.
Prometeram às novas classes médias, criadas pelas políticas do PT, que
viveriam como nos países mais “desenvolvidos”; consequentemente, elas
rapidamente consideraram intoleráveis situações que antes elas teriam
considerado como “progresso”. Eu não pretendo fazer um discurso
culturalista sobre as “mentalidades eternas” dos povos. Pelo contrário, é
um discurso sobre a impossibilidade de lutar contra o capitalismo com
seus próprios meios. Ele nunca permitirá que o Brasil tenha um melhor
lugar no mercado mundial, nem que os pobres conquistem o seu lugar na
sociedade brasileira.
Em meio a essas perspectivas pouco animadoras, que possibilidades de resistência podemos vislumbrar?
Antes do
governo do PT, existiram fortes movimentos sociais. Houve as
manifestações – um tanto misteriosas – de 2013. Os melhores motivos para
se retomar uma antipolítica estão reunidos. Mas ela deve
absolutamente se separar de qualquer referência aos partidos, sejam
esses quais forem, ao Estado e ao “desenvolvimento”. Ela não deve
redistribuir a falsa riqueza capitalista, o dinheiro, mas sim lutar pelo
acesso de todos às riquezas concretas.
Poderia nos explicar melhor o que entende por “antipolítica”?
A antipolítica
não tem nada a ver com a renúncia da ação pública e coletiva. Pelo
contrário, é uma forma de agir que percebe que na sociedade de mercado
não pode haver uma esfera da política autônoma, lugar de decisão
soberana e consciente, que seria capaz de ditar a lei a uma esfera
separada da economia e do mercado. Enquanto o valor, o dinheiro e o
trabalho formarem a síntese social, eles serão como um a priori,
um filtro inconsciente que se interpõe entre todas as decisões dos
sujeitos e o mundo no qual querem agir. Observamos isso na famosa
questão da “financiabilidade”: numa sociedade de mercado, nós não nos
perguntamos se a solução proposta é apropriada ou não, mas se podemos ou
não “financiá-la”. Qualquer política que atue no campo pressuposto e
não questionado do dinheiro e do trabalho já perdeu a partida de
antemão, e só pode se tornar executora da lógica econômica. É por isso
que todos os governantes do mundo, mesmo aqueles que poderiam, no
início, ser “honestos” ou “de esquerda”, acabam aplicando receitas
neoliberais. É preciso romper com a própria lógica econômica, o que
significa uma espécie de revolução antropológica que vai além do que
chamamos atualmente de política. Não se trata, porém, de uma perspectiva
utópica ou irrealista. Considerando-se o desastre ao qual a lógica
econômica nos levou em todas as áreas (e, em particular, na área do
meio-ambiente), a única via “realista” seria tentar experiências de vida
social para além da economia e do mercado. Mesmo que seja no meio de
milhares de incertezas, é o espírito que parece animar uma parte de
movimentos sociais na América Latina, sejam os zapatistas no México, os
movimentos indigenistas ou os movimentos de apropriação de terras,
usinas, serviços. Eu acho que é muito mais promissor do que continuar a
confiar em partidos, Estados, eleições…
***
O Movimento Democrático 18 de Março (MD18)
nasceu da luta contra o golpe de Estado no Brasil. Sediado em Paris, e
com grande presença de pesquisadores, professores universitários,
artistas e militantes de movimentos sociais, o movimento propõe ampliar a
reflexão sobre as possibilidades da esquerda na atual conjuntura de
crise. É com esse objetivo que o MD18 inaugura uma série de entrevistas
com intelectuais, artistas e militantes de diferentes horizontes, que
visam ampliar o debate sobre as formas de resistência que podem e devem
advir. O projeto se inicia com a participação de grandes pensadores da
esquerda como Michael Löwy, Boaventura de Sousa Santos, Nancy Fraser e Anselm Jappe,
além de contar com a colaboração de inúmeros intelectuais brasileiros.
As entrevistas serão disponibilizadas em português e em francês no site do MD18.
***
Anselm Jappe é um dos principais autores da crítica do valor (wertkritik)
hoje, corrente de teoria crítica marxista que tem como alguns de seus
nomes mais conhecidos Robert Kurz, recentemente falecido, e Moishe
Postone, autor de Tempo, trabalho e dominação social. Ensina
atualmente no Colégio Internacional de Filosofia, em Paris, e é autor de
diversas obras traduzidas para o português, entre elas As aventuras da mercadoria (Antígona, 2006) e Crédito à morte (Hedra, 2013) – livro que foi tema da coluna “Roteiros para sair do capitalismo“, de Ricardo Musse, no Blog da Boitempo.
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