Metalinguagens
e efeitos visuais tautológicos dominaram a cobertura do programa
Fantástico do último domingo sobre as Olimpíadas
Rio 2016, com a
mesma estética apoteótica das transmissões do Carnaval, dando o tom
geral da
cobertura da emissora. Mais do que mau gosto, é a evidência do
“tautismo”
(autismo + tautologia) crônico da Globo nos anos recentes. Para uma
emissora que se fechou em si mesma como reação à crise de audiência e a
concorrência das mídias de convergência, não existe mais mundo externo:
as
Olimpíadas só acontecem no Rio para que a Globo possa transmiti-la. E o
auge do tautismo é quando jornalistas começam a entrevistar outros
jornalistas da
própria emissora. Para a Globo, a cobertura jornalística em si é mais
importante do que o próprio evento e os relatos das emoções de seus
apresentadores é mais dramático do que as dos próprios atletas.
Em pouco mais de
uma hora da cobertura dos preparativos para o início das Olimpíadas no Rio no
programa Fantástico, um terço do tempo (algo em torno de 20 minutos) foi
dedicado a um exercício de metalinguagem: a Globo falando dela mesma sobre como
vai cobrir o evento. O ápice da contínua auto-referência foi quando um
jornalista entrevistou outro jornalista da própria emissora.
O restante do
tempo, a emissora nada mais fez do que transformar o evento em uma espécie de
suíte da pauta do seu telejornalismo da últimas semanas: a suposta ameaça de
terroristas brasileiros de uma “célula amadora” (segundo o ministro da Justiça
Alexandre de Moraes) e o escândalo do esquema de dopagem generalizada de
atletas russos.
A novidade foi a
mudança de humor e atmosfera da cobertura jornalística: uma pauta pra lá de
positiva, bem diferente da Copa do Mundo de 2014 com denúncias de arenas
superfaturadas, previsões sombrias sobre um possível caos nas telecomunicações
e obras de infraestrutura que jamais seriam inauguradas.
A mudança da pauta da grande mídia: da Copa negativa às Olimpíadas positivas |
Dessa vez,
haverá legado olímpico (a infraestrutura de transporte do Rio de repente passou
a funcionar), bem diferente da Copa onde tudo era reportado como um grande
gastança de dinheiro público. Agora o pensamento é positivo e patriótico. Afinal,
a torre de marfim do estúdio da Globo está no Parque Olímpico. Por isso,
repetir o baixo astral da Copa não vem ao caso.
O que é “tautismo”?
Tudo isso evidencia que a TV Globo fará uma
cobertura tautista (autismo + tautologia) do evento olímpico, confirmando a
tendência dos últimos anos que coincide com a sua queda vertical de audiência.
Autista porque a linguagem começa a misturar elementos de ficção e não-ficção
onde a cobertura torna-se mais importante do que o próprio evento; e
tautológico pela lógica auto-referencial onde as fronteiras entre o “dentro” e
“fora” começam a desaparecer.
Tautismo é um neologismo criado pelo
pesquisador francês Lucien Sfez para designar o que ele chama de “comunicação
confusional”: traço dominante contemporâneo onde o processo comunicacional
teria se tornado um diálogo sem personagem. Só leva em conta a si mesmo, isto
é, a comunicação como o seu próprio objeto.
Seguindo o paradigma dos estudos sobre sistemas
dos pesquisadores Varela e Luhumann, para Sfez o tautismo é o resultado da
hipertrofia de sistemas que de tão grandes e complexos começam a se
auto-organizar e fechar em si mesmos – “auto-organização” e “fechamento”, como
chamado nos estudos sistêmicos – sobre isso leia SFEZ, Lucien. Crítica da Comunicação. São Paulo:
Loyola, 2000.
Por “fechamento” entende-se o momento no qual
quando o sistema troca informações com o mundo externo, qualquer dado exterior
é traduzido por uma descrição que o sistema faz de si mesmo.
Da metalinguagem ao fechamento operacional
A TV Globo sempre abusou das metalinguagens
como forma de demonstração do seu poder tecnológico e financeiro em relações às
concorrentes. O estardalhaço com que falava da câmera nos trilhos sobre os
boxes do autódromo de Interlagos ou da sua câmera exclusiva nas transmissões
das copas do mundo sempre foi para a emissora uma prova inconteste do seu
monopólio das comunicações no País.
Embora ainda a TV Globo mantenha o seu poder
econômico graças a sua estratégia de BV (Bônus por Volume) para garantir a
maior parte do bolo das verbas publicitárias, seu poder simbólico vem
decrescendo com a constante queda de audiência e a concorrência das tecnologias
de convergência e Internet.
Como um sistema de comunicação que cresceu,
tornou-se hegemônico e complexo com seus interesses e ingerências na política
brasileira, a Rede Globo começa a expor as características de todo sistema:
buscar a todo custo o equilíbrio, prevenindo que qualquer informação que venha
do ambiente exterior possa desestabilizá-lo. Isso se chamaria “fechamento
operacional”.
Por isso, diante das novas condições
políticas (parcialmente resolvidas com o afastamento da presidenta Dilma e o
sucesso do afastamento do PT do poder) e tecnológicas (ainda não resolvida com
o ameaça das redes sociais, blogs e dispositivos móveis) a Globo radicalizaria
esse processo de fechamento para tentar expurgar qualquer evidência de
decadência.
O destaque dado à “célula amadora” brasileira
supostamente cooptada pela Internet como ameaça terrorista real torna-se uma
tradução do mundo através da projeção de uma descrição que a Globo faz de si
mesma: transformou-se numa pauta obrigatória das Olimpíadas, para provar como a
Internet e novas tecnologias seriam, em si mesmas , criminógenas – vício,
pedofilia, violência de torcidas de futebol, golpes cibernéticos etc.
Mas o
momento culminante desse autismo e recorrente auto-referência é quando
jornalistas entrevistam outros jornalistas do próprio grupo – o repórter José
Burnier “entrevistou” o locutor Galvão Bueno sobre suas impressões de décadas
cobrindo olimpíadas.
Jornalistas entrevistando outros jornalistas
sempre foi um fato corriqueiro em coberturas extensivas como Copa do Mundo e
Olimpíadas: sem notícias novas, inventam-se pautas para encher buracos da
programação.
Mas nos tempos recentes da Globo isso vai além:
transforma-se em tautismo. Por exemplo, no programa Estúdio I do canal Globo News tornou-se corriqueiro a apresentadora
Maria Beltrão e seus comentaristas entrevistarem repórteres do jornal O Globo –
nos últimos dias abordando os temas da violência no Rio e a ameaça terrorista
no Brasil. O que contradiz qualquer parâmetro de uma suposta objetividade que o
jornalismo sempre prezou.
A natureza tautológica, auto-referencial e de
circularidade fica exposta: o repórter apenas confirma a pauta que ele já
conhece de antemão da redação do programa que o entrevista.
Efeitos visuais tautistas
As imagens aéreas do Globocop (o helicóptero
da emissora) do Parque Olímpico, mostravam o estúdio da Globo como edifício
central do complexo esportivo. O tom
apoteótico dos apresentadores produziu o mesmo efeito das coberturas do desfile
das escolas de samba no Sambódromo: assim como o Carnaval, também as Olimpíadas
só acontecem para que a Globo possa transmitir.
Mas esse efeito apoteótico como um samba
enredo do Carnaval não fica apenas por aí. Os efeito visuais em chroma acrescentam mais um elemento
tautológico no tautismo da linguagem global. A função dos antigos “selos”
(composição de elemento gráfico que identifica editorias ou temas da pauta do
telejornal) na linguagem telejornalística, que sempre se posicionavam atrás do
apresentador, agora pulam para frente, no meio do estúdio em efeito 3D.
Se o tema é vôlei de praia, aparece areia no
estúdio com um jogador preparando uma cortada na rede. Apresentadores e
convidados se esforçam em tornar orgânico o efeito, mas sem sucesso. O efeito
não é informativo, mas de mera repetição ou saturação semântica semelhante aos
efeitos neobarrocos das coberturas de carnaval.
O mesmo ainda acontece com as chamadas “mesas
táticas” de futebol (agora evoluindo para “piscinas táticas” e “quadras
táticas”) onde do didatismo também pula para a redundância daquilo que o
comentarista já havia dito durante a partida.
A função geral não é mais informativa –
sistemas tautistas se tornam cegos ao mundo externo; aliás, o lado de fora só
existe para confirmar o que já está dentro.
A função é tautológica e, mais além,
ideológica. Desde os tempos da estética Hans Donner, o futurismo das bancadas
de telejornais da Globo que pareciam naves espaciais procurava criar uma
atmosfera de tecnologia, neutralidade e transparência – no senso comum, tudo
que soa “científico” e “tecnológico” é neutro e confiável.
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