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segunda-feira, 15 de agosto de 2016

A cidade entre o espaço e o território, por Christian Ingo Lenz Dunker.


Um dos representantes mais criativos da nova esquerda britânica, o escritor China Miéville descende de um ramo perdido na arqueologia da esquerda, aquele que vem de André Breton e os surrealistas, passando por Walter Benjamin e Kafka e que encontra em Žižek uma de seus melhores expoentes contemporâneos na arte de misturar alta e baixa cultura, cotidiano servil e insólitas fantasias, ideológicas e críticas.


China Miéville Christian Dunker
O escritor e pensador China Miéville, autor de A cidade & a cidade e Estação Perdido, entre outros.

Por Christian Ingo Lenz Dunker.

No livro A cidade & a cidade, de China Miéville, o inspetor Tyador Borlú investiga o assassinato de uma prostituta em uma cidade futurista. A trama policial e linguística gradualmente desloca o problema clássico do “whodonit” (quem é o assassino?) para “onde realmente isso se passa”. Se Admirável mundo novo (1932), de Aldous Huxley, e Alphaville (1965), de Jean-Luc Godard, são obras que nos apresentam cidades determinadas por “ficções de verdade”, ao modo de condomínios artificiais autosegregativos, e se filmes como Metropolis (1927), de Fritz Lang, e Blade Runner (1982), de Ridley Scott, são o seu complementar distópico, composto por cidades hetero-segregativas, marcadas traumaticamente pelo Real, China Miéville consegue reunir neste livro as duas estratégias em um mesmo problema.
As cidades de Ul Qoma e Beszel ocupam o mesmo lugar geográfico, onde cada qual possui zonas exclusivas, além de espaços de cruzamento, nas quais as pessoas podem passar, mas não interagir. Com isso sobrepõe-se o paradigma da cidade baseada em experiências de determinação, com suas leis, polícias e regulamentos e a cidade fundada na indeterminação, com suas diferenças, miscigenações e misturas. A intuição essencial aqui é que existe algo mais, além de muros e ruas, envolvido nesta operação desejante que tem caracterizado nossa experiência de cidade.
Esta invenção literária ressoa com a biografia de seu autor, um dos representantes mais criativos da nova esquerda britânica. Com admirável percurso acadêmico, passando por Harvard e pela London School of Economics, ele fundou, em 2013, junto com Ken Loach e o psicanalista Ian Parker1, a Left Unity [Unidade de Esquerda], um partido anti-capitalista, ecológico e feminista pensando para resistir ao programa neoliberal e suas políticas de austeridade. Sua base está nas cooperativas e sindicatos, mas principalmente nas pessoas comuns (ordinary people) que enfrentam a pobreza, a discriminação e opressão social em termos de gênero, raça, etnia, idade, condição física, sexualidade e desemprego. Ao contrário da esquerda clássica cujo programa econômico e plataforma de governo enfatizam reformas estruturais e estatização generalizada, a Left Unity, assim como o Podemos espanhol e o Syriza grego, advoga um novo tipo de governamentalidade: emprego total para todos, baseado na redução proporcional das horas de trabalho, habitações comunitárias, administração coletiva da infraestrutura de serviços, controle democrático de bens públicos e livre organização dos trabalhadores. Seu horizonte não é o estado de bem estar social com perfeito funcionamento do Estado, mas o reconhecimento e a redução do sofrimento.
A novidade desta nova esquerda não está apenas nas teses, mas principalmente nos meios que ela se utiliza para formar laços sociais, que passam pela literatura, pelo cinema e pelas práticas de vida alternativa. Isso significa, sobretudo, uma transformação discursiva em relação à esquerda tradicional e sua abordagem militante, baseada na expansão de identidades “preferenciais” e na confiança na lei, e consequentemente no Estado nacional, como fulcro do processo de reequilibração da desigualdade. Para isso há um discurso constituído, que pensa a cultura como serva da política e que teve no realismo socialista sua expressão mais definida. É, sobretudo, uma esquerda que não tem horror ao dinheiro nem espera gratuidade absoluta do Estado. Em vez de demonizar o consumo, qualificá-lo como nas práticas alimentares, em vez de confiar no Estado nação, entendê-lo como uma patologia.
No fundo, Miéville descende de um ramo perdido na arqueologia da esquerda, aquele que vem de André Breton e os surrealistas, passando por Walter Benjamin e Kafka e que encontra em Žižek uma de seus melhores expoentes contemporâneos na arte de misturar alta e baixa cultura, cotidiano servil e insólitas fantasias, ideológicas e críticas. Seu gênero literário do “New Weird Fiction” desenvolve o outro lado da imaginação política por meio da ficção científica, da comédia, do horror e do sincretismo de gêneros que incluem até mesmo livros para crianças. Daí a conhecida fórmula que o define: “99% geek, mas aquele 1% marxista…”. Leitor de Tolkien e entusiasta de Star Wars, Harry Potter e o Senhor dos Anéis, mas ao mesmo tempo ciente do universalismo contido na experiência de linguagem desenvolvida por James Joyce, Miéville atualiza o programa histórico contido nestas sagas medievais, anteriores ao surgimento do Estado moderno. Lembremos que este é também o tempo no qual miticamente está se formando um novo conceito de cidade.
Há algo comum nestas sagas, que inspiraram os cenários dos primeiros RPGs dos anos 1990, do tipo Dungeons and Dragons e que terminam em Game of Trones e seus vídeo games conexos. Elas remontam aos escritores irlandeses, como Jonathan Swifft, que viveram a experiência de proto-colonização e pauperização, enquanto primeira colônia britânica. Nesta condição de desvantagem, a invenção de um espaço simbólico anterior ou posterior à distribuição atual e real do território tornou-se absolutamente crucial. Nas palavras do próprio Miéville:
“O artista [crítico] finge que coisas sabidamente impossíveis são não apenas possíveis, mas reais, o que acaba por criar um espaço mental que redefine – ou simula redefinir – o impossível.”
China Miéville, “Marxismo e Fantasia”. Em: Margem Esquerda n.23. São Paulo, Boitempo: 2014. p.23.
Artigo completo disponível online aqui.
A experiência da cidade e o seu programa de reocupação dependem destas duas estratégias de negação do impossível: a reconstrução do que foi jamais-possível, ou seja, a reinvenção do passado pela fantasia, com seus fantasmas, vampiros, Frankenstein e a invenção de um novo futuro baseado no ainda-não-possível, como Zumbis, mutantes e extraterrestres. Qualquer um pode dizer que zumbis e fantasmas não existem, mas ao mesmo tempo sabemos que coisas como a cracolândia, assassinatos de negros em periferias de grandes cidades e corpos de refugiados boiando no Mediterrâneo existem. O problema central aqui é que entre a existência e a não existência existe uma coisa chamada Real. Real cuja verdade só é acessível por meio de estruturas de ficção.
As duas estratégias, combinadas pelo realismo “weird” são formas de criar uma consciência do não-real, que é em si um espaço, determinado por uma experiência fora de território, deslocalização ou perda de lugar. Isso é o que venho chamando de fator político do sofrimento em sua estrita dependência com gramáticas de reconhecimento. Caracterizar os despossuídos como entes privados da cidadania, excluídos ou refugiados é reduzi-los a uma única gramática de reconhecimento, aquela que liga o Estado e a nação ao império das leis e sua conexão necessária entre o espaço e o território. Para a psicanálise, “ocupação” (Besetzung, em alemão) é um termo pelo qual Freud designa o investimento contingente de desejo em um lugar ou representação.
Não posso deixar de lembrar aqui o comentário de Francesco Careri2, com quem estive na Flip deste ano. Em suas aulas de arquitetura ele convida os alunos a andarem pela cidade atravessando áreas, públicas, mas também privadas e, sobretudo, “indeterminadas”, sem permissão formal. Depois os convida a pensarem soluções para problemas das áreas e comunidades pela quais passaram. Tendencialmente, alunos alemães recusam-se a praticar tal abuso da lei, latino americanos não percebem sua importância transgressiva e os demais se interrogam sobre o senso de propriedade que rege a relação entre espaço e território em nossas cidades. Na mesma direção, o sociólogo Jaílson de Souza e Silva, do Observatório das Favelas, salienta o direito à convivência como um dos pontos fundamentais para uma nova esquerda brasileira.
Se há alguma potência política na vida digital é que ela nos mostra que o espaço simbólico não se sobrepõe ao território real. O sintoma e o artifício para fazer esta ligação é justamente este ser híbrido, feito de linguagem escrita e potencial violência, que é a lei. Não é por outro motivo que um dos ensaios teóricos mais penetrantes de China Miéville versa justamente sobre o imperialismo da lei na Europa emergente3. É por motivos análogos que ele recusa o nominalismo linguístico das políticas baseadas em lugares de fala fixos, que aprisionam pessoas em suas identidades, como os territórios legais tentam aprisionar sujeitos em seus espaços, ainda que com o justo argumento de empoderá-los.
“Hamd Hamzinic era o que os assassinos de Avid Avid também denominariam ébru. Hoje em dia o termo é usado principalmente pelos conservadores racistas, ou numa provocação reversa, pelos próprios alvos do epíteto: um dos mais famosos grupos de hi-hop besz se chamava Ebru W.A. […] a antiga palavra besz para ‘judeu’ foi recrutada para incluir novos imigrantes e virou o termo coletivo para ambas as populações.”
China Miéville, A cidade & a cidade. São Paulo, Boitempo: 2014. p. 32.
A ideia de que palavras são “recrutadas” exatamente como pessoas que são convocadas para exércitos, assim como a assimilação de termos ofensivos como estratégias de resistência nos lembra obviamente a interdição de palavras de conotação afetiva em Alphaville de Godard e a “novilíngua” de George Orwell, como fulcro da operação ideológica dos discursos. Como não reencontrar aqui o mesmo espírito dos neologismos Joyce-lacanianos, combinando ficção científica e romance policial, de Huxley a Ridley Scott, e a mesma resistência à padronização pós-moderna, politicamente correta e metalinguística do discurso, de Lang e Godard?
Em síntese: Miéville é o antídoto atualmente disponível para Alphaville.
Cruzar fronteiras é pior do que assassinato.

NOTAS
1 Parker, Ian (2014) Psicanálise Lacaniana: revolução na subjetividade. São Paulo, Annablume, 2014.
2 Confira a gravação completa da mesa com Francesco Careri clicando aqui.
3 China Miéville. Between Equal Rights: A Marxist Theory of International Law. Stanford Journal of International Law Winter 2007: 208+. 2005.

Chegou a obra prima de China Miéville!

Foto estoque_envioDepois do sucesso de A cidade & a cidade, chega ao Brasil o aclamado romance que consagrou o escritor inglês China Miéville como um dos maiores nomes da fantasia e da ficção científica contemporânea. Em Estação Perdido, primeiro livro de uma trilogia que lhe rendeu prêmios como o British Fantasy (2000) e o Arthur C. Clarke (2001), o leitor é levado para Nova Crobuzon, no planeta Bas-Lag, uma cidade imaginária cuja semelhança com o real provoca uma assustadora intuição: a de que a verdadeira distopia seja o mundo em que vivemos.

Onde encontrar? Livraria Cultura | Saraiva | Livraria da Travessa | Livraria Martins Fontes | Livrarias Curitiba
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Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012 e um dos autores da coletânea Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (Boitempo, 2015). Seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 2015). Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

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