Um dos representantes mais criativos da nova esquerda britânica, o escritor China Miéville descende de um ramo perdido na arqueologia da esquerda, aquele que vem de André Breton e os surrealistas, passando por Walter Benjamin e Kafka e que encontra em Žižek uma de seus melhores expoentes contemporâneos na arte de misturar alta e baixa cultura, cotidiano servil e insólitas fantasias, ideológicas e críticas.
Por Christian Ingo Lenz Dunker.
No livro A cidade & a cidade, de China Miéville,
o inspetor Tyador Borlú investiga o assassinato de uma prostituta em
uma cidade futurista. A trama policial e linguística gradualmente
desloca o problema clássico do “whodonit” (quem é o assassino?) para “onde realmente isso se passa”. Se Admirável mundo novo (1932), de Aldous Huxley, e Alphaville
(1965), de Jean-Luc Godard, são obras que nos apresentam cidades
determinadas por “ficções de verdade”, ao modo de condomínios
artificiais autosegregativos, e se filmes como Metropolis (1927), de Fritz Lang, e Blade Runner
(1982), de Ridley Scott, são o seu complementar distópico, composto por
cidades hetero-segregativas, marcadas traumaticamente pelo Real, China
Miéville consegue reunir neste livro as duas estratégias em um mesmo
problema.
As cidades de Ul Qoma e Beszel ocupam o
mesmo lugar geográfico, onde cada qual possui zonas exclusivas, além de
espaços de cruzamento, nas quais as pessoas podem passar, mas não
interagir. Com isso sobrepõe-se o paradigma da cidade baseada em
experiências de determinação, com suas leis, polícias e regulamentos e a cidade fundada na indeterminação,
com suas diferenças, miscigenações e misturas. A intuição essencial
aqui é que existe algo mais, além de muros e ruas, envolvido nesta
operação desejante que tem caracterizado nossa experiência de cidade.
Esta invenção literária ressoa com a
biografia de seu autor, um dos representantes mais criativos da nova
esquerda britânica. Com admirável percurso acadêmico, passando por
Harvard e pela London School of Economics, ele fundou, em 2013, junto
com Ken Loach e o psicanalista Ian Parker1, a Left Unity [Unidade
de Esquerda], um partido anti-capitalista, ecológico e feminista
pensando para resistir ao programa neoliberal e suas políticas de
austeridade. Sua base está nas cooperativas e sindicatos, mas
principalmente nas pessoas comuns (ordinary people) que
enfrentam a pobreza, a discriminação e opressão social em termos de
gênero, raça, etnia, idade, condição física, sexualidade e desemprego.
Ao contrário da esquerda clássica cujo programa econômico e plataforma
de governo enfatizam reformas estruturais e estatização generalizada, a
Left Unity, assim como o Podemos espanhol e o Syriza grego, advoga um
novo tipo de governamentalidade: emprego total para todos, baseado na
redução proporcional das horas de trabalho, habitações comunitárias,
administração coletiva da infraestrutura de serviços, controle
democrático de bens públicos e livre organização dos trabalhadores. Seu
horizonte não é o estado de bem estar social com perfeito funcionamento
do Estado, mas o reconhecimento e a redução do sofrimento.
A novidade desta nova esquerda não está
apenas nas teses, mas principalmente nos meios que ela se utiliza para
formar laços sociais, que passam pela literatura, pelo cinema e pelas
práticas de vida alternativa. Isso significa, sobretudo, uma
transformação discursiva em relação à esquerda tradicional e sua
abordagem militante, baseada na expansão de identidades “preferenciais” e
na confiança na lei, e consequentemente no Estado nacional, como fulcro
do processo de reequilibração da desigualdade. Para isso há um discurso
constituído, que pensa a cultura como serva da política e que teve no
realismo socialista sua expressão mais definida. É, sobretudo, uma
esquerda que não tem horror ao dinheiro nem espera gratuidade absoluta
do Estado. Em vez de demonizar o consumo, qualificá-lo como nas práticas
alimentares, em vez de confiar no Estado nação, entendê-lo como uma
patologia.
No fundo, Miéville descende de um ramo
perdido na arqueologia da esquerda, aquele que vem de André Breton e os
surrealistas, passando por Walter Benjamin e Kafka e que encontra em
Žižek uma de seus melhores expoentes contemporâneos na arte de misturar
alta e baixa cultura, cotidiano servil e insólitas fantasias,
ideológicas e críticas. Seu gênero literário do “New Weird Fiction”
desenvolve o outro lado da imaginação política por meio da ficção
científica, da comédia, do horror e do sincretismo de gêneros que
incluem até mesmo livros para crianças. Daí a conhecida fórmula que o
define: “99% geek, mas aquele 1% marxista…”. Leitor de Tolkien e entusiasta de Star Wars, Harry Potter e o Senhor dos Anéis,
mas ao mesmo tempo ciente do universalismo contido na experiência de
linguagem desenvolvida por James Joyce, Miéville atualiza o programa
histórico contido nestas sagas medievais, anteriores ao surgimento do
Estado moderno. Lembremos que este é também o tempo no qual miticamente
está se formando um novo conceito de cidade.
Há algo comum nestas sagas, que inspiraram os cenários dos primeiros RPGs dos anos 1990, do tipo Dungeons and Dragons e que terminam em Game of Trones
e seus vídeo games conexos. Elas remontam aos escritores irlandeses,
como Jonathan Swifft, que viveram a experiência de proto-colonização e
pauperização, enquanto primeira colônia britânica. Nesta condição de
desvantagem, a invenção de um espaço simbólico anterior ou posterior à
distribuição atual e real do território tornou-se absolutamente crucial.
Nas palavras do próprio Miéville:
“O artista [crítico] finge que coisas sabidamente impossíveis são não apenas possíveis, mas reais, o que acaba por criar um espaço mental que redefine – ou simula redefinir – o impossível.”China Miéville, “Marxismo e Fantasia”. Em: Margem Esquerda n.23. São Paulo, Boitempo: 2014. p.23.
Artigo completo disponível online aqui.
A experiência da cidade e o seu programa
de reocupação dependem destas duas estratégias de negação do impossível:
a reconstrução do que foi jamais-possível, ou seja, a
reinvenção do passado pela fantasia, com seus fantasmas, vampiros,
Frankenstein e a invenção de um novo futuro baseado no ainda-não-possível, como Zumbis, mutantes e extraterrestres. Qualquer um pode dizer que zumbis e fantasmas não existem,
mas ao mesmo tempo sabemos que coisas como a cracolândia, assassinatos
de negros em periferias de grandes cidades e corpos de refugiados
boiando no Mediterrâneo existem. O problema central aqui é que entre a existência e a não existência existe uma coisa chamada Real. Real cuja verdade só é acessível por meio de estruturas de ficção.
As duas estratégias, combinadas pelo realismo “weird”
são formas de criar uma consciência do não-real, que é em si um espaço,
determinado por uma experiência fora de território, deslocalização ou
perda de lugar. Isso é o que venho chamando de fator político do
sofrimento em sua estrita dependência com gramáticas de reconhecimento.
Caracterizar os despossuídos como entes privados da cidadania, excluídos
ou refugiados é reduzi-los a uma única gramática de reconhecimento,
aquela que liga o Estado e a nação ao império das leis e sua conexão
necessária entre o espaço e o território. Para a psicanálise, “ocupação”
(Besetzung, em alemão) é um termo pelo qual Freud designa o investimento contingente de desejo em um lugar ou representação.
Não posso deixar de lembrar aqui o comentário de Francesco Careri2,
com quem estive na Flip deste ano. Em suas aulas de arquitetura ele
convida os alunos a andarem pela cidade atravessando áreas, públicas,
mas também privadas e, sobretudo, “indeterminadas”, sem permissão
formal. Depois os convida a pensarem soluções para problemas das áreas e
comunidades pela quais passaram. Tendencialmente, alunos alemães
recusam-se a praticar tal abuso da lei, latino americanos não percebem
sua importância transgressiva e os demais se interrogam sobre o senso de
propriedade que rege a relação entre espaço e território em nossas
cidades. Na mesma direção, o sociólogo Jaílson de Souza e Silva, do Observatório das Favelas, salienta o direito à convivência como um dos pontos fundamentais para uma nova esquerda brasileira.
Se há alguma potência política na vida
digital é que ela nos mostra que o espaço simbólico não se sobrepõe ao
território real. O sintoma e o artifício para fazer esta ligação é
justamente este ser híbrido, feito de linguagem escrita e potencial
violência, que é a lei. Não é por outro motivo que um dos ensaios
teóricos mais penetrantes de China Miéville versa justamente sobre o
imperialismo da lei na Europa emergente3.
É por motivos análogos que ele recusa o nominalismo linguístico das
políticas baseadas em lugares de fala fixos, que aprisionam pessoas em
suas identidades, como os territórios legais tentam aprisionar sujeitos
em seus espaços, ainda que com o justo argumento de empoderá-los.
“Hamd Hamzinic era o que os assassinos de Avid Avid também denominariam ébru. Hoje em dia o termo é usado principalmente pelos conservadores racistas, ou numa provocação reversa, pelos próprios alvos do epíteto: um dos mais famosos grupos de hi-hop besz se chamava Ebru W.A. […] a antiga palavra besz para ‘judeu’ foi recrutada para incluir novos imigrantes e virou o termo coletivo para ambas as populações.”China Miéville, A cidade & a cidade. São Paulo, Boitempo: 2014. p. 32.
A ideia de que palavras são “recrutadas”
exatamente como pessoas que são convocadas para exércitos, assim como a
assimilação de termos ofensivos como estratégias de resistência nos
lembra obviamente a interdição de palavras de conotação afetiva em Alphaville
de Godard e a “novilíngua” de George Orwell, como fulcro da operação
ideológica dos discursos. Como não reencontrar aqui o mesmo espírito dos
neologismos Joyce-lacanianos, combinando ficção científica e romance
policial, de Huxley a Ridley Scott, e a mesma resistência à padronização
pós-moderna, politicamente correta e metalinguística do discurso, de
Lang e Godard?
Em síntese: Miéville é o antídoto atualmente disponível para Alphaville.
Cruzar fronteiras é pior do que assassinato.
NOTAS
1 Parker, Ian (2014) Psicanálise Lacaniana: revolução na subjetividade. São Paulo, Annablume, 2014.2 Confira a gravação completa da mesa com Francesco Careri clicando aqui.
3 China Miéville. Between Equal Rights: A Marxist Theory of International Law. Stanford Journal of International Law Winter 2007: 208+. 2005.
Chegou a obra prima de China Miéville!
Depois do sucesso de A cidade & a cidade, chega ao Brasil o aclamado romance que consagrou o escritor inglês China Miéville como um dos maiores nomes da fantasia e da ficção científica contemporânea. Em Estação Perdido, primeiro livro de uma trilogia que lhe rendeu prêmios como o British Fantasy (2000) e o Arthur C. Clarke (2001), o leitor é levado para Nova Crobuzon, no planeta Bas-Lag, uma cidade imaginária cuja semelhança com o real provoca uma assustadora intuição: a de que a verdadeira distopia seja o mundo em que vivemos.
Onde encontrar? Livraria Cultura | Saraiva | Livraria da Travessa | Livraria Martins Fontes | Livrarias Curitiba
***
Christian Ingo Lenz Dunker é
psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do
Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social,
Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012 e um dos autores da coletânea Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (Boitempo, 2015). Seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 2015). Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário