Primeiro
ato. Apoiado em uma coalizão entre classes e frações (nucleada por
setores da burguesia produtiva e pelos trabalhadores) e partidos, os
governos Lula e Dilma implementam políticas social-desenvolvimentistas
em várias áreas, algumas delas destinadas à indústria e tecnologia.
Essas políticas induzem transformações, como a retomada do protagonismo
da Petrobras, que em 2006 descobre o maior campo petrolífero encontrado
no terceiro milênio (objeto da cobiça de petroleiras estrangeiras
protegidas por seus Estados, como os EUA) e, já em 2016, passa a
produzir um milhão de barris por dia.
Segundo ato. No início de
2014, investigações da Operação Lava Jato passam a evidenciar o
envolvimento de diretores da Petrobras em crimes, que passavam pela
movimentação de propinas milionárias em um circuito relacional
constituído por doleiros, grandes empresários, políticos do Congresso
Nacional e dirigentes de partidos. Lamentavelmente, elites do PT se
envolveram nessas irregularidades, apesar do partido continuar lutando
pela reforma política para mudar o padrão empresarial de financiamento
eleitoral (fator-chave dos crimes contra a administração pública), a
elevadíssima fragmentação partidária no Poder Legislativo e o excessivo
grau de personalismo dos representantes proporcionais, características
alimentadas pelo sistema eleitoral de lista aberta e pelas coligações
nas eleições para a Câmara dos Deputados, que tendem a maximizar os
custos de transação do presidencialismo de coalizão.
Terceiro ato.
Durante e muito mais ainda após a disputadíssima última eleição
presidencial, vai se constituindo, por convergência sistêmica combinada,
uma poderosa coalizão de atores de oposição ao governo da então
presidente Dilma Roussef e ao PT, incluindo a grande mídia (na TV, rádio
e imprensa escrita), o PSDB de Aécio Neves, lideranças parlamentares
então na oposição, como Eduardo Cunha e seu séquito, grupos de interesse
rentista e financeiro de grande porte, empresários do setor produtivo,
estratos ideológicos liberal-conservadores das classes médias
tradicionais. Essa aliança move-se pela apropriação seletiva das
irregularidades evidenciadas na Lava Jato e pelo ódio político. O
crescimento baixo também abre uma fértil janela de oportunidade para
motivar a ofensiva oposicionista, que, por sua vez, engendra um círculo
vicioso entre crise econômica e crise política.
Quarto ato. A
coalizão sociopolítica e político-institucional contra o PT e o governo
Dilma – mandatária eleita por 54,5 milhões de votos e empossada em 2015
–, inconformada com a quarta vitória eleitoral consecutiva do principal
partido popular da história do país, apóia-se em seu erro de reproduzir
o modus operandi de financiamento político empresarial e nas
dificuldades da economia nacional (imersa em contexto de crise
internacional), para, na verdade, subverter seus acertos na
transformação democrática social-desenvolvimentista da sociedade e do
Estado, contraposta ao padrão neoliberal. Essa poderosa coalizão, após
demandar vários meios de deposição da presidente, como a renúncia ou a
cassação de seu mandato pelo TSE, finalmente alcança o governo por um
impeachment politizado, sem fundamento claro em crime de
responsabilidade. Estabelecida até o momento interinamente no Palácio do
Planalto e com respaldo no Congresso Nacional, onde só na Câmara dos
Deputados há 298 representantes do povo que ou já foram condenados ou
estão sendo processados na Justiça ou em órgãos de controle, a ampla
coalizão, de conteúdo neoliberal, passa a implementar um programa
antipopular que, entre outras ações regressivas, inicia a privatização
do pré-sal, entregando a exploração de um recurso natural estratégico
para grupos multinacionais e revertendo o papel ativo da Petrobras na
política industrial e tecnológica.
O combate à endemia da
corrupção é fundamental. Segundo dados recentes do Datafolha, 32% dos
eleitores vêem-na como o principal problema do país. Mas a Lava Jato, ao
invés de abrir um horizonte republicano de combate a esse crime, opera,
sob a guarida da toga e aliada ao sensacionalismo partidarizado da
grande mídia, como arma de infantaria da coalizão neoliberal, seja
politizando à direita a implementação das normas do Estado de Direito ou
enfraquecendo a economia nacional e a Petrobras, a serviço do
aprofundamento da desnacionalização do mercado interno e da estrutura
produtiva e de uma política fiscal pró-financeirização. Ademais, as
forças sociais e políticas que estão liderando o apoio ao novo governo,
como os movimentos liberais que desapareceram das ruas quando haveria
ainda muita irregularidade em Brasília a ser objeto de repúdio, não
estão vestindo a camisa republicana e universal do combate à corrupção.
Várias
petroleiras do mundo estão em dificuldade, devido à abismal queda do
preço internacional do barril de petróleo, entre outros motivos, devido à
elevada e mais barata produção de xisto nos EUA. No Brasil, os preços
dos combustíveis não caíram tanto nos últimos dois anos, pois a estatal
tem mecanismos para administrá-los. A produção da Petrobras inclusive
aumentou em 2015 e, em relação ao pré-sal, passamos a produzir esse ano,
apenas uma década após sua descoberta, um milhão de barris por dia.
Outro problema foi o impacto da desvalorização cambial sobre a dívida da
empresa em moeda nacional.
Por outro lado, o modo politizado e
irresponsável de encaminhamento e divulgação do combate às
irregularidades na Petrobras pela aliança Lava Jato-grande mídia
prejudicou a imagem pública da companhia, servindo aos interesses dos
que, sob o pretexto de incentivar que seja jogada fora a água suja do
banho (corrupção), querem mesmo, na verdade, se apropriar do nobre bebê,
para interromper o protagonismo nacionalista e desenvolvimentista da
estatal e vesti-lo com a indumentária financista de Wall Street.
A
palavra de ordem da gestão neoliberal das corporações é “todo poder aos
acionistas, aos investidores”. Essa mentalidade rentista e imediatista e
os interesses a ela correspondentes não aceitam que o governo federal,
na condição de acionista controlador da maior empresa brasileira,
procure administrá-la não apenas sob a lógica de mercado, mas também
pelo enfoque estratégico, estimulando a industrialização em toda a
cadeia produtiva de petróleo e gás, através da política industrial de
conteúdo local. A condução antidesenvolvimentista e histericamente
liberal da Lava Jato também prejudicou as grandes empreiteiras
nacionais, abrindo espaço político e de mercado para a abertura desse
setor de atividade.
O novo presidente da Petrobras, Pedro Parente,
é tucano. Já na cerimônia de sua posse, no início de junho, além de
criticar a política de conteúdo local, defendeu a revisão urgente, pela
Câmara dos Deputados, da Lei 12.351/2010, do pré-sal, aprovada no
governo Lula, que instituiu o regime de partilha. Em fevereiro, o
Senado, por iniciativa legislativa do então senador José Serra (PSDB) e
substitutivo de Romero Jucá (PMDB), aprovou a não obrigatoriedade de que
a Petrobras seja a operadora única do pré-sal, participando com pelo
menos 30% em todos os consórcios de exploração. Jucá, como se sabe,
abandonou o posto de ministro do Planejamento do governo interino por
ter sido vazada gravação de diálogo seu com Sérgio Machado, ex-diretor
da Transpetro (subsidiária da Petrobras e maior processadora de gás
natural no país) por indicação do PMDB e investigado pela Lava Jato. Na
conversa, Jucá associou a troca do governo Dilma pelo de Michel Temer
(PMDB), caracterizado por ele como aliadíssimo de Eduardo Cunha (PMDB), a
um grande acordo nacional, envolvendo inclusive o STF, para conter o
avanço da Lava Jato.
Na coalizão neoliberal, o necessário combate à
corrupção está inserido em uma manipulação dessa bandeira para derrotar
adversários ou inimigos, poupar aliados e reverter o padrão
social-desenvolvimentista de capitalismo que os governos federais do PT
procuraram implementar, apesar das limitações.
Após a venda
recente, pela Petrobras, de sua participação em 66% no campo Carcará de
pré-sal, na bacia de Santos, para a norueguesa Statoil, inclusive por
apenas US$ 2,5 bilhões, lideranças da Fundação Única dos Petroleiros
estão chamando o presidente interino de “MiShell Temer”, fiador da
política governamental de entrega da riqueza natural do país às
petroleiras multinacionais. Esse campo foi leiloado em 1999 e está fora
da lei da partilha. Sua venda faz parte da política de desinvestimento
da companhia, que está endividada. O horizonte do governo é a
desnacionalização do pré-sal.
Enfim, um governo não eleito, cuja
investidura alimenta uma séria querela jurídico-política sobre sua
legitimidade institucional, avança na transferência de um símbolo
natural da soberania nacional e de um recurso econômico estratégico a
grupos estrangeiros. Nesse contexto, hoje não dá efetivamente para dizer
que a democracia e o petróleo são nossos, da maioria dos eleitores que
elegeram a presidente e da nação, entendida como uma comunidade autônoma
em relação a outras congêneres situadas em territórios alhures. São de
quem? Da coalizão neoliberal, defensora de um modelo de capitalismo que,
no mundo todo, tem gerado baixo crescimento e aumento das
desigualdades.
* Marcus Ianoni é cientista político, professor
do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense
(UFF) e pesquisador das relações entre Política e Economia.
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