Por Sebastião Nunes
Houve uma época, quando eu amadurecia intelectualmente, em que a
filosofia dominante era o existencialismo, especialmente o
existencialismo ateu. Era de um radicalismo estonteante ou, como
escreveu Simone de Beauvoir, “todos somos responsáveis por tudo perante
todos”. Falando da missão de quem escreve, Sartre, seu companheiro,
disse: “A função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o
mundo e considerar-se inocente diante dele”. Em outras palavras, na
opinião desses inimigos mortais do individualismo irresponsável,
“ninguém é inocente”.
Esta expressão, “ninguém é inocente”, tornou-se paradigmática na
minha geração, pelo menos para aqueles que se consideravam comprometidos
com a ética e o futuro da humanidade. Muitos abdicaram, recuaram,
fizeram-se surdos, cegos, mudos e foram ser felizes em outras praias,
pois é extremamente difícil manter-se coerente. Foi de sua liberdade, da
liberdade radical de dizer, escrever e agir, que Sartre, Simone e Camus
nunca abriram mão, para o bem ou para o mal.
O CAVALEIRO DA ESPERANÇA
“Kierkegaard é de longe o mais profundo pensador do
século XIX”, curvou-se diante do dinamarquês um dos expoentes do
pensamento filosófico do século XX, o austríaco Ludwig Wittgenstein.
Filho de uma das famílias mais ricas da Áustria, Wittgenstein podia se
dar ao luxo de abandonar a filosofia e se tornar jardineiro, como chegou
a fazer depois de publicar seu extraordinário “Tractatus
Logico-Philosophicus”, título assim mesmo, em latim, livro com que
pretendeu resolver, em definitivo, todos os problemas da filosofia.
Pretensão absurda? Nem tanto. Outro dos mais notáveis filósofos do
século, Bertrand Russel, diante de carismático, polêmico, atrevido e
genial Wittgenstein, chegou a considerá-lo seu herdeiro. Cansado de se
embrenhar pelos inextrincáveis labirintos da abstração, Russel ansiava
por encerrar seu trabalho, de preferência passando o bastão a um
sucessor digno de seu talento.
Mas Russel amava Wittgenstein que amava Kierkegaard que
amava Regine Olsen, que não era filósofa e não se casou com nenhum
deles. Como Kafka, que escreveu quase toda a sua obra para demonstrar ao
pai não ser de todo inútil, Kierkegaard escreveu quase tudo para
explicar a Regine que a merecia. Em ambos, o criador de absurdos
literários e o pensador da radicalidade, faltava um quase nada, apenas
coragem de sair da vida de papel para o mundo real. Bem ao contrário de
Sartre que, já velho, ainda distribuía panfletos na rua, entre maoístas
parisienses, e cujo lema sempre foi “O homem está condenado a ser
livre”.
BOTANDO A MÃO NO FOGO
Também para Kierkegaard o homem era radicalmente livre. E
o homem mais livre que já existiu foi Abraão, o “herói trágico” ou, em
outros termos, o “cavaleiro da fé”. Tinha liberdade absoluta para
decidir o que fazer, senhor da vida e da morte e, no entanto, preso à fé
no Deus que lhe prometera que “todas as nações da terra serão
abençoadas em sua posteridade”. Paradoxalmente, era o menos livre de
todos os homens, pois se havia comprometido pela fé. Se Deus lhe
prometera imensa descendência, não havia como pôr em dúvida a ordem de
Deus: “Tome o teu filho, o teu único filho, aquele que amas, Isaac; vai
com ele ao país de Morija e, ali, oferece-o em holocausto sobre uma das
montanhas que te indicarei”.
Abraão estava velho, Isaac era o herdeiro, filho de sua
velhice, a viagem durou quatro dias e, com tudo isto, em momento algum
Abraão duvidou, nem mesmo quando ouviu: “teu único filho, aquele que
amas...”.
Essa fé desesperada era o que maravilhava o filósofo. Em
sua fé absurda, Abraão esteve absolutamente só, durante os quatro dias
de viagem, ele, a mula e o menino, buscando a montanha, preparando-se
para sacrificar o filho em nome da fé, ou seja, em nome do compromisso
que assumira com seu Deus, que lhe falava.
DE ABRAÃO AO NOSSO TEMPO
Todos conhecem o final da história. No momento em que se
preparava para sacrificar o filho, quando ergue a faca, eis que surge um
cordeiro para ser imolado – salva-se a fé, e com ela o compromisso da
fé.
“Temor e Tremor”, o livro de Kierkegaard sobre o
“cavaleiro da esperança”, narra apenas isto: a absoluta confiança de
Abraão na promessa de Deus, de que “todas as nações da terra seriam
abençoadas em sua posteridade”. É uma breve reflexão – breve em termos
filosóficos, pois todos os filósoficos adoram imensos calhamaços,
inclusive os desmedidos arrazoados do próprio Sartre – sobre liberdade,
solidão e fé. Tornando-se absolutamente responsável pelo próprio
destino, Abraão também se torna absolutamente solitário. Ao mesmo tempo,
e nas palavras de Kierkegaard, “por ele se viu no mundo o que era ter
esperança”. Ele se colocou, pela fé, acima do desespero e dos outros
homens. Não sendo inocente, já que aceitou sacrificar o filho, se tornou
responsável por tudo perante todos. Kierkegaard assinou o livro com um
pseudônimo definitivo: Johannes de Silentio.
Os existencialistas reivindicavam, como precursores,
Schopenhauer, Nietzsche e Dostoievski, além de Kierkegaard. Todos deram
sua contribuição na ambiciosa tarefa de pensar o sentido ético da vida
humana. Se estivessem vivos, seria com desesperançada desconfiança que
veriam os rumos que tomamos. Se o homem está condenado à liberdade,
conforme seus princípios básicos, essa liberdade implica
responsabilidade total e inabaláveis princípios éticos.
Mas como pensar em ética e responsabilidade, quando a
liberdade existencialista foi trocada pela individualista, absolutamente
irresponsável, egoísta e predatória? Para o bem ou para o mal, cada
época tem a liberdade – e os homens – que merece.
Ilustração: Intervenção sobre “O sacrifício de Isaac”, de Caravaggio
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