Nunca o nosso mundo teve ao seu dispor tanta comunicação. E nunca foi tão dramática a nossa solidão. Nunca houve tanta estrada. E nunca nos visitamos tão pouco
Mia Couto*, Portal Raizes
Nunca o nosso mundo teve ao seu dispor tanta
comunicação. E nunca foi tão dramática a nossa solidão. Nunca houve
tanta estrada. E nunca nos visitamos tão pouco.
Vivemos hoje uma atabalhoada preocupação em
exibirmos falsos sinais de riqueza. Criou-se a ideia de que o estatuto
do cidadão nasce dos sinais que o diferenciam dos mais pobres.
Existem várias formas de pobreza. E há, entre
todas, uma que escapa às estatísticas e aos indicadores numéricos: é a
penúria da nossa reflexão sobre nós mesmos. Falo da dificuldade de nos
pensarmos como sujeitos históricos, como lugar de partida e como destino
de um sonho.
A modernidade não é uma porta apenas feita pelos
outros. Nós somos também carpinteiros dessa construção e só nos
interessa entrar numa modernidade de que sejamos também construtores.
No início, viajávamos porque líamos e escutávamos,
deambulando em barcos de papel, em asas feitas de antigas vozes. Hoje
viajamos para sermos escritos, para sermos palavras de um texto maior
que é a nossa própria vida.
A palavra “ler” vem do latim “legere” e queria
dizer “escolher”. Era isso que faziam os antigos romanos quando, por
exemplo, selecionavam entre os grãos de cereais. A raiz etimológica está
bem patente no nosso termo “eleger”. Ora o drama é que hoje estamos
deixando de escolher. Estamos deixando de ler no sentido da raiz da
palavra. Cada vez mais somos escolhidos, cada vez mais somos objecto de
apelos que nos convertem em números, em estatísticas de mercado.
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Todos nós convivemos com diversos eus, diversas
pessoas reclamando a nossa identidade. O segredo é permitir que as
escolhas que a vida nos impõe não nos obriguem a matar a nossa
diversidade interior. O melhor nesta vida é poder escolher, mas o mais
triste é ter mesmo que escolher.
É verdade que as novas tecnologias não costuram os
buracos da nossa roupa interior, mas elas ajudam a alterar as redes
sociais em que nos fabricamos.
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