O locutor da Globo Galvão Bueno é o homem certo para o lugar certo. Os nadadores preparavam-se para a largada na piscina do Parque Olímpico da Rio 2016 quando a árbitra parou tudo. Em meio ao silêncio exigido para a concentração dos atletas alguém não parava de falar, alheio ao momento: era Galvão Bueno, que mereceu ao vivo uma reprimenda de um comentarista do canal inglês BBC: “o colega perto de mim precisa calar a boca”, disse. Bueno é o homem certo, com sua verborragia patriótica cultivada nos tempos dos bons resultados brasileiros no futebol e F1. Os bons resultados acabaram, mas o cacoete ficou. Agora tornou-se sintoma do tautismo (autismo + tautologia) crônico de uma emissora que de tão centrada nela mesma começa a contaminar seus jornalistas, apresentadores e artistas. Em muitos momentos o monopólio político e econômico da Globo parece fazer seus profissionais terem lapsos de memória sobre a existência de alguma coisa de real do outro lado dos muros da emissora.
Os leitores do
Cinegnose estão acostumados com nossa incessante busca por sintomas sociais e
culturais em produtos fílmicos e audiovisuais. Cinema, eventos políticos,
telejornalismo, teledramaturgia, publicidade e marketing são espaços ideais
para a manifestação não só do espírito de época, mas também de atos falhos que
revelam a ideologia de seus emissores.
Em postagem
anterior discutíamos como o início da cobertura das Olimpíadas Rio 2016 pela
hegemônica TV Globo dava o tom pelo qual os telespectadores deveriam aguardar:
o tautismo (autismo + tautologia) – neologismo que designa o patológico
“fechamento operacional” onde um sistema (TV, jornal etc.) fecha-se em si mesmo
de forma que os dados do mundo exterior são traduzidos por uma imagem que o
sistema faz de si mesmo – sobre esse conceito clique aqui e aqui.
E qual a imagem
que o sistema televisivo hipertrofiado da Globo faz de si mesmo? De que os
eventos só acontecem para que possam ser transmitidos e encaixados na sua grade
de programação.
Se o antigo
Repórter Esso, de outros tempo do rádio e televisão brasileiras, dizia que
queria ser “testemunha ocular da História”, agora para a Globo a História só
aconteceu porque ela assim mostrou.
“Precisa calar a boca...”
Um sintoma desse
tautismo crônico da Globo foi o inacreditável episódio de atraso no início da
prova dos 200 metros do nado borboleta: a juíza suspendeu o início por falta de
silêncio na arena. E segundo o canal inglês BBC a voz alta era do locutor
Galvão Bueno. Para o comentarista britânico, Bueno não parava de falar.
“O colega perto
de mim precisa calar a boca durante a largada. Desculpem, todo mundo está aqui
quieto durante a largada, a árbitra fez a coisa certa”, disse o comentarista
Adrian Moorhouse da BBC – assista ao vídeo abaixo:
Conhecido pelas
narrações de Fórmula 1 e futebol, Galvão Bueno vem se desdobrando nas
Olimpíadas Rio 2016 em vários esportes. Nessa terça-feira foi escalado pela
Globo para as provas de natação, dentre elas as duas medalhas de ouro de
Michael Phelps.
Não importa o
esporte, a narração é sempre a mesma: apoplética, congestionada, fala
compulsiva e indiferente se os acontecimentos contradizem seu discurso. Quando
contrariado, a narração converte-se num piscar de olhos em comentários e
supostas análises, deixando muitas vezes perplexo o comentarista escalado no
momento que tenta oferecer um viés mais técnico ao espectador.
Enquanto as
narrações nos canais fechados SporTV se caracterizam pela sobriedade e análises
mais técnicas, é na TV aberta (onde a Globo ostenta todo o Poder e hegemonia
nos exercícios tautistas com muita metalinguagem e auto-referência) que o
estilo Galvão Bueno serve melhor à patologia crônica do autismo global.
Delírio taquilático e a ansiedade do silêncio
Simplesmente ele não para de falar como se a
transmissão fosse mais importante do que o próprio evento. Para Galvão Bueno,
parece que se houver alguma interrupção na sua fala delirante o evento
desaparecerá no ar.
Nele poderíamos
encontrar facilmente sintomas psicóticos do chamado “sujeito delirante
taquilático” ou “hipercinético”: na aceleração da fala o sujeito é tomado pela
ansiedade de não ser assaltado pelo silêncio – certamente essa aceleração leva
a gafes metonímicas como, por exemplo, quando anunciou o gol do Santo André
como fosse do São Caetano na final da Copa do Brasil em 2004; ou quando
confundiu o nome do tenor Placido Domingo com Julio Iglesias quando visitava os
boxes da F1 em 2006.
Mas acreditamos
que não seja apenas um sintoma pessoal. De fato, Galvão Bueno é a pessoa certa
no lugar certo. Dessa maneira, o seu discurso apoplético é também sintoma desse
próprio lugar certo no qual se encontra: o sistema tautista global que busca
auto-organização e fechamento em relação ao mundo exterior por dois motivos:
(a) décadas de hegemonia e ingerências na política brasileira acabaram criando
uma imagem de si mesma de epicentro de todos os eventos que ocorrem no País e
no mundo; (b) a queda de audiência pela concorrência das tecnologias de
convergência e Internet faz cada produto ou cobertura de evento da emissora relações públicas de si mesmo.
Se toda
ideologia teve o seu momento de verdade, pelo menos no passado o histrionismo
de Galvão Bueno tinha algum sentido: o patriotismo. A competitividade dos
brasileiros na Fórmula 1 com Nelson Piquet e Ayrton Senna e as seleções brasileiras
das gerações de craques das eras Romário e Ronaldo eram um pretexto para a fala
compulsiva do narrador.
Do patriotismo ao tautismo
Porém, na medida
em que as vitórias brasileiras escassearam nesses esportes (e a pérola “a coisa
já esteve melhor para o Brasil” solta no fracasso da seleção na Copa da África
do Sul foi emblemática) sua voz deixou de emoldurar um suposto patriotismo para
se transformar na voz do monopólio da TV Globo.
Não é à toa que
sempre fez questão de demonstrar intimidade com os protagonistas dos eventos
que narrava: Ayrton Senna, Nelson Piquet, Zico, Gustavo Kuerten, Hortência,
Neymar, Anderson Silva etc. Assim como a própria emissora, Galvão Bueno deve
imaginar que esses nomes só existiram na história esportiva porque ele narrou
os seus feitos.
Na literatura
recente em Teoria da Comunicação, pesquisadores como Umberto Eco, Jean
Baudrillard ou Lucien Sfez demonstraram como as mídias abandonaram o real para
representa-lo através de simulacros da realidade. A televisão não pode se limitar
a ser “testemunha ocular da História”. Ela deve fazer a própria História,
produzindo, encenando ou roteirizando os eventos que transmite.
Tautismo e monopólio midiático
Mas esses
pesquisadores estudaram tendências midiáticas em cenários onde os meios de
comunicação eram mais diversificados. No caso brasileiro há um agravante: o
monopólio midiático das Organizações Globo.
Apesar dos
traços da metalinguagem e auto-referencialidade serem um traço generalizado da
mídia mundial, pelo menos a imprensa esportiva internacional respeita as
liturgias próprias de cada esporte. Afinal, faz parte do próprio espetáculo que
ela produz, promove e transmite.
Mas no caso
brasileiro, o monopólio e hegemonia da Globo é tamanho que, por razões
políticas, chega a detonar o próprio evento que transmite, como no exemplo da
Copa do Mundo no Brasil, para turbinar a cavalgada anti-Dilma e impeachment.
Portanto, a
logorreia de Galvão Bueno é o irresistível cacoete de uma emissora onde seu
poder político e econômico se tornou tão desmesurado que seus jornalistas,
apresentadores e artistas começam a apresentar sintomas de perda da noção de
que existe alguma coisa chamado realidade do outro lado.
Se Galvão Bueno
é o homem certo para o lugar certo, sua atitude de simplesmente ignorar o silêncio
e concentração exigidos para que os nadadores pudessem ouvir o sinal da largada
é o sintoma da tautista necessidade da Globo em reafirmar seu monopólio
nacional. Tautista, porque deve negar neuroticamente as mudanças econômicas e
tecnológicas ameaçadoras que estão lá no horizonte ameaçando a hegemonia da Globo.
No passado, a
fala compulsiva e ansiosa de Galvão Bueno estava à serviço do patriotismo.
Agora, serve para reforçar o tautismo crônico da emissora.
É também sintoma
de um momento onde o jornalista deixa de ser o repórter dos acontecimentos para
se transformar no protagonista da informação.
PS: Galvão Bueno publicou ontem na sua conta do Instagram uma foto ao lado
do comentarista da BBC junto com um pedido de desculpas. “Errei. Fim do
mimimi”.
Mais um sintoma
tautista: Galvão Bueno dilui o próprio pedido de desculpas com a expressão
pejorativa “mimimi” – usada para ridicularizar alguém que passaria a vida
inteira reclamando. Onomatopeia que imita choro, ladainha ou lamúria.
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