Nestes tempo
de golpe de estado no Brasil as conversas podem ficar muito difíceis.
Amizades podem virar pó de uma hora para outra. Conheço inúmeros casos.
Comigo
também se passou algo parecido. Um amigo – ou ex-amigo, nesta altura –
virou um anti-petista ferrenho, o que é, convenhamos, um direito dele.
Ele já era de direita, o que também é um direito dele. Mas extrapolou.
Acontece que
diante de afirmações como a de que “mas durante os governos de Lula e
Dilma a situação dos pobres melhorou, a miséria diminuiu, o padrão de
vida dos trabalhadores assalariados subiu, etc.”, ele passou a reagir
raivosamente: “é tudo mentira”. “Nada disto aconteceu”.
Um dos
problemas aí é que tal reação chama de mentirosos não só Lula, Dilma, o
PT, os petistas, e eu de quebra, mas também a ONU, a OEA, a OIT, a
UNESCO, a FAO, boa parte da União Europeia, a Itália, que recentemente
adotou um projeto do tipo Bolsa Família, economistas indianos, a OCDE,
além do IBGE, naturalmente, e etc.
O outro problema é que isto é repetido ad nauseam
pelo exército de coxinhas e paneleiras(os) que infesta as ruas e nossos
ouvidos de vez em quando (andam mais discretos, aliás…), além dos
arautos do antipetismo distribuídos pela mídia conservadora, quando não
estão ocupados em obter os vazamentos seletivos de quanta operação seja
urdida por promotores que se arvoram a juízes, juízes que se adoram
promotores e policiais federais que se arvoram a promotores e juízes.
Mutatis mutandis,
isto me lembra o comportamento de gente que até hoje nega o Holocausto,
por exemplo. Ou então a entrevista recente dada pela ex-secretária de
Joseph Goebbels, hoje com 105 anos (!) e a única sobrevivente do círculo
próximo do Führer. Nela, a entrevistada afirma , sobre os crimes
genocidas dos nazistas, que “não sabia de nada”, que só datilografava o
tempo inteiro. A provecta senhora que me desculpe, com todo o respeito,
mas é mais fácil acreditar que ela simplesmente não queria saber de nada
desde sempre. Posto que ela até se recorda do estranho sumiço de amiga
judia. Sé depois da guerra ela ficou sabendo que esta pessoa fora levada
para Auschwitz. O mesmo aconteceu e acontece com gente que até hoje
nega que tenha havido tortura no Brasil durante o regime civil-militar
de 1964. Ou os que o querem de volta, embora haja os que querem que ele
volte com tortura e tudo.
Curioso,
perguntei a um outro amigo meu, psicanalista, como se poderia chamar
esta atitude de negação contumaz da realidade. Ele me disse que há uma
qualificação clássica na psicanálise que se chama de “alucinação
negativa”, em que as pessoas que dela são objetos se negam a ver uma
coisa – até mesmo objetos concretos, por vezes, ou a ouvir algo que não
querem admitir. Pesquisando mais um pouco, deparei com experiências
mostrando que esta “alucinação negativa” pode ser induzida até por
hipnose que, no fundo, é o que a nossa mídia tradicional costuma
praticar, seguindo a orientação famosa daquele mesmo Goebbels acima
lembrado, de se mentir tanto até que a mentira vire verdade. É claro que
é necessário um tipo de consentimento por parte do objeto de tal
manipulação.
Tudo isto
vem na esteira do esforço de aleijar e alijar a esquerda na história não
só futura – mas também do passado. Os governos de esquerda é que são os
responsáveis pelo desarrazoado do mundo e das economias – da brasileira
e da mundial. Eles nada fizeram senão cometer erros e mais erros; tudo
não passou de uma “ilusão”. A “mentira” do meu amigo lá de cima.
O curioso é
que existe também muito intelectual e analista de esquerda que pensa
assim, inclusive aqui na Europa. Pululam os intelectuais que pregam que
tudo o que a esquerda latino-americana, não só a brasileira, fez nos
últimos anos foi só uma ilusão. E que eles, estes intelectuais e
analistas, é que sabem o que nós, os latino-americanos, deveríamos ter
feito, fazer e vir a fazer. Esquecem (será também uma alucinação
negativa?) que aqui na Europa só há dois governos de esquerda: o de
Portugal, com uma frente tripla reunindo o PS, os comunistas e verdes
(hoje um partido só) e o movimento Bloco de Esquerda, e o do Vaticano,
com o Papa mais à esquerda da história da Santa Madre. Nem na Espanha o
Podemos e o PSOE conseguiram se juntar, ao invés de se bicar, para
formar um governo. França, Alemanha, Itália, nem pensar. O governo de
extrema-esquerda na Grécia foi dobrado a golpes de retórica. E aplicou o
programa do Banco Central Europeu mais o Banco Central Alemão e o
chanceler Wolfgang Schäuble, tão mau quanto Meirelles. A esquerda, aqui,
virou um nicho universitário, em 95% dos casos.
Mas eles, os intelectuais europeus, é que sabem o que é melhor para o mundo.
***
Flávio Aguiar nasceu
em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde
atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e
professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária,
ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da
Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999),
publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a
coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel (2012). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário