Algumas
semanas atrás a Datafolha e a Folha de São Paulo publicaram uma
pesquisa de opinião que - para sermos muito educados - poderíamos chamar
de manipulada. No entanto, blogueiros e jornalistas independentes
descobriram que o publicado não reproduzia fielmente os resultados da
pesquisa.
Esta não é a primeira vez que se manipula fatos para montar as
verdades que os donos da mídia querem nos impor. Basta ver a construção
midiática-jurídica do caça às bruxas ao Lula detalhada por Bajonas
Teixeira aqui no Cafezinho para lembrar o quanto isso acontece. Tampouco
é um fenômeno restrito ao Brasil, como os resultados do Brexit, aqui no
Reino Unido, e as iminentes eleições nos Estados Unidos mostram.
Em inglês o termo “post-truth journalism” – que poderia ser traduzido
informalmente como “jornalismo na era da pós-verdade” – é cada vez mais
corrente. Esta expressão descreve a prática jornalística que é
conivente com certas posições políticas ou a falta de investigação ou
verificação dos fatos políticos, seja por questões ideológicas, por pura
preguiça ou inabilidade jornalística.
O descaso do jornalismo contemporâneo com os fatos, e principalmente
com os fatos políticos, é extremamente grave, pois quando a mídia se
baseia em mentiras, reprime ou manipula fatos, ou simplesmente deixa de
checá-los, quem responsabilizará os políticos pelos seus atos, falas e
falhas? Se as pessoas em posição de poder distorcem a verdade e o
jornalismo não apura, o que será do público que não tem outra maneira de
receber informação direta, não tem tempo (e nem vontade) de fazer
pesquisas, e não é especialista?
Na era das redes sociais o jornalismo sério é ainda mais imprescindível.
Se o sonho idealizador da Internet era justamente acabar com a
mediação de supostos profissionais e trazer maior democracia à liberdade
de expressão, onde todos e não somente os colunistas dos grandes meios
podem dar sua opinião, o que de fato se verifica são desdobramentos
complexos em tempos de crescente concorrência num mercado selvagem de
informação.
Não se pode negar que, de fato, a internet trouxe uma certa renovação
dos meios de comunicação, abrindo espaço para blogueiros que, de outra
maneira, teriam que permanecer fieis às redações dos grandes jornais ou
que simplesmente não teriam espaço dentro do restrito mundo da mídia
televisionada ou escrita.
E certamente é verdade que a internet e as redes sociais trouxeram
muitos benefícios, principalmente para nós, cidadãos de países que mal
saíram da ditadura, cujas democracias se mostram ainda frágeis e onde os
principais meios de comunicação continuam nas mãos daquelas mesmas
elites que faziam jornalismo durante a época da mordaça.
Mas para além dos benefícios, as redes sociais trouxeram também
grandes desafios. Um desses está ligado à mercantilização das escolhas, à
oportunidade de consumir exatamente e somente aquilo que queremos e
gostamos - um tanto mais fácil no mundo virtual do que no físico.
Podemos, pois, passar a vida num círculo interminável de episódios de
Friends ou programas de culinária, se assim o desejamos e, um tanto
mais nocivo, podemos também nos rodear com as ideias e ideologias que
nos atraem sem ter que ouvir, ler ou presenciar nada que nos incomode,
nada que nos aborreça e nada que não aceitemos.
E mais, os sites que utilizamos como o Facebook e outros nos ajudam
nesta tarefa de auto-alienação com logaritmos que asseguram que o que
aparece na nossa tela é somente aquilo que os números calculam ser o que
nos interessa, o chamado Filtro de Bolha.
Kathrine Viner, em seu ótimo artigo “Será que a verdade ainda
importa?”, publicado no Guardian e reproduzido no site do Observatório
da Imprensa, cita o caso de auto-alienação involuntária constatado por
Tom Steinberg, fundador de um site chamado MySociety. Tom queria
encontrar pessoas que estivessem felizes com o Brexit. Porém, diz ele,
que apesar de saber que mais de 50% da população britânica votou Brexit,
não conseguiu encontrar estas pessoas na ‘time-line’ do seu Facebook.
Um pouco antes de ler este artigo fiquei chocada ao saber que uma amiga
com visões que considerava parecidas às minhas não só votou Brexit, mas
pior, quando tentou se informar, sua internet só lhe trazia artigos que
exaltavam esta posição. Assim, nada do que ela tinha lido era favorável à
permanência do Reino Unido na União Europeia.
Não é de admirar que assistimos a uma crescente polarização da
sociedade. E essa polarização não se dá só no Brasil e nem mesmo entre
os chamados ‘polos’.
Uma das repercussões do Brexit foi o caos no Partido Trabalhista
Britânico (Labour Party) que hoje está a um passo de rachar, polarizando
um grupo de pessoas que, em teoria, se encontrariam no mesmo espectro
sócio-político. Um fenômeno parecido vimos durante a nomeação de Hillary
Clinton, onde eleitores de Bernie Sanders se recusaram a apoiar
Hillary, apesar da necessidade de derrotar Trump e dos pedidos de
Sanders.
São muitas as teorias que explicam a radicalização da sociedade,
envolvendo várias áreas de conhecimento. Mas sem dúvida, não dá para
deixar de fora a mídia. Infelizmente, o debate sobre a mídia está cheio
de armadilhas, uma delas envolve a liberdade de expressão que nos faz
calar, justamente a nós que nos intitulamos liberais.
Quero deixar muito claro: não estou aqui questionando a liberdade de
expressão, que acho imprescindível. O que questiono é o debate
polarizado e dicotômico desta noção democrática que está nos levando a
um beco sem saída. É precisamente porque a liberdade de expressão nos é
cara que não sabemos como rebater os gritos da grande mídia quando ela
se sente minimamente ameaçada de perder seus privilégios. E quaisquer
tentativas de regulamentar a sua autonomia – ainda que básicas como a
instituição de um conselho regulador que incluísse outros stakeholders
além da própria mídia - são rechaçadas em nome da mesma liberdade de
expressão.
Entretanto, a alardeada ‘liberdade de expressão’ de uns poucos meios
midiáticos poderosos e certos formadores de opinião escolhidos a dedo
não está somente restringindo a liberdade de expressão de outros
sujeitos que não tem a mesma exposição, como também está distorcendo o
que podemos chamar de “objetividade”.
Não acredito que haja uma única realidade na interpretação do mundo
social e, portanto, não acredito na objetividade como conceito
irrefutável. Mas isto não quer dizer que possamos simplesmente ignorar
fatos ou descartar a opinião de especialistas, ou pior, reprimir
informações durante anos sem fim, como parece ser a praxe do jornalismo
brasileiro.
É importante ter um debate muito mais complexo sobre o que significa a
liberdade de expressão em contraposição às inverdades propagadas pela
grande mídia em nome de seus próprios interesses, porque assim como está
a ‘liberdade de expressão’ da grande mídia está ameaçando a verdadeira
liberdade de expressão de muitos sujeitos e a participação de todos na
democracia.
Um debate mais complexo sobre a liberdade de expressão, não quer
dizer que os jornalistas e os meios de comunicação não possam ter suas
opiniões. Aliás, seria muito mais saudável para a democracia se os
jornais brasileiros, especialmente a Folha de São Paulo, manifestassem
suas posições políticas explicitamente em editoriais ou páginas de
opinião, em vez de se esconder atrás de uma falsa imparcialidade. Mas é
importante também saber diferenciar as opiniões, do falso relato dos
fatos, das manipulações, ou da repressão de informação.
Há também uma segunda armadilha que nos imobiliza. Durante um debate
em Londres, Otávio Frias, diretor da Folha de São Paulo, utilizou-se
desta ferramenta. Segundo ele, a mídia pode fazer e dizer o que quiser
porque o público midiático é inteligente suficiente para não ser
manipulado pelas escolhas editoriais.
Essa visão nos imobiliza porque, obviamente, não queremos dividir a
sociedade entre os inteligentes - que sabem criticar a mídia - e os
burros que não sabem. Seria uma visão incompatível com a nossa
perspectiva de uma sociedade de sujeitos capazes, que têm iguais
direitos de participação e direitos de opinião. O temor aqui é que se
aceitarmos a premissa oposta - de que as pessoas são sim manipuladas -
estaríamos abrindo o caminho para aceitar o que a grande mídia vem a
algum tempo nos forçando goela a baixo, caindo na armadilha que Frias
nos colocou: que a ‘falta de educação’ afeta a capacidade das pessoas de
fazerem decisões e de votar, e já que são os menos educados que votam
na esquerda, votam porque são burros.
É importante reconhecer que a mídia nos influencia. De novo,
precisamos trazer mais complexidade para o debate, que não se limita a
uma relação direta entre a falta de educação ou inteligência e a
influência dos meios de comunicação. Somos todos influenciados e todos
críticos. Somos, sobretudo, influenciados nas nossas decisões sobre
assuntos que não nos interessa, ou que não conhecemos, dependendo nestes
momentos da opinião de amigos e outros que consideramos ‘mais bem
informados’, incluindo a mídia.
Para dar um exemplo, digamos que o Arnaldo Jabor faça comentários no
Jornal Nacional sobre um discurso feito por um político. Primeiro
precisamos ter interesse no fato, depois querer ir além para comparar os
comentários com o discurso do político e o contexto no qual este se
deu.
É só nesta fase que vamos acionar a nossa capacidade crítica para
saber se os comentários de Jabor correspondem à realidade do discurso. E
ainda nem chegamos aos fatos! Para isso, vamos necessitar de mais
comparações: a dos comentários de Jabor com a realidade do discurso e
dos fatos, que podem ser identificados pelo conhecimento direto das
coisas (digamos, para ficar num exemplo comum, um beneficiário do Bolsa
Família, que tem um conhecimento – não podemos esquecer – limitado
àquela realidade pessoal) ou através do conhecimento científico.
Todos nós somos vulneráveis à influência, especialmente quando as
táticas utilizadas pela mídia, seja deliberadamente, seja por falta de
experiência e compreensão da complexidade da realidade midiática, são
injustas. Os jornalistas têm nas mãos informação privilegiada. São eles
que escolhem as pautas. São eles que interpretam uma entrevista, um
discurso ou um documento para nos dar um resumo fácil, são eles que
escolhem os termos do debate.
Para dar um exemplo fora do Brasil, durante os debates do Brexit as
visões da maioria dos economistas a favor da permanência na União
Europeia foram contrapostas com a visão de um ou dois economistas
contra, sem que as pessoas se atentassem à falta de proporcionalidade.
Quando questionados sobre esta disparidade, os políticos a favor do
Brexit, como o ex-Ministro da Justiça Michael Gove, simplesmente
argumentavam que “estávamos todos cansados das opiniões dos
especialistas”.
A tão louvada “imparcialidade” da BBC também causou problemas, já que
esta corporação se achou cumpridora de seu dever simplesmente por ter
dado espaço a ambas as partes sem questionar a veracidade ou
credibilidade das informações ou fontes.
Em nome da ‘imparcialidade’ membros de think-tanks anti-imigração
debatiam com acadêmicos especializados sem que as pessoas soubessem que
os think-tanks existem justamente para promover a visão de certos grupos
de interesse, pondo a ‘objetividade’ dos fatos em segundo plano em nome
da ‘imparcialidade’, representada pelo tempo dado a cada lado.
Um estudo feito por acadêmicos da Universidade de Loughborough,
Inglaterra, mostrou que as preocupações e interesses de parte da
população e, especialmente da esquerda, foram deixados de lado para dar
maior espaço ao ‘equilíbrio’ de visões entre os grandes políticos do
Partido Conservador, porque eram eles que estavam divididos sobre a
União Europeia.
Ficaram fora do debate questões como o meio-ambiente, direitos
trabalhistas e os efeitos do Brexit no custo de vida, todas questões de
interesse direto dos cidadãos. Segundo o estudo, os debates
concentraram-se nos efeitos para o mercado financeiro, de pouco
interesse público, e apontado por muitos como o culpado pela crise.
Não surpreende, portanto, que muitos não se importaram com as consequências que o Brexit traria.
Outro estudo mostrou que 75% das estatísticas apresentadas não foram
sequer analizadas pelos jornalistas, mas foram simplesmente reproduzidas
sem questionamentos ou contextualização.
Não é de surpreender que o público tenha ficado “confuso” (somente um
terço dos eleitores se achavam bem informados antes do referendo),
especialmente quando se buscava na BBC – a maior fonte de confiança e
informação no Reino Unido – a elucidação dos fatos, respostas claras. Na
verdade, o que se viu foi uma cacofonia que contrastava políticos com
especialistas e celebridades com grupos de interesse.
Há muitas razões pelo caos que vivemos neste começo do século XXI e
são distintos os motivos pelos desencadeamentos chocantes da política
brasileira.
Os protestos a favor e contra o Governo Dilma deixaram claro que boa
parte da culpa recai na grande mídia, haja visto os ataques à Rede Globo
e os clamores e a consternação com a falta de democratização da mídia
em 13 anos de governo PT. Eventos globais nos mostram também que esta
questão não se restringe à esfera nacional.
É premente promover um debate muito mais complexo sobre a mídia e seu
papel na manipulação da política. Isso se faz necessário até mesmo pela
sobrevivência da própria democracia. Mas também para que possamos ter
debates políticos mais equitativos com a participação de vozes que são
deixadas à margem. Isso não é possível sem acesso à informação de
qualidade, para que nós, não-especialistas, possamos também participar e
para que não nos fechemos em guetos virtuais com consequências ainda
desconhecidas.
A manipulação dos fatos, principalmente por corporações poderosas,
não pode ser considerada liberdade de expressão, é necessário encontrar
uma maneira democrática de lidar com este impasse. Infelizmente a
expectativa de que a Internet e as redes sociais seriam capazes de
corrigir a rota da democratização da informação não se concretizou, elas
também estão tomadas por interesses corporativos.
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