Empoderado pela Constituição de 1988 para defender cidadania,
órgão reduz-se ao papel de proteger policiais violentos, defender moral
conservadora. Sua última pataquada: esdrúxulas “10 Medidas” contra
corrupção
Por Brenno Tardelli, no Justificando
A única consequência possível de um povo que vibra com sangue e ódio é
o adoecimento de suas instituições. Uma delas é o Ministério Público, o
qual, em tese, fala pela sociedade brasileira supercampeã em
desigualdade social, discriminação racial, de gênero e outras mais
variadas formas.
Como porta-voz dessa sociedade nas relações processuais, o MP tem
prestado um excelente serviço em todos escalões – de Cabrobó até
Brasília, o posicionamento da instituição caminha no sentido de ser o
mais reacionário possível, inclusive em respostas exigidas nos concursos
para ingresso na carreira [1].
Não são raras as vezes que o Ministério Público opta pelo senso comum
que repudia a diferença. Um exemplo paradigmático foi quando, no
julgamento da descriminalização das drogas, o chefe da instituição
Rodrigo Janot naturalizou o chorume de comentários na rede social e foi
além de todos que se posicionaram contra: passou a inventar dados.
Disse, entre outras desinformações, que 90% das pessoas que fumam
maconha se viciam; não satisfeito, segundo ele, basta fumar uma vez para
que a pessoa se torne dependente química. Parece brincadeira de péssimo
gosto, mas foi o argumento encontrado pela autoridade máxima da
instiuição.
Quando a desinformação e autoritarismo rendem aplausos, as
prioridades mudam. Em tempos de chacina de 19 pessoas pela polícia, o
ouvidor da corporação paulista do Estado elencou alguns motivos para que
a PM assassinasse tanta gente com tamanha naturalidade. Um deles:
policiais acusados de matarem são sistematicamente alvos de pedidos de absolvição pelo Ministério Público. A mesma conclusão foi da Human Rights Watch, a qual analisou a atuação policial no Rio de Janeiro
e percebeu que “há má vontade do Ministério Público em investigar esses
casos e que normalmente as investigações só avançam quando há interesse
social e pressão por parte da mídia”
O Delegado de Polícia Orlando Zaccone percebeu a mesma coisa e foi na sua tese de Doutorado pesquisar como
promotores e promotoras fundamentavam o pedido de arquivamento de casos
em que quem está no banco dos réus não é um dos p’s (pobre, preto e
puta), mas sim um policial. Em entrevista ao Justificando, ele
esclareceu, basicamente, os porquês dessa benevolência:
O fundamento basicamente tem a grande
pergunta do auto de resistência: não como a polícia agiu, mas quem ela
matou. Então, completada a figura do inimigo, isto é, o traficante de
drogas, e esse fato ocorrendo dentro de favelas, de guetos, isso é
colocado na escrita dos promotores de justiça como elementos a
justificar a morte.
Então é o seguinte: o Ministério Público é benevolente apenas e
tão-somente com policiais militares, pois entende que por trás de cada
assassinato há algo que o justifique, ou, ainda que não haja, “matar
bandido” é necessário. Uma das premissas fascistas é o arbítrio e a
naturalidade com as quais as instituições lidam com a violação maciça de
direitos humanos, em especial, se o alvo for um inimigo público. E em
um país desigual e racista, não há inimigo maior do que o jovem negro da
periferia.
Se esses jovens não são violados pela omissão do Ministério Público
no controle da polícia que mais mata no mundo, são enviados para nossos
presídios, a masmorra contemporânea, muito por conta de uma lei de
drogas racista, cuja principal razão de existir é encarcerá-los, sob
o protagonismo do Ministério Público de acusar e brigar pela prisão a
todo custo, contra qualquer forma de liberdade.
Pela unidade da nação, que entrega sua liberdade em nome de um bem
maior, a existência de um inimigo interno é a melhor coisa que uma
instituição que descambou para o fascismo poderia desejar. Atualmente,
além do jovem pobre, o inimigo atende pelo nome de político corrupto.
O termo é uma pegadinha, na verdade. Não são corruptos todos
os políticos que percebem uma vantagem financeira indevida, mas
especificamente políticos de um determinado partido – o PT. É curioso
que o partidarismo do MP seja sempre rebatido por analistas simpáticos à
instituição toda vez que um cacique do PSDB sofre um processo
judicial. Tá vendo? – desafiam. Para eles, digo que falta o
recorte de classe na análise: promotores e promotoras de justiça vêm de
famílias elitizadas, além de perceberem um salário de classe média alta.
São pessoas que reproduzem a opinião política majoritária na elite
econômica, filiada no país ao PSDB.
Por isso promotores são tão vorazes contra “corruptos” do PT e
políticos de demais partidos que representem a imagem e o voto do pobre,
do evangélico, do incauto; em parceria com a magistratura, que sofre do mesmo mal, conseguem a liminar para prejudicar os planos do partido em um dia (alguém lembra do pedido de prisão baseado em Marx e Hegel?). Contudo, quando
um helicóptero cheio de cocaína é descoberto, bem, aí não acontece nada
mesmo – há outras razões para o partidarismo, além do recorte de
classe. Processo em face de tucanos rende menos mídia e menos tapinha nas costas nas confraternizações, por exemplo.
Então está feito o disclaimer. Político corrupto é uma
categoria bem específica, mas é capaz de “unir” o país a ponto de
milhões de pessoas ocuparem as ruas nas mais variadas cidades e
aplaudirem quem está combatendo esse inimigo. No caso do Judiciário,
Sérgio Moro e os Procuradores do Ministério Público Federal ganharam
tamanho empoderamento e capital político a ponto de reunir duas milhões de assinaturas pelas 10 medidas contra a corrupção.
Um pouco diferente da batalha contra o jovem periférico, a guerra
contra a corrupção esconde outra motivação preocupante: o sequestro da
política pelo poder Judiciário – entendidos nesse contexto como
magistratura e ministério público. A Judicialização da política é ainda
mais preocupante quando os juristas não escondem uma preferência partidária, muito menos o gosto agridoce do poder.
Voltando, 10 medidas contra a corrupção é, de fato, um ótimo nome
para um projeto de lei. Quem seria oposição a 10 medidas contra a
corrupção? O Procurador que percorre o país na defesa delas é bem
arrumado, tem gel no cabelo penteado para o lado e sorriso bobo.
Verdadeiro menino bom. Ocorre que por trás de tanta bondade, reside um
projeto de lei que rebaixa o Habeas Corpus, legaliza prova ilícita,
reduz a prescrição, cria crimes cuja prova deve ser feita pelo réu e
demais arbítrios que destroem a Constituição Federal. A crítica não é
apenas a Deltan Dallagnol, mas sim, a toda carreira, ante o simbolismo e
representatividade de sua atuação.
“Contra o político corrupto vale tudo, o que não aguentamos mais é impunidade”
– dirá o mantra da nação, empunhando suas bandeiras por um Brasil
melhor contra-tudo-que-está-aí. Todavia, o procurador de sorriso bobo e o
Ministério Público são incapazes de fazer, por terem submergido ao
fascismo, a constatação de que estamos no pódio de países que mais
prendem no mundo. Impunidade aqui é piada e qualquer projeto, qualquer
um mesmo, que venha a arrancar mais garantias das pessoas, endurecer
mais uma instituição já autoritária e empoderada, vai piorar o que já
está péssimo. Vai prender o político corrupto? Vai, mas vai prender
muito o jovem pobre também – fora que, convenhamos, violar a
Constituição para cumprir a lei é um contrassenso tão grande que não
vale nem adentrar no assunto.
Tatue na testa para não esquecer: quem vai pagar essa conta de
oba-oba contra a corrupção é o pobre, o negro, o jovem, a mulher, o
político corrupto, o honesto, ou quem mais não os agrade. Por isso,
muita gente séria tem se levantado contra a perda dos direitos e
garantias individuais, pela Constituição e se opondo a olhar no cárcere
solução para o que quer que seja. É a lógica do anti-punitivismo, que,
infelizmente, não vende jornal, nem passa às 20h na tela da Globo. Para
quem quiser conhecer a opinião de renomados estudiosos de todo país
desconstruindo, medida a medida, esse absurdo de marketing
institucional, sugiro a leitura do boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.
Pelos aplausos, poder de investigar e serem o salva-guarda da nação, o
MP rebaixa o Estado de Direito no país – já tão baixo. Para quem ainda
não entendeu, o problema não é ser contra ou a favor da corrupção –
acredito que é até tosco imaginar alguém a favor. O cenário complica
quando alguém, ou alguma instituição, acredita ser a personificação da
moral e da ética, quando, a bem da verdade, é só a personificação
do fascismo mesmo.
Brenno Tardelli é diretor de redação do Justificando
—
[1] Há exceções de promotores e promotoras compromissados com a
Constituição Federal. Ocorre que, além de serem cada vez mais raros, são
perseguidas dentro da própria carreira e servem como prova de que a
regra é outra, muito mais sórdida.
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