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terça-feira, 23 de agosto de 2016

A internet e as artimanhas do pensamento fácil, por Fran Alavina.


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“Pensamento fácil”, que ameaça dominar as redes sociais, é o modo difuso como raciocina o indivíduo deste começo de século. É a renúncia antecipada — e rancorosa — a qualquer complexidade. É, por isso mesmo, muito mais conformista que revolucionário
Por Fran Alavina | Imagem: Pawel Kuczynski
Este texto amplia e aprofunda o debate aberto no artigo “Notas sobre a esquerda ruim de internet”. Nasce de um duplo objetivo que, todavia, possui uma única fonte: os comentários, debates e reações que ao texto citado.
O primeiro dos objetivos é reafirmar o núcleo central das primeiras “Notas”, uma vez que tal núcleo foi escamoteado, algumas vezes, por um certo “entusiasmo difuso” que hoje é a aura da tecnologia virtual. Tal entusiasmo não faz acepção de posição política, e nisso está seu caráter perverso. Ele não é nem de direita, nem de esquerda. Pode ser encontrado em bons leitores de Gramsci, ou em indivíduos facistóides. É este entusiasmo febril que impede o começo da crítica, de modo que qualquer um que a inicie é rapidamente taxado de atrasado, retrógado e reacionário. A lógica dessas taxações é clara: quem não adere de “corpo e alma” ao novo não pode ser outra coisa senão que “atrasado”, “retrógrado” e todos os outros adjetivos que possam denotar sentido negativo ao que se considere velho. Este entusiasmo é a expressão mais acabada de uma época que, acossada pelo consumismo, astuto tem uma sede insaciável por tudo que se apresente como novo. Que um mesmo sentimento (o entusiasmo difuso) dirigido a um mesmo objeto (a tecnologia virtual) possa ser encontrado entre conservadores e progressistas, a nós que nos posicionamos à esquerda deveria, no mínimo, ser alvo de uma atenção mais demorada.
Por isso, afirmamos que ao criticarmos os efeitos danosos para a esquerda da aceitação da “naturalização do virtual”, demonstrando uma das lógicas de operação da internet, expressa mais particularmente em suas redes sociais, em nenhum momento propomos que se deva abandonar a internet como lugar de realização do debate político. Em nenhuma parte da argumentação indicamos que devêssemos voltar a datilografar nossos textos, divulgar nossos panfletos e artigos apenas com a ajuda de mimeógrafos, ou ainda nos comunicarmos em código morse. A essência de nossa crítica não estava em apontar o desuso, o abandono dos meios virtuais, mas pensarmos os usos para não cairmos em uma prática mecânica e ingênua. Uma vez que no campo político, sabemos, não há espaço para ingenuidades. Nesse sentido, buscou-se iniciar um debate que possa fomentar uma crítica à esquerda da “naturalização do virtual”.
Todavia, para que esta crítica possa ser feita é preciso reconhecer, em primeiro lugar, que não podemos permanecer em um uso meramente “panfletário” dos meios virtuais. Isto é, imaginar que possamos atuar no virtual sem que essa atuação não retroaja sobre nós. Pois como anteriormente afirmamos, independentemente de nossas posições políticas, o modus operandi do virtual segue à revelia de nossos desejos e vontades. Movimentamos-nos no espaço virtual não segundo o nosso absoluto arbítrio, mas segundo as condições que são previamente dadas e estabelecidas. Em suma, propomos uma prática que seja seguida do pensamento crítico, que não seja cega, que não caia nas armadilhas do espontaneísmo e do voluntarismo. Se é grande nosso afã de lutar e mudar a ordem das coisas, agarrar-se às facilidades oferecidas sem desnudar suas condições não apenas nos será muito custoso, como poderá diminuir nossas capacidades críticas sem as quais não poderemos seguir.
O segundo dos objetivos é dar continuidade ao exercício crítico que iniciamos, desnudando um aspecto que fundamentou parte das reações que se seguiram às Notas I. Tal aspecto é o que podemos denominar (e mesmo denunciar) de pensamento fácil. Todavia, antes que possamos defini-lo mais acuradamente, devemos recordar um elemento que torna propícia a sua expansão.
Com efeito, recorde-se, uma vez mais, que a internet não é um simples meio de comunicação. Seu uso retroage sobre nós, nos modifica, altera nossas capacidades, e se não nos apercebemos destas alterações é justamente porque o discurso da “naturalização do virtual” faz com o virtual nos pareça, de fato, natural. Ademais, esta naturalização difusa do virtual e este retroagir dos seus usos sobre nós é completamente diferente daquilo com ocorria antes com mídias como o rádio e a tv. Nestes últimos, estamos destinados a ser meros receptores; no virtual, porém, tudo se passa em um nível babélico de interação, no qual, em tese, todos têm o mesmo direito de fala, todos podem ser ao mesmo tempo “emissores” e “receptores”. Se todos podem mostrar-se, todos podem ser vistos: se todos podem falar, todos podem ser ouvidos. Ocorre, todavia, que se todos falam ao mesmo tempo, ninguém se ouve; se a visão é chamada a olhar para vários lugares ao mesmo tempo, ela não fixa o olhar em nenhum ponto.
Ora, mas se os pontos dos “emissores” e “receptores” não são mais fixos, porém fluidos, a velocidade e o número de informações e notícias crescem infinitamente. Os fatos não pertencem mais apenas àqueles que os narram, isto é, aos “emissores”, pois para que circulem devem ser replicados, “curtidos”. Assim, o que se narra, se expõe, se faz ver, para o bem ou para mal, pertence a todos aqueles que com um simples click tomam parte de tudo. Se segundo o discurso da liberdade e da criatividade do indivíduo empreendedor “você pode ser seu próprio patrão”, no virtual tem prevalecido uma lógica semelhante, de você estar livre para ver e ouvir o que quiser, e gerar você mesmo a própria informação, de acordo, claro, com sua criatividade. Desse modo, é forçoso admitir que a internet repõe no campo virtual, aos seus usuários, aquilo que a lógica do livre mercado impõe cotidianamente ao mundo.
Ora, a lógica meritocrática neoliberal que diz aos indivíduos que seus sucessos profissionais dependem exclusivamente de seus esforços opera da mesma forma no virtual. Na Babel em que todos podem falar ao mesmo tempo, irão se sobressair aqueles que se fizerem mais vistos, claro que por seus próprios meios. Todavia, como todos podem falar, o número de coisas a serem vistas e ouvidas é infindável, de tal modo que para que se possa tomar parte neste circuito que se quer infinito: tudo deve ser feito segundo o critério da facilidade. Tudo deve ser fácil de ver, de ouvir, de interagir. A time line da rede social será melhor vista, isto quer dizer, mais rapidamente vista, quanto mais fáceis forem as coisas que se apresentem. Nesta faceta, a internet mostra-se muito mais conformista que revolucionária. E todos aqueles que objetivam ganhar e aumentar visibilidade devem assim proceder, não importa a direção política que sigam. É esta mesma lógica que antes se fazia presente nos hábitos alimentares através da expansão das redes de alimentação fast food, e que agora enseja os usos dos aplicativos, estes últimos com as mais diversas utilidades. Tudo deve estar ali, à mão: rápido e fácil.
A lógica da facilidade que antes orbitava nas condições objetivas da existência, como, por exemplo, na alimentação, com a expansão do virtual, o critério da facilidade, par inseparável da rapidez, passa aos bens simbólicos e ao circuito afetivo que lhe sustenta. Acostumando-nos, por meio do hábito excessivo, com o critério da facilidade como algo natural, tendemos a expandir este critério para tudo. Qualquer ato que possa demandar um maior tempo e esforço é, de imediato, rechaçado, posto que se identifica com a encarnação da chatice. Assim, são os nossos desejos, afetos e pensamentos que também devem se acomodar ao critério da rapidez e da facilidade.
Esta acomodação sustenta as alterações que nos lançam diretamente para o vislumbre de um novo tipo de comportamento, um novo modo de ser que deve conformar-se a uma nova ordem das coisas iniciada pela expansão do virtual. Este modo de comportar-se indica que a frequentação do virtual deixa de ser ela mesma um hábito, o hábito de usarmos algo hodiernamente, para se transformar em criadora de novos hábitos. Um destes hábitos é o pensamento fácil. O pensamento fácil é, em primeiro lugar, a nova forma prevalente de interação, com o mundo e consigo mesmo. Sendo forma não é apenas um modo de concepção, mas também de expressão. O pensamento fácil se impõe cada vez mais como o “preço a ser pago” pela velocidade da informação. Ele é uma das características mais exemplares do modo como os usos do virtual retroagem sobre nós. O pensamento fácil é o modo difuso como raciocina o indivíduo deste começo de século. É a renúncia antecipada a qualquer resquício de complexidade. Pois esta última implica demora, esforço, e tais coisas são abominadas como sendo os antônimos absolutos da facilidade. Conformando-se aos tempos informacionais, o pensamento fácil abole a barreira entre o simples e o simplório. Trabalha com definições curtas, como na lógica do estabelecimento do número máximo de caracteres.
Ante o pensamento fácil não pode haver resquícios, resíduos. Tudo deve estar limpo: como uma imagem nítida, sem falhas. Aquilo que demora por se fazer entender é identificado como que possuindo uma falha congênita, por isso mesmo deve ser excluído, marginalizado. É o resto que entreva a interação. Ao se conformar ao informacional, o pensamento fácil demanda um tipo de transparência absoluta dos enunciados, que não devem possuir qualquer opacidade, devem ser privados de qualquer sentido que não seja o aparente. Desse modo, também a linguagem, as capacidades expressivas são alteradas pelo critério da brevidade, que é a regra linguística do pensamento fácil. As palavras cedem lugar às suas abreviações, tendendo a tornar-se apenas siglas. O alargamento da realidade que tanto é atribuído ao virtual, em verdade, é feito de encurtamentos. Aos indivíduos deve-se diminuir qualquer trabalho de elaboração, portanto sua autonomia.
Exemplos do hábito do pensamento fácil não faltam. São os emoticons que nos oferecem um modo pronto da expressão das nossas emoções; é a “# somos todos (…)” que passou a ser nossa forma mais elaborada de nos solidarizarmos, e que por tratar-se de um vínculo identitário imediatista, na maioria das vezes nos impede de reconhecer melhor a causa dos problemas com os quais nos solidarizamos; é a ojeriza aos textos longos, o que antes era um mero parágrafo de seis linhas, hoje chamamos de “textão”. Escrevê-los tornou-se até um ato revolucionário, pois ele é sempre precedido pelo brado: “Vai ter textão, sim!”.
O mundo ao qual nos relega o pensamento fácil é uma realidade de resumos, de bens simbólicos prontos. Todavia, o pensamento fácil, quando desnudado, nos posiciona ante um denso paradoxo: a tecnologia mais complexa é justamente aquela que pode nos impor uma visão simplista, empobrecida da realidade, uma realidade “pré-fabricada”, como as “bolhas” que se formam das relações das redes sociais. Ora, o pensamento fácil enseja algo ainda mais negativo. Por acomodar as coisas à superficialidade simplista, ele contribui para uma visão naturalizada dos problemas histórico-sociais. Estes não são compreendidos conforme a multiplicidade de fatores que os causam, pois o pensamento fácil não consegue acessar contradições. Ele os concebe segundo uma causa única, em geral, aquela que pode reunir maior passionalidade, que pode congregar em torno de si afetos fortes, que não demandem um tempo de elaboração muito longo.
Assim, não é simples coincidência que os grupos mais fascistóides que se mostram sem receios hoje nas ruas tenham antes se articulado bem nas redes sociais. Estas oferecem todas as condições para que uma causa social (a corrupção, por exemplo) possa ser concebida segundo o pensamento fácil. Por isso, a corrupção é sempre apresentada como culpa de uma só pessoa, de um só partido, de uma só ideologia. O pensamento fácil trabalha com generalizações, e por isso é propício à criação dos bodes expiatórios. Veja-se o quanto é comum o achincalhamento da vida privada dos sujeitos. Sabemos que os bodes expiatórios de hoje já foram escolhidos, só não sabemos ainda se serão sacrificados.
Veja-se, pois, quanto o pensamento fácil enseja comportamentos de tipo fascista. Ou se é contra, ou a favor: “simples assim”! Ele, o pensamento fácil, simplifica a realidade, reduzindo a complexidade das coisas aos discursos daqueles que dizem serem as coisas complexas. No varejo das facilidades, os problemas são rapidamente desnudados, para que depois, pela vontade de um, encontrem resolução. Na maioria das vezes, o sujeito escolhido para apontar as resoluções é o medíocre vestido com trajes de herói. Este último é sempre um sujeito de ação, uma vez que a simplicidade do pensamento fácil é usada para impelir uma ação imediata, a ação que põe fim à “bagunça” da multiplicidade, impondo a sobriedade da ordem. A ordem que subjaz em todo pensamento fácil, pois onde tudo está antecipadamente posto em seu devido lugar não há espaço para a desordem, que é confundida com a multiplicidade. Para os desnudamentos dos problemas já temos os intelectuais de youtube. Agora, a massa fascistóide busca o líder. Em verdade, já o encontraram, mas como sua mediocridade oratória é gritante, seu poder de convencimento e de adesão é baixo. Todavia, não se devem subestimar as capacidades do pensamento fácil, pois seu grau de difusão é crescente, expande-se junto com o virtual.
Resta-nos perguntar se nós, que estamos à esquerda, vamos endossar a acomodação ao pensamento fácil, nós que sempre buscamos desmascarar as contradições que perfazem a desigualdade do mundo, portanto que opomos a complexificação à naturalização do âmbito histórico-social. Se também nós nos acomodarmos ao pensamento fácil, cada vez mais perderemos a capacidade de realizar a crítica do presente, pois enquanto nos dão a facilidade como regra, o mundo se complexifica, nos pedindo cada vez mais o forjar de alternativas novas. Estas demandam sempre esforço, pertinácia e tempo. Um tempo que não é o das facilidades e um pensamento que não se contenta com simplismos. O desafio é, então, atuar no virtual sem se deixar seduzir pelo pensamento fácil, nem endossá-lo.

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