O rei está nu: a manipulação para além do escândalo Datafolha
por João Feres Jr
Os estudos sobre comunicação e política identificam várias maneiras
com as quais as mídias podem manipular a opinião pública. Certamente, o
episódio recente da Folha de S. Paulo constitui a mais vil e descarada
delas: a fraude. Não é necessário repetir aqui as informações preciosas
levantadas pela colaboração competente de jornalistas independentes
brasileiros e estrangeiros sobre o caso, que transformaram uma prática
comum de nossos meios de comunicação em escândalo, com consequências
ainda não muito claras para a reputação do jornal e de nossa mídia como
um todo. Quem quiser mais detalhes, veja matéria no blog do jornalista Glenn Greenwald, um dos autores do furo metajornalístico.
O resumo da ópera é simples e deprimente. A Folha de S. Paulo
encomendou para seu instituto de pesquisa, o Datafolha, uma pesquisa
sobre a popularidade dos atuais “presidentes” de nosso país, e
distorceu completamente os resultados publicados na manchete da capa de
sua edição de domingo. Primeiro os jornalistas investigativos implicaram
com o fato de a Folha ter feito uma pergunta maliciosa para os
entrevistados, limitando-os a responder se queriam Temer ou Dilma, e, ao
mesmo tempo, publicado que somente 3% queriam novas eleições, ou seja, a
destituição de ambos, quando pensavam ainda nesse momento que não havia
essa pergunta na pesquisa do Datafolha.
A manipulação era, porém, muito mais profunda. O Datafolha havia
publicado no seu site texto sobre a pesquisa no qual dizia que 60%
queriam novas eleições, mas essa página logo foi retirada do ar. Os
jornalistas notaram que o relatório do instituto não relatava o
resultado de algumas perguntas e ficaram curiosos acerca de sua
natureza. Acabaram por descobrir uma versão primeira do mesmo relatório
com todas as perguntas, inclusive com uma que versava sobre a
possibilidade de novas eleições, opção escolhida por 62% dos
respondentes. Outras perguntas omitidas revelam alta rejeição ao
processo de impeachment (37%) da maneira como está sendo conduzido. Em
suma, o escândalo atinge a reputação da editoria do jornal e também do
instituto, ainda que sua diretora tenha se esforçado para jogar toda
culpa na Folha. Ele mostra, entre outras coisas, como na empresa
familiar dos Frias até o instituto de pesquisa é manietado para cumprir à
risca os desígnios políticos dos patrões.
Mas a corrupção diária da opinião pública feita pela Folha não se
limita ao caso deste escândalo. Gostaria de chamar atenção aqui para
outros aspectos da cobertura recente que funcionam como complemento à
interpretação fraudulenta dos resultados da pesquisa. Estou me referindo
ao agendamento tendencioso do noticiário com a mesma finalidade de
beneficiar Temer e prejudicar Dilma.
Vejamos, no dia 14 de julho o Ministério Público Federal determinou o
arquivamento da investigação pedida pelo Tribunal de Contas da União,
apontando que não houve operações de crédito e que as chamadas
“pedaladas” não configuram ilícito penal. Pois bem, a Folha simplesmente
não noticiou o fato na sua edição do dia seguinte. É difícil falar
sobre coisas que não aconteceram, mas esta omissão, dado o contexto tão
delicado do processo de impeachment, constitui um caso sério de
agendamento militante do jornalismo.
Agora, voltemos à edição de Domingo, 17 de julho, aquela que traz os
resultados da pesquisa na capa. O editorial daquele dia contém elementos
que ajudam a entender o comportamento do jornal. O texto é inteiramente
pró-Temer e contrário à volta de Dilma. Louva a suposta estabilidade
política trazida por Temer como “condição necessária para o país emergir
desta crise profunda e multifacetada” e elogia também sua equipe
econômica, chamada de “coesa e prestigiosa”. É quase uma mea culpa
da declaração de rejeição do impeachment feita por Otávio Frias há
algum tempo atrás, declaração essa que nunca se manifestou na cobertura
golpista que o jornal faz. O apoio a Temer de fato se reflete, não
somente no noticiário da capa e nos textos de opinião, como as análises
do Manchetômetro já mostram, mas também na manipulação de pesquisas e
reportagens.
A Folha historicamente nega que manipula a opinião. Durante as
eleições de 2014 a ombudsman do jornal me ligou para fazer uma
entrevista sobre o Manchetômetro. Disse que iria publicar em sua coluna.
No transcorrer da conversa, ao ser confrontada com o viés brutal que
nossos dados revelam contra o então governo do PT e sua candidata, ela
atribuiu isso à suposta função de cão de guarda da mídia: sempre
criticar o poder da vez. Pois quando respondi que nosso estudo da
eleição de 1998, quando FHC concorreu à reeleição, mostra que isso não
se verificou, pois o apoiaram francamente, ela ficou irritada e terminou
a entrevista dizendo que não havia mais interesse em publicar coisas do
Manchetômetro.
Os editores do jornal devem pensar que uma vez revelado tal
comportamento, todo mundo vai começar a notar que o rei está nu. Eu
antes achava que para qualquer pessoa com mais de dois neurônios e algum
senso crítico o comportamento manipulador e politicamente enviesado da
Folha fosse uma obviedade. Mas não. Há muita gente que ainda se seduz
pela presença dos Boulos, Duviviers e Safatles nas colunas de opinião do
jornal, que, a despeito de serem flagrante minoria, estão lá para
cumprir a função de emprestar à Folha um verniz de pluralidade e
equilíbrio. Ou seja, essa estratégia hipócrita dos editores ainda tem
algum efeito.
As perguntas que não querem calar são: até quando esses colunistas
“de esquerda” vão se prestar a esse papel ignóbil de fingir que estão em
um jornal sério promovendo um debate sério sobre questões importantes
para o Brasil? O rei está nu, e sua nudez contagia toda sua corte,
revelando aos olhos do público, mais do que nunca, a hipocrisia e o
apego mesquinho à autopromoção daqueles que com ele insistem em
colaborar. Até quando os cidadãos e cidadãs progressistas do Brasil e
blogueiros e jornalistas independentes vão ficar se preocupando em
comentar as barbaridades publicadas e silenciadas por Folha, Globo,
Estadão, Abril et caterva e continuar a agir de forma atomizada, sem
coordenação qualquer, em uma luta de formiguinha contra o Golias
midiático? É preciso que criemos canais de financiamento coletivo
efetivos e um mínimo de coordenação para evitar muita redundância nos
trabalhos. O Brasil progressista precisa se levantar puxando o cadarço
das próprias botas, pois se não o fizermos, ninguém fará por nós.
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