Experimentador incansável e profundo, ele demoliu os limites
entre museu e rua e vinculou a arte à vida. É o que mostra Gonzalo
Aguilar em livro essencial sobre o artista
Por Bruno Lorenzatto
Considerado um dos mais importantes artistas brasileiros da segunda
metade do século XX, Hélio Oiticica realizou uma obra multifacetada,
fortemente inventiva e experimental, cuja radicalidade expandiu as
fronteiras da arte. Artista do museu e da rua, demoliu a barreira entre
ambos: “o museu é o mundo”; questionou sem cessar os limites da arte,
reinventando a si mesmo a partir de suas obras e experiências, que
buscavam o encontro e a produção de singularidades que pudessem
potencializar a vida. Do heroísmo marginal como resistência política às
Cosmococas, que evocam o êxtase e o sublime, é possível dizer que Hélio
fez de sua própria vida uma obra de arte, uma estética da existência. No
decorrer dos anos, Oiticica irá cada vez mais fazer do trabalho
artístico um “exercício experimental da liberdade”, como avaliou Mario
Pedrosa – a elaboração de um vínculo entre arte e vida. Este vínculo é
um dos temas centrais que atravessa o livro de Gonzalo Aguilar, Hélio Oiticica, a asa branca do êxtase (2016).
A investigação que lá se vai encontrar é uma análise da obra de
Oiticica das décadas de 60 e 70 que estabelece conexões, endereçamentos e
divergências com as vanguardas brasileiras, tendo como fio condutor as
relações entre a estética e o “fora”, isto é, as forças éticas e
políticas, em tempos de autoritarismo e invenção de resistências. Desde o
modernismo da década de 20 – anterior à geração do artista – até o
concretismo, o neoconcretismo, o tropicalismo e o cinema novo – meios
nos quais Hélio se formou, atuou e manteve diálogos decisivos para arte –
o autor cria constelações cujos desenhos e sentidos buscam questões que
acossaram Oiticica durante sua curta existência.
Em meio ao turbilhão de acontecimentos sociais, perseguições e
violências de Estado, a arte brasileira se debaterá contra as forças
reacionárias responsáveis pela “noite negra” (como disse Hélio) que se
abateu sobre a sociedade brasileira no período da ditadura militar.
Gonzalo mostra como as forças sociais em confronto – devires a princípio
não estéticos – serão incorporados na arte e em seu discurso,
desestabilizando-a: “O âmbito da percepção se abre drasticamente e os
materiais já não são aqueles que a tradição estética traz, e sim os que o
mundo oferece.”
Daí também a valorização crescente do uso do espaço público, da
intervenção na rua – cuja prática remonta às performances realizadas por
Flávio de Carvalho na década de 30 (quando, por exemplo, caminhou, sem
tirar o chapéu, em sentido contrário à multidão, numa procissão católica
em São Paulo) –, da convivência de práticas plurais e imprevistas, sem a
mediação do museu e suas regras de bom gosto, seus critérios políticos e
econômicos de exclusão que permitem ou proíbem a entrada do artista e
do espectador em suas salas: “O espaço público, entendido não como algo
fixo e prévio, mas como um âmbito que se redefine permanentemente
mediante práticas diversas, e não mais o museu, é o lugar onde se
desenvolverão as disputas sobre o sentido das obras.”
Nessa aproximação da arte com a vida o corpo do artista (mas não só o
dele) terá importância capital; ele vem a se tornar o que Pedrosa
chamou de “máquina sensorial”. A ampliação da sensibilidade e das
possibilidades do corpo passam a ser pensadas e experimentadas na
invenção artística: “é a incorporação do corpo na obra e da obra no
corpo”. Grande exemplo disso são os parangolés de Hélio, obras feitas
para se vestir: capas esfarrapadas e assimétricas que fazem o corpo de
quem as veste se colocar em movimento em busca de um equilíbrio
impossível. Cada corpo com seus gestos, ritmos e danças particulares
descobre uma nova maneira de incorporar a obra e de ser nela
incorporado.
Para Aguilar, há um ponto de inflexão na trajetória de Hélio, um
“buraco negro” para o qual tenderá toda sua obra a partir da década de
60, que advém de um acontecimento social e político, e marcará o
“momento ético” do artista: em 1964, após matar acidentalmente o
detetive da polícia, Milton Le Cocq, o bandido Manuel Moreira, conhecido
pela alcunha de “Cara de Cavalo”, sofrerá uma perseguição implacável
por parte da polícia que culminará em seu cruel assassinato. Há de se
observar que o grupo extraoficial organizado pelos policiais para matar o
bandido – a Scuderie Le Cocq – permaneceu em atividade durante muito
tempo e ficou conhecida como um esquadrão da morte na época da ditadura.
Transformado em inimigo público número um, Manuel Moreira, que cometia
pequenos delitos, é tomado como bode expiatório da violência e barbárie
que deveria ser extinta do país. Rebaixado à condição de animal, besta,
condição esta reforçada pelo apelido que remetia diretamente à
animalidade, Cara de Cavalo – fará crer a mídia e a polícia – merecia um
tratamento selvagem tal qual sua existência. Uma vez inumano, o
marginal encontra-se apartado da esfera da legalidade e da justiça
humana, “não pode ‘entrar’ na lei, que é seu único refúgio possível”.
Morto com mais de 50 tiros pela polícia em Cabo Frio, o marginal fugia
do Rio de Janeiro não para escapar da lei, mas em busca do seu amparo.
No ano seguinte, em 1965, à monstruosidade do assassinato Oiticica
oporá uma obra em homenagem à Cara de Cavalo – que, diga-se de passagem,
era seu amigo –, inaugurando assim a entrada de afetos ético-políticos
em seus procedimentos. Bólide caixa 18 Poema caixa 2, Homenagem a Cara de Cavalo
trata-se de um caixa preta com uma abertura na parte superior, uma vez
aberta, há uma tela semitransparente através da qual se vê a foto do
bandido morto revestindo as paredes da caixa. Na base há um saco
transparente com pigmentos vermelhos, onde se pode ler:
Aqui está,
e ficará!
Contemplai
o seu
silêncio
heroico
O gesto de Hélio Oiticica, que evidencia a brutalidade à qual foi
submetida Manuel Moreira com uma foto de jornal, desloca a figura do
homem-animal morto do espetáculo midiático para o luto e a crítica. Uma
reflexão sobre o estado policial que então se instalava no país. A obra
faz visível o laço imposto pela sociedade que liga “o homem abandonado e
o animal perseguido”. A imagem do corpo dilacerado e monumentalizado no
interior da caixa assinala ainda a mutação do corpo anônimo em corpo
infame a partir do seu encontro mortal com o poder. Operando uma fenda
no espaço da arte, bólide caixa 18 é “uma abertura ao abjeto que comove o
domínio do estético. Um abjeto a-estético.”
Assim Oiticica justifica seu trabalho: “O que quero mostrar (…) é a
maneira pela qual a sociedade castrou toda a possibilidade de sua
sobrevivência, como que fora ele uma lepra, um mal incurável – (…) a
mentalidade mórbida e canalha de uma sociedade baseada nos mais
degradantes princípios, como é a nossa, colaboraram para torná-lo o
símbolo daquele que deve morrer, e digo mais, morrer violentamente, com todo o requinte canibalesco.”
Se Bólide 18 é, como afirma Gonzalo em uma de suas
principais hipóteses, o eixo sobre o qual a obra de Oiticica não cessa
de girar – a “origem velada” de sua (anti)estética –, é porque abriu
possibilidades em sentidos diversos, a partir de um saber do corpo e de
sua materialidade: “na arte, para introduzir o momento ético; na
política, para trabalhar com os afetos e o fora da lei; no humanismo,
para apresentar o infame, toda aquela região obscura à qual as luzes da
razão não chegam e que emerge das entranhas da morte e da violência.”
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