Por que ela, vista pela primeira vez como um ideal coletivo pela Revolução Francesa, engendrou guerra e a morte? E como, ainda assim, há — na política e na arte — aqueles que não se conformam?
Por Claudia Amorim | Imagem: Ron England
Em “O delito de viver”, artigo publicado na obra ensaística Nossa amiga feroz: Breve história da felicidade na expressão contemporânea
(1993), Ronaldo Lima Lins discorre com acuidade sobre os impasses da
modernidade, focalizando o engendramento da ideia de felicidade como um
aspecto social e não apenas individual e o seu percurso até os dias
atuais.
O enfoque toma como ponto de partida a declaração do revolucionário
Louis Léon de Saint-Just, na Assembleia Nacional Francesa, no auge do
processo revolucionário (fins do século XVIII) que instauraria as bases
de um novo período da era moderna.
Em seu discurso na referida Assembleia, Saint-Just teria proclamado
os novos tempos, nos quais a felicidade inaugurava-se como uma nova
ideia na Europa. Lins observa, a partir daí, o percurso dessa utopia da
felicidade, construída pela razão soberana, e sua melancólica derrocada
na atualidade, em que a simples menção à palavra provoca angústia (LINS,
p. 43). Nesse percurso analítico, o autor comenta, sobretudo, os
motivos pelos quais, dois séculos após sua proclamação como instauradora
de uma nova ordem mais fraterna, igualitária e libertária, a ideia da
felicidade esvaziou-se na rigidez com que a humanidade se deteve diante
do movimento, sempre resistente àqueles que, inquietos e percebendo os
desvios, buscaram reordenar as rotas previamente definidas para a
legitimação da felicidade na ordem social.
O caráter verdadeiramente revolucionário desse momento da história,
conhecido como “Era das revoluções” foi o de realmente trazer a utopia
da felicidade para a realidade desse mundo, afastando-a do caráter
messiânico a qual estava associada desde a instituição do cristianismo
no Ocidente.
Contudo, a instituição de uma nova ordem acionaria a necessidade de
mudança e resultaria na inevitável instabilidade, sempre ameaçadora às
sociedades, colocando em risco a exequibilidade do projeto. Para Lins, a
“busca da felicidade, quanto maior o empenho em alcançá-la, engendrou o
infortúnio, a guerra, a morte”.
Por isso, o bom senso aconselha, ao
contrário, o meio-termo, o que significa algo como uma conformação
cotidiana à frustração, a mediocridade escolhida como alvo prioritário
da existência. Ver mas não tudo, falar pouco, ouvir o suficiente para
eximir-se de compromissos – são os conselhos conhecidos de
autopreservação. As decisões, que as tomem outros, ousados, que não se
conformam com o que têm e se colocam em risco.” (LINS, 1993, p. 35).
O risco é a aposta de alguns poucos que não se contentam com a
conformação aconselhada pelo bom senso. Contudo, esticando a corda da
existência, como lembra o autor, os que sustentam o risco “registram-se
na memória coletiva, favorável ou desfavoravelmente, como seres meio
loucos, inquietos, gente que deseja mais, sempre mais, e que jamais se
entrega à docilidade”. (LINS, 1993, p. 35). O preço do não conformismo
é, quase sempre, a incompreensão e a solidão.
Nesse sentido, viver e arriscar-se parecem estar ligados a um delito,
como também não escapam do delito de viver aqueles que se conformam com
o estado das coisas, movidos apenas pela autopreservação.
Os poucos que se arriscaram não lograram corrigir as rotas que
desviaram uma ideia de felicidade que se sustentou até bem pouco tempo.
Como salienta o autor, “a felicidade sobrevoa os nossos projetos sem
descer ao cotidiano das coisas, marcado pela ausência, pela carência,
pela solidão”. (1993, p. 43)
Para concluir, diríamos nós, inspiradas nesse belo ensaio de Ronaldo
Lima Lins, que à felicidade que sobrevoa nossos projetos, a sociedade
pós-moderna do século XXI parece ter sobreposto o hedonismo,
transformando a felicidade em apelo imediato, consumível e substituível
por outro qualquer objeto de consumo, o que parece nos levar do delito
de viver à ausência de sentido da própria vida.
Nesse sentido, o ensaio de Ronaldo Lima Lins, embora publicado no fim
do século passado, mostra-se atual e leitura indispensável para se
pensar os destinos humanos na nossa era pós-moderna, exercício do qual o
autor não se furta nos anos seguintes, ao publicar outras obras
ensaísticas que com essa dialogam como A indiferença pós-moderna (2006), A construção e a destruição do conhecimento (2009), e a recentíssima O saber e os ventos do não saber (2016).
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