Para Aldo Fornazieri, “Desafio das esquerdas é paradoxal: precisam
construir sua unidade ao mesmo tempo em que promovem um ajuste de
contas”
Por Aldo Fornazieri | Imagem: Francisco Goya: A romaria de Santo Isidro, 1819/23 (detalhe)
As eleições municipais reduziram o PT a pouco mais que escombros. Não
faltaram advertências, principalmente a partir de 2013, de que o
partido se encaminhava para um desastre. As críticas foram colhidas
pelos petistas de duas formas: o menosprezo arrogante por parte de quem
detinha poder e direção e acusações por boa parte da militância que,
também arrogante, classificava as críticas como PIG, moralistas,
esquerdistas etc.
O poder fez muito mal ao PT: a estrutura partidária e dirigentes se
corromperam, a militância se domesticou e os movimentos sociais que
orbitavam em torno do PT começaram a orbitar em torno do Estado, sendo
cooptados e perdendo a energia combativa na luta por direitos e justiça.
O PT se transformou no partido dos palácios, dos gabinetes, do luxo e
da arrogância. Ninguém promove tal movimento sem que desabe sobre ele,
mais dia menos dia, o merecido castigo do povo.
O PT alimentou a mesma crença que as elites históricas conservadoras
alimentaram desde os tempos coloniais no Brasil: a de que a sociedade
pode ser moldada e transformada desde o alto, desde o Estado. Esta
prática sempre engendrou dominação e não liberdade e cidadania. Enquanto
esta crença permanecer vigente, o Brasil permanecerá eternamente
deficiente em seu conteúdo nacional e popular e a sociedade carecerá de
vínculos societários republicanos, orientados para o bem comum e para o
interesse público. Aqueles que chegam ao poder sempre se tornarão
representantes de grupos e interesses particularistas, a se apossar do
erário público em detrimento dos interesses de caráter universalizante.
Será sempre o velho patrimonialismo vestido com roupas novas.
O PT se deixou abater pelo erro mais comezinho que as esquerdas vêm
cometendo desde o século 20: a corrupção. A corrupção vem sendo, ao
longo das décadas, a espada nas mãos da direita e da mídia para fazer
rolar as cabeças da esquerda. Os eleitores mostram-se intolerantes à
corrupção das esquerdas, pois, querem ver nelas uma reserva moral da
sociedade, um exemplo da administração correta da coisa pública, um
cimento de ética na sociedade. Quando as esquerdas se corrompem, os
eleitores se sentem traídos.
Pouco a pouco, o PT foi caminhando para aquela condição mais
indesejável da política: ser odiado. Isto já era visível nas eleições de
2014. De lá para cá, a imagem do partido foi se deteriorando, seja
porque as denúncias se revelaram medonhas, seja porque os ataques dos
seus inimigos foram devastadores sem que houvesse uma linha de
resistência e de contraofensiva. Ao mesmo tempo em que se destruía, o
partido se deixava destruir. A cada ataque, a direção partidária reagia
com notas burocráticas e protocolares, foi perdendo credibilidade e
deixou de ostentar virtudes e força moral capazes de mobilizar a
militância. Como já se disse, a direção do PT tornou-se um comitê de
generais de gabinete sem exército e a militância se tornou um exército
sem generais.
“Ser odiado” é a condição absoluta que precisa ser evitada em
política, ensina Maquiavel. Como partido antimaquiaveliano que é, o PT,
ao passar da praça para os palácios deixou de olhar a realidade com os
olhos da praça, deixou de se situar na planície e passou a olhar o povo
com o ângulo de mirada dos palácios. Mas não sabia jogar o jogo dos
palácios e passou a acreditar em aliados que eram e são gananciosos,
simuladores e ambiciosos. Emprestaram prestígio aos petistas enquanto
estes lhes eram úteis e os traíram sem cerimônia na consumação do golpe.
Golpe que o próprio PT ajudou a construir seja pela sucessão de erros
políticos, de incompetências, e seja pela própria falta de apoio à
presidente Dilma em momentos delicados em que o governo caminhava para a
deriva.
Pela condução desastrosa que o PT vem tendo nos últimos anos, a
direção partidária deveria renunciar nos primeiros dias desta semana.
Uma comissão provisória deveria ser constituída com a tarefa de convocar
e conduzir um Congresso partidário antes do final do ano. Se nenhum
aceno for feito neste sentido, a tendência maior é a de que o PT caminhe
para uma divisão irreversível. Não é admissível que os condutores do
desastre continuem comandar um partido que foi esperança do povo
brasileiro e se afogou nos seus próprios erros. Não há, em torno da
atual direção, capacidades políticas, morais e intelectuais que sejam
capazes de tirar o partido da crise.
Que fazer?
Esta velha pergunta, que precisa ser recolocada, suscita hoje muito
mais dúvidas do que certezas às esquerdas. Antes de tudo, as esquerdas
precisam se unir em torno do que sobrou dessa devastadora eleição:
Freixo no Rio de Janeiro, João Paulo em Recife, Edmilson Rodrigues em
Belém, Edvaldo Nogueira em Aracaju etc.
Com muitas divisões, com baixa propensão à unidade, com um ideário
desconectado ao mundo contemporâneo, com organizações autoritárias e
burocráticas, com uma retórica que não dialoga com a sociedade, com uma
enorme crise em suas visões de mundo, as esquerdas vivem uma defensiva
mundial, ao mesmo tempo em que cresce o rancor e o ódio neofascistas.
A crise das esquerdas se alinha com a própria crise civilizacional
que tende a se agravar em várias dimensões: ambiental, social,
econômica, humana. O mundo do futuro próximo, dizem os economistas e
analistas mais atentos, será um mundo sem empregos, com populações que
viverão cada vez mais. Em contrapartida, a concentração de renda e
riqueza é crescente. As democracias são cada vez menos legítimas e cada
vez mais incompetentes em fornecer respostas aos problemas das
sociedades.
As esquerdas brasileiras pararam no tempo. Discutem os problemas com
retóricas e paradigmas do século 20, quiçá, do século 19. Nos últimos
anos houve um abandono das incipientes experiências de governança
democrática que vinham sendo desenvolvidas. Nos municípios, nos estados e
no governo federal, os governantes, secretários e ministros ditaram as
suas “verdades” às sociedades. Ao mesmo tempo em que direitos deixaram
de ser garantidos, não se investiu na inovação e na qualidade dos
serviços e direitos. Os governos continuaram analógicos em sociedades
digitais. Reformas cruciais, seja no plano macro ou no plano micro,
sequer foram cogitadas.
A ideia de aglutinar as esquerdas numa frente, que garanta a unidade
na pluralidade, ganha força em face das fragilidades e derrotas
recentes. A construção dessa frente, se vier a se concretizar, contudo,
necessita de um processo amplo de definição de conteúdos programáticos e
de métodos de condução dos processos internos. A perspectiva é a de que
essa frente aglutine partidos, movimentos políticos e sociais,
indivíduos e grupos cívicos, num novo tipo de organização e de relação
política, sem as práticas hegemonistas e de controle burocrático, tão
comuns às esquerdas.
A derrota eleitoral, somada ao golpe e às perspectivas de retrocessos
em direitos, foi avassaladora. Subestimá-la, persistir nos erros e não
fazer autocrítica significa contribuir para a consolidação de um projeto
conservador que vem se delineando. Neste momento, o desafio das
esquerdas é paradoxal: precisa construir sua unidade ao mesmo tempo em
que promove um ajuste de contas.
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