Assim como sofremos um golpe de novo tipo, estamos vivendo o início de uma ditadura de novo tipo – a palavra “ditadura” pode parecer excessiva, mas é exatamente disto que se trata.
Entrei na
universidade no mesmo mês em que um civil voltou à presidência da
República no Brasil. Depois de mais de vinte anos de regime autoritário,
estávamos frente à possibilidade de reconstruir um governo baseado na
soberania popular. Esta conjuntura impactou o ambiente em que eu estava
entrando; em toda a minha formação acadêmica, da graduação ao doutorado,
um tema central de debate, se não o tema central do debate,
foi a transição à democracia. Pois na quadra atual da vida brasileira,
uma nova agenda de pesquisa se abre: a transição à ditadura.
A palavra
“ditadura” pode parecer excessiva, mas é exatamente disto que se trata.
Sem discutir extensamente o conceito, é possível afirmar que “ditadura”
remete a dois sentidos principais, aliás interligados. Por um lado, como
oposto de democracia, indica um governo que não tem autorização
popular. Por outro, em contraste com o império da lei, sinaliza um
regime em que o poder não é limitado por direitos dos cidadãos e em que a
igualdade jurídica é abertamente desrespeitada. O Brasil após o golpe
de 2016 caminha nas duas direções.
A
destituição da presidente Dilma Rousseff, sem respaldo na Constituição,
representou um golpe de novo tipo, desferido no parlamento, com apoio
fundamental do aparato repressivo do Estado, da mídia empresarial e do
grande capital em geral. Foi um golpe sem tanques, sem tropas nas ruas,
sem líderes fardados. Mas foi um golpe, ainda assim, uma vez
que representou o processo pelo qual setores do aparelho de Estado
trocaram os governantes por decisão unilateral, modificando as regras do
jogo em benefício próprio.
Assim como
sofremos um golpe de novo tipo, estamos vivendo o início de uma ditadura
de novo tipo. Alguns talvez prefiram o termo “semidemocracia”, mas eu
não acredito nesse eufemismo. O regime eleitoral já é uma
“semidemocracia”, uma vez que a soberania popular é muito tênue, muito
limitada. Estaríamos entrando, então, numa “semi-semidemocracia”.
“Ditadura” é mais direto, corresponde ao núcleo essencial do sentido da
palavra e tem a grande vantagem de sinalizar claramente a direção que
tomamos: concentração do poder, diminuição da sensibilidade às demandas
populares, retração de direitos e ampliação da coerção estatal.
Essa
ditadura não será o regime de um ditador pessoal, até porque nenhum dos
possíveis candidatos ao posto tem força suficiente para alcançá-lo. Não
será uma ditadura das forças armadas, ainda que sua participação na
repressão tenda a crescer. Provavelmente, muitos dos rituais do Estado
de direito e da democracia eleitoral serão mantidos, mas cada vez mais
esvaziados de sentido.
Ou seja: a
transição que vivemos é de uma democracia insuficiente para uma ditadura
velada. As debilidades do arranjo democrático anterior, que era
demasiado vulnerável à influência desproporcional de grupos
privilegiados, não serão desafiadas, muito pelo contrário. Ao mesmo
tempo, alguns procedimentos até agora vigentes estão sendo cortados,
seletivamente, de maneira que mesmo o arranjo formal da democracia
liberal vai sendo desfigurado.
A
Constituição não foi revogada, mas opera de maneira deturpada e
irregular. O caso mais emblemático certamente é a decisão do Tribunal
Regional Federal da 4ª Região, no dia 22 de setembro, concedendo ao juiz
Sérgio Moro poderes de exceção. O tribunal alegou que as
características excepcionais das questões nas quais está envolvido Moro
tornam facultativo, para ele, o respeito às regras processuais vigentes.
É a própria definição de exceção. Na prática, as garantias
constitucionais ficaram suspensas para qualquer um que seja alvo do juiz
curitibano. Em suma, lei e Constituição vigoram – ou não – dependendo
das circunstâncias e da interpretação que alguns, dotados desse poder,
delas fazem.
Duas semanas
depois, no dia 5 de outubro, o Supremo Tribunal Federal decidiu
permitir o encarceramento de réus sem que os recursos tenham sido
esgotados, anulando o princípio constitucional da presunção de
inocência. Vendida como medida para impedir a impunidade dos poderosos,
amplia o poder discricionário de um Judiciário que é notoriamente
enviesado em suas decisões. Apenas como ilustração, a Defensoria Pública
do Rio de Janeiro afirmou em nota que mais de 40% de seus recursos ao
STJ têm efeito positivo. É, portanto, um contingente muito expressivo de
pessoas que começariam a cumprir penas depois consideradas injustas.
No mesmo
dia, o STF ratificou e normatizou decisão anterior, permitindo que a
polícia invada domicílios sem mandado judicial. Isso se vincula ao
aumento generalizado da truculência policial, contra manifestantes,
contra estudantes, contra trabalhadores. É algo que vem desde o final do
governo Dilma, estimulado pelo clima político de avanço da reação – e
também, é necessário ser dito, pela legislação que o próprio governo
Dilma aprovou.
Cumpre
assinalar também a volta da tortura a prisioneiros, com motivação
política. O encarceramento por tempo indefinido, com o objetivo expresso
de “quebrar a resistência” de suspeitos (pois nem réus são) e levá-los à
delação, tornou-se rotina no Brasil e é uma forma de abuso de poder, de
constrangimento ilegal e, enfim, de tortura. (E antes de que alguém
lembre que a tortura a presos comuns nunca se extinguiu no Brasil, cabe
ponderar que a extensão da prática em nada melhora a situação dos presos
comuns; ao contrário, pode piorá-la.)
Fica claro
que o poder judiciário não está cumprindo o papel de garantidor das
regras, o que já fora demonstrado durante o processo de impeachment
ilegal. Como sabemos, parte do judiciário foi partícipe ativa do golpe,
parte foi cúmplice silenciosa, mas não se encontra ninguém, nas cortes
superiores, que tenha se levantado em defesa da democracia brasileira.
Continuamos a
ter eleições. No entanto, as condições da disputa, que sempre foram
desiguais, dado o controle dos recursos materiais e dos meios de
comunicação de massa, estão ainda mais assimétricas, com a campanha
incessante de criminalização do Partido dos Trabalhadores e de todo o
lado esquerdo do espectro político. Para as eleições presidenciais de
2018, a grande questão que se coloca à esquerda é se o ex-presidente
Luís Inácio Lula da Silva terá condições legais de concorrer. Em relação
a seus potenciais concorrentes à direita, todos atingidos por denúncias
de corrupção mais graves e com evidências mais sólidas do que aquelas
apontadas contra Lula, tal preocupação não existe. E a delegação de
poder por via eleitoral foi desmoralizada com a destituição da
presidente legítima. Caminhamos para uma situação de disputa eleitoral
quase ritualística, com cerceamento das opções colocadas à disposição do
eleitorado e tutela dos eleitos.
Essa
criminalização do PT e da esquerda em geral é alimentada pelos meios de
comunicação empresariais e pelos poderes de Estado, com destaque agora
para a campanha do governo Temer sobre “tirar o país do vermelho”. A
agressividade crescente dos militantes da direita, produzida de forma
deliberada, tenta emparedar as posições à esquerda, progressistas e
democráticas, ao mesmo tempo em que a cassação de registros partidários
torna-se uma possibilidade mais palpável.
O cerco ao
ex-presidente Lula, em que uma parte importante do aparelho repressivo
do Estado vem sendo mobilizada com o intuito de conseguir provas de uma
culpa determinada de antemão, é outro sintoma claro de que deslizamos
para um estado de exceção. Quando vigora o império da lei, a
investigação sucede à descoberta de evidências que sustentem suspeitas.
Se, ao contrário, decide-se promover uma devassa na vida de alguém na
esperança de encontrar algo incriminatório, estando depois os juízes
“condenados a condenar”, como disse o próprio Lula, não temos mais a
igualdade legal. O sistema judiciário funciona na sua aparência, mas
perdemos a possibilidade de evocar os valores que deveriam presidi-lo a
fim de garantir a vigência das liberdades.
Em suma, a
ditadura se expressa no alinhamento dos três poderes em torno de um
projeto claro de retração de direitos individuais e sociais, a ser
implantado sem que se busque sequer a anuência formal da maioria da
população, por meio das eleições.
O sintoma
mais claro da ditadura que se implanta é a paulatina redução da
possibilidade do dissenso. Ela vem aos poucos, mas continuamente. Dentro
do Estado, do Itamaraty ao IPEA, não há praticamente espaço em que a
caça às bruxas não seja pelo menos insinuada. Vista como foco potencial
de divergências, a pesquisa universitária está sendo estrangulada.
Decisões judiciais coibindo críticas – em primeiro lugar ao próprio
Judiciário e seus agentes, mas não só – tornaram-se cada vez mais
costumeiras. Juízes e procuradores, embalados pela onda da campanha
mistificadora do Escola Sem Partido, intimidam professores e estudantes
que queiram debater em escolas e universidades. O MEC se junta à
campanha, exigindo, como fez na semana passada, que estudantes
mobilizados sejam denunciados pelas administrações universitárias. É
todo um processo de normalização do silenciamento da divergência que
está em curso.
O avanço da
censura está ligado à imposição da narrativa única pelos oligopólios da
comunicação, parceiros de primeira hora da ditadura em implantação. Isso
se dá em várias frentes. Há o estrangulamento econômico dos meios de
comunicação independentes, uma política buscada deliberadamente pelo
governo Temer – que, ao mesmo tempo, ampliou de forma significativa a
remuneração oferecida aos grupos da mídia empresarial.
Enquanto
isso, medidas que impactam seriamente a vida nacional, mudando a lei e a
Constituição, são levadas adiante sem qualquer tipo de debate – seja
com a sociedade, seja dentro do próprio Congresso Nacional. É um governo
que impõe sua vontade, escorado na cumplicidade dos meios de
comunicação e no apoio fisiológico da maior parte dos parlamentares. Com
isso, não há sequer uma pantomima para fingir que ocorre discussão no
Congresso; os projetos tramitam com velocidade recorde, atropelando
todos os prazos. Por vezes, praticamente só a oposição discursa – os
governistas querem simplesmente cumprir o ritual, o mais rápido que
possam. Não há espaço para negociação, nem necessidade de justificação
pública aprofundada.
São muitos
os exemplos, mas cito apenas três. A reforma do ensino médio,
apresentada sem discussão com pedagogos, professores ou estudantes, por
meio de medida provisória. Sem discutir os méritos da reforma ou mesmo o
fato de que ela foi justificada com a apresentação de dados
falsificados do ENEM, trata-se de uma medida com profundas e complexas
implicações, que não poderia prescindir de amplo debate.
O segundo
exemplo é a entrega do pré-sal a empresas estrangeiras, rompendo o
consenso sobre a exploração do petróleo brasileiro, construído ao longo
de décadas. Por fim, a proposta de emenda constitucional nº 241, que
congela o investimento social por vinte anos. Num caso como no outro,
são decisões de enorme gravidade, na contramão da vontade popular
sistematicamente expressa nas eleições – jamais, na história brasileira,
o entreguismo ou a ideia de redução do investimento social foram
capazes de ganhar eleições competitivas. Quando chegaram ao governo, foi
em períodos de exceção ou por meio de manipulação e ocultamento na
campanha eleitoral.
Seja no caso
da entrega do pré-sal, seja no caso da PEC de estrangulamento do
investimento público, o debate foi próximo do zero. Com os diferentes
grupos da sociedade civil, não se travou nenhum tipo de discussão. Com a
opinião pública, o debate foi trocado por uma ofensiva de
desinformação, que culminou na equívoca campanha publicitária
governamental já citada, a do “tirar o país do vermelho”. No Congresso, a
base governista sequer tentou fingir que não estava apenas cumprindo o
ritual da aprovação parlamentar. Não houve qualquer engajamento em
discussões com a oposição.
O fim do
monopólio sobre a exploração do pré-sal e a PEC 241 indicam, não por
acaso, o programa da ditadura em implantação. A conciliação de classes
que os governos do PT tentavam implementar foi rompida unilateralmente
pela burguesia. Afinal, são necessários dois para conciliar – adaptando o
dito popular, quando um não quer, dois não conciliam. Trata-se, então,
de reverter quaisquer vantagens que as classes trabalhadoras e outros
grupos subalternos tenham obtido.
Um elemento importante é o caráter misógino do retrocesso. O golpe retirou da presidência uma mulher, e o fato de que era uma mulher
não foi irrelevante. Nós vimos as faixas ofensivas à presidente Dilma
Rousseff nas manifestações pelo impeachment. Nós vimos os adesivos
pornográficos nos automóveis. Nós vimos as reportagens na imprensa que
serviu ao golpe, requentando estereótipos sexistas contra a presidente
da República. Nós testemunhamos os integrantes da elite política com
suas falas desdenhosas, em que o preconceito de gênero ocupava um lugar
que não era desprezível.
Não se trata
apenas do processo de construção da derrubada da presidente eleita. O
governo atual está comprometido com o retrocesso na condição feminina,
com o reforço de sua posição subordinada e do fechamento da esfera
pública a elas. Não se trata apenas do retrocesso simbolizado no
ministério formado exclusivamente por homens brancos, embora ele seja
significativo. Como também é significativo o retorno do chamado
“primeiro-damismo”, em que o papel concedido à mulher na política é o da
bem-comportada auxiliar de seu marido, sorrindo nos jantares e
patrocinando programas assistenciais. Além disso, há o recrudescimento
do discurso familista, que é aquele de exaltação da família tradicional,
marcada exatamente pela submissão da mulher. Esse discurso não ressurge
por acaso ou apenas por algum tipo de reacionarismo atávico dos novos
donos do poder, mas vinculado à política de retração do investimento
social e de destruição do nosso incipiente sistema de bem-estar social.
Com isso, a responsabilidade pelo cuidado com os mais vulneráveis recai
integralmente sobre as famílias, isto é, sobre as mulheres, como o
celebrado discurso de estreia de Marcela Temer indicou com clareza
exemplar.
A
implantação desse programa exige o silenciamento das vozes contrárias a
ele. Trata-se de um projeto extraordinariamente lesivo para a grande
maioria do povo brasileiro. Graças à baixíssima educação política da
maior parte da população e à campanha incessante da mídia, para muita
gente a ficha não caiu. Mas os efeitos da redução dos salários, do
aumento do desemprego, do subfinanciamento do Estado e do desmonte dos
serviços públicos logo se farão sentir de forma plena. Para conter a
inevitável reação popular, será necessária uma escalada repressiva e
restrições cada vez maiores aos direitos.
Essa é a
agenda de pesquisa que se abre no momento. Uma dimensão é a retração dos
direitos e o desfiguramento das instituições democráticas. Outra é
resistência popular que certamente se construirá. Torço para que esta
segunda dimensão nos dê muito material para pesquisar, o mais
rapidamente possível.
(Este artigo é baseado na intervenção que fiz na mesa-redonda
“Conjuntura política”, na última terça-feira, durante o 40º Encontro da
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais –
Anpocs.).
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