Brasília, 20 de Julho de 2016.
Paulo M. Leite – Como explicar a descoberta de pré-sal brasileiro?
GUILHERME ESTRELLA – Há fatores econômicos, pois envolve investimentos pesados. Também é preciso ter um bom conhecimento da área a ser explorada, com uma pesquisa geológica de qualidade. Mas o fator político foi decisivo.
Paulo M. Leite - Por que?
GUILHERME ESTRELLA – No período que transcorreu a partir da reforma neoliberal da Constituição de 1988, com a consequente quebra do monopólio e a instalação do regime de concessão internacional, havia uma política não escrita mas praticada pelos governos da década de 90. Consistia em reduzir em 40% a presença da Petrobras nos trabalhos de engenharia e pesquisa. A razão disso era clara: pretendia-se estimular empresas estrangeiras a investir no Brasil. Estou convencido de que não era um comportamento casual, fruto de uma decisão de momento, mas uma decisão de caráter estratégico.
Paulo M. Leite – E como se fazia isso?
GUILHERME ESTRELLA – Impunha-se duas condicionantes a Petrobras. A primeira, era diminuir a participação da empresa nas licitações de blocos exploratórios promovidas pela Agencia Nacional do Petróleo, ANP. Disputando menos blocos, a empresa tinha menos áreas para pesquisar e explorar. A segunda consequência é que, na prática, essa situação obrigava a Petrobras a atuar apenas na bacia de Campos, então responsável por 80% da produção brasileira. Eram condicionantes gravíssimas para a empresa e para o Brasil.
Paulo M. Leite – E por que?
GUILHERME ESTRELLA – Vamos lembrar o que acontecia em 2002. Naquele momento, os blocos exploratórios da Petrobras eram suficientes para companhia manter sua atividade apenas até 2008. Pensando aonde poderíamos estar, se essa visão fosse mantida, é difícil imaginar o destino da companhia. Com certeza, seria uma empresa menor e mais fragil. Só para dar uma ideia. Em 2002, investimentos em pesquisa ficavam em US$ 110 milhões. Hoje, se encontram em US$ 1,1 bilhão. O lucro líquido foi de R$ 8,1 bilhões em 2002. Em 2013, passava de US$ 23 bilhões. Nós tínhamos 11 bilhões de barris em reservas. Hoje, são 16,5 bilhões. Se aquelas condicionantes fossem atendidas, vários blocos já sob domínio da Petrobras já teriam sido devolvidos a ANP em agosto de 2003.
Paulo M. Leite – Qual era o outro efeito grave dessas condicionantes?
GUILHERME ESTRELLA – Num fato elementar do setor de E & P da nossa indústria , os campos de petróleo e ou gás natural perdem produção de modo acentuado após cinco anos. Em média, a perda pode chegar a 10% ao ano. Podemos imaginar o que isso iria significar para a Petrobras: uma situação, absolutamente fora de controle, da perda de sustentabilidade nos dez anos seguintes. Era um quadro de risco que estava começando em 2002.
Paulo M. Leite – O que aconteceu então?
GUILHERME ESTRELLA – Logo depois da posse do novo presidente eleito rompeu-se com a política neoliberal que estava em vigor, e que gerava uma relação perigosa de dependência externa. Numa decisão impecável, do ponto de estratégico, que foi ficando clara em inúmeros pronunciamentos, ele mudou a mensagem que vinha do governo. Mais uma vez de forma não escrita, dizia que a Petrobras iria reassumir sua posição de principal condutora do setor petrolífero, voltando a participar de forma concreta na retomada do desenvolvimento industrial brasileira.
Paulo M. Leite – Sabemos que essa postura foi bem recebida dentro da empresa. Por que?
GUILHERME ESTRELA – Não poderia ser de outra forma. Estávamos falando em investir fortemente nos blocos que, na situação anterior, deveriam ser devolvidos a ANP já em agosto. Foi assim que descobrimos os Santos os campos de Uruguá e Tambaú, de petróleo. Também encontramos o campo de gás de Mexilhão.
Paulo M. Leite – Não era Mexilhinho?
GUILHERME ESTRELA – Nunca foi. Esse termo depreciativo em relação a Petrobras e seus funcionários, foi uma fruto de uma crítica precipitada, de quem estava impaciente para condenar a nova orientação política da empresa. Na verdade, era uma avaliação em cima dos primeiros resultados da exploração, quando se colhe uma amostra parcial, incerta, que deve ser confirmada ou desmentida mais adiante. Estava totalmente errada. Com o tempo, revelou-se que Mexilhão era, simplesmente, maior campo de gás natural já descoberto em território brasileiro.
Paulo M. Leite – O efeito da nova postura do governo foi imediato, então?
GUILHERME ESTRELLA – Sim. Com essas três descobertas foi possível confirmar a existência de um "sistema petrolífero" na bacia de Santos. Até então, ela ficara relegada ao segundo plano nas prioridades exploratórias da Petrobras. Isso porque, sem investimentos em novas pesquisas, parecia conter, numa área de extensão gigantesca, um único e pequeno campo de gás natural, descoberto pela Shell, ainda no período dos contratos de risco da década de 1970. Na bacia do Espírito Santo foi descoberto o Campo de Golfinho, de óleo leve (de menor custo de refino) e muito gás. Foram abertas, assim, perspectivas exploratórias muito interessantes naquela bacia sedimentar, logo acima de Campos. Até então, ela era considerada não atrativa para as atividades da empresa. Tanto assim que a decisão de fechar a unidade de E&P, em Vitória, já estava tomada.
Paulo M. Leite – Qual a importância dessa nova postura para a descoberta do pré-sal?
GUILHERME ESTRELLA – A partir deste momento, estávamos a um passo do pré-sal. Não vamos nos enganar. A base de qualquer avanço de envergadura consiste em aproveitar oportunidades exploratórias criadas pela competência técnica e geocientífica de uma companhia. Por essa razão é correto dizer que tudo o que veio depois significou o coroamento das decisões estratégicas de 2003. Seguindo nesta direção, na licitação da ANP daquele ano a Petrobras foi bastante agressiva. Arrematou inúmeros blocos, dentro e fora da bacia de Campos, persistindo na tendência que permitiu recompor a forte posição exploratória da companhia a longo prazo.
Paulo M. Leite – Como as concorrentes estrangeiras reagiram a essa postura?
GUILHERME ESTRELLA – Um fato importante da licitação de 2003, que marcou uma virada estratégica, é que a área corporativa da Petrobras havia costurado alianças de participação com empresas estatais e também privadas estrangeiras. Mas, num ato conjunto, totalmente inesperado, elas simplesmente nos comunicaram, às vésperas da licitação, que não estavam mais interessadas nas alianças anteriores.
Paulo M. Leite – O que isso queria dizer?
GUILHERME ESTRELLA – Em meu entendimento, foi uma clara reação contra o governo. Elas demonstraram que as decisões já tomadas não atendiam seus interesses. Diante disso, a reação da Petrobras foi a de aumentar a agressividade na licitação. Isso permitiu a recomposição de nossa carteira exploratória, agora 100% Petrobras, para os anos vindouros.
GUILHERME ESTRELLA – Há fatores econômicos, pois envolve investimentos pesados. Também é preciso ter um bom conhecimento da área a ser explorada, com uma pesquisa geológica de qualidade. Mas o fator político foi decisivo.
Paulo M. Leite - Por que?
GUILHERME ESTRELLA – No período que transcorreu a partir da reforma neoliberal da Constituição de 1988, com a consequente quebra do monopólio e a instalação do regime de concessão internacional, havia uma política não escrita mas praticada pelos governos da década de 90. Consistia em reduzir em 40% a presença da Petrobras nos trabalhos de engenharia e pesquisa. A razão disso era clara: pretendia-se estimular empresas estrangeiras a investir no Brasil. Estou convencido de que não era um comportamento casual, fruto de uma decisão de momento, mas uma decisão de caráter estratégico.
Paulo M. Leite – E como se fazia isso?
GUILHERME ESTRELLA – Impunha-se duas condicionantes a Petrobras. A primeira, era diminuir a participação da empresa nas licitações de blocos exploratórios promovidas pela Agencia Nacional do Petróleo, ANP. Disputando menos blocos, a empresa tinha menos áreas para pesquisar e explorar. A segunda consequência é que, na prática, essa situação obrigava a Petrobras a atuar apenas na bacia de Campos, então responsável por 80% da produção brasileira. Eram condicionantes gravíssimas para a empresa e para o Brasil.
Paulo M. Leite – E por que?
GUILHERME ESTRELLA – Vamos lembrar o que acontecia em 2002. Naquele momento, os blocos exploratórios da Petrobras eram suficientes para companhia manter sua atividade apenas até 2008. Pensando aonde poderíamos estar, se essa visão fosse mantida, é difícil imaginar o destino da companhia. Com certeza, seria uma empresa menor e mais fragil. Só para dar uma ideia. Em 2002, investimentos em pesquisa ficavam em US$ 110 milhões. Hoje, se encontram em US$ 1,1 bilhão. O lucro líquido foi de R$ 8,1 bilhões em 2002. Em 2013, passava de US$ 23 bilhões. Nós tínhamos 11 bilhões de barris em reservas. Hoje, são 16,5 bilhões. Se aquelas condicionantes fossem atendidas, vários blocos já sob domínio da Petrobras já teriam sido devolvidos a ANP em agosto de 2003.
Paulo M. Leite – Qual era o outro efeito grave dessas condicionantes?
GUILHERME ESTRELLA – Num fato elementar do setor de E & P da nossa indústria , os campos de petróleo e ou gás natural perdem produção de modo acentuado após cinco anos. Em média, a perda pode chegar a 10% ao ano. Podemos imaginar o que isso iria significar para a Petrobras: uma situação, absolutamente fora de controle, da perda de sustentabilidade nos dez anos seguintes. Era um quadro de risco que estava começando em 2002.
Paulo M. Leite – O que aconteceu então?
GUILHERME ESTRELLA – Logo depois da posse do novo presidente eleito rompeu-se com a política neoliberal que estava em vigor, e que gerava uma relação perigosa de dependência externa. Numa decisão impecável, do ponto de estratégico, que foi ficando clara em inúmeros pronunciamentos, ele mudou a mensagem que vinha do governo. Mais uma vez de forma não escrita, dizia que a Petrobras iria reassumir sua posição de principal condutora do setor petrolífero, voltando a participar de forma concreta na retomada do desenvolvimento industrial brasileira.
Paulo M. Leite – Sabemos que essa postura foi bem recebida dentro da empresa. Por que?
GUILHERME ESTRELA – Não poderia ser de outra forma. Estávamos falando em investir fortemente nos blocos que, na situação anterior, deveriam ser devolvidos a ANP já em agosto. Foi assim que descobrimos os Santos os campos de Uruguá e Tambaú, de petróleo. Também encontramos o campo de gás de Mexilhão.
Paulo M. Leite – Não era Mexilhinho?
GUILHERME ESTRELA – Nunca foi. Esse termo depreciativo em relação a Petrobras e seus funcionários, foi uma fruto de uma crítica precipitada, de quem estava impaciente para condenar a nova orientação política da empresa. Na verdade, era uma avaliação em cima dos primeiros resultados da exploração, quando se colhe uma amostra parcial, incerta, que deve ser confirmada ou desmentida mais adiante. Estava totalmente errada. Com o tempo, revelou-se que Mexilhão era, simplesmente, maior campo de gás natural já descoberto em território brasileiro.
Paulo M. Leite – O efeito da nova postura do governo foi imediato, então?
GUILHERME ESTRELLA – Sim. Com essas três descobertas foi possível confirmar a existência de um "sistema petrolífero" na bacia de Santos. Até então, ela ficara relegada ao segundo plano nas prioridades exploratórias da Petrobras. Isso porque, sem investimentos em novas pesquisas, parecia conter, numa área de extensão gigantesca, um único e pequeno campo de gás natural, descoberto pela Shell, ainda no período dos contratos de risco da década de 1970. Na bacia do Espírito Santo foi descoberto o Campo de Golfinho, de óleo leve (de menor custo de refino) e muito gás. Foram abertas, assim, perspectivas exploratórias muito interessantes naquela bacia sedimentar, logo acima de Campos. Até então, ela era considerada não atrativa para as atividades da empresa. Tanto assim que a decisão de fechar a unidade de E&P, em Vitória, já estava tomada.
Paulo M. Leite – Qual a importância dessa nova postura para a descoberta do pré-sal?
GUILHERME ESTRELLA – A partir deste momento, estávamos a um passo do pré-sal. Não vamos nos enganar. A base de qualquer avanço de envergadura consiste em aproveitar oportunidades exploratórias criadas pela competência técnica e geocientífica de uma companhia. Por essa razão é correto dizer que tudo o que veio depois significou o coroamento das decisões estratégicas de 2003. Seguindo nesta direção, na licitação da ANP daquele ano a Petrobras foi bastante agressiva. Arrematou inúmeros blocos, dentro e fora da bacia de Campos, persistindo na tendência que permitiu recompor a forte posição exploratória da companhia a longo prazo.
Paulo M. Leite – Como as concorrentes estrangeiras reagiram a essa postura?
GUILHERME ESTRELLA – Um fato importante da licitação de 2003, que marcou uma virada estratégica, é que a área corporativa da Petrobras havia costurado alianças de participação com empresas estatais e também privadas estrangeiras. Mas, num ato conjunto, totalmente inesperado, elas simplesmente nos comunicaram, às vésperas da licitação, que não estavam mais interessadas nas alianças anteriores.
Paulo M. Leite – O que isso queria dizer?
GUILHERME ESTRELLA – Em meu entendimento, foi uma clara reação contra o governo. Elas demonstraram que as decisões já tomadas não atendiam seus interesses. Diante disso, a reação da Petrobras foi a de aumentar a agressividade na licitação. Isso permitiu a recomposição de nossa carteira exploratória, agora 100% Petrobras, para os anos vindouros.
Paulo M. Leite – Nós sabemos que entre 2007 e 2010, quando o governo brasileiro criou e depois conseguiu aprovar as regras do pré-sal no Congresso, o bicho pegou justamente na hora em que se garantiu a condição da Petrobras como operadora única, com participação obrigatória mínima de 30%. É justamente este ponto que o projeto de José Serra pretende modificar. Qual a importância dessa decisão?
GUILHERME ESTRELLA – Para entender: é o operador que decide a tecnologia de construção de poços e de produção de óleo e gás. Este trabalho oferece uma extraordinária oportunidade de pesquisa e desenvolvimento para todo tipo de inovações tecnológicas e operacionais. O pré sal brasileiro encontra-se a mais de 2000 metros de profundidade de mar. É a última fronteira geológica disponível para a produção de óleo e gás. A empresa que opera suas atividades será imensamente beneficiada, pois tudo passa por sua mão. Ela define a engenharia de projetos e de operação dos grandes sistemas de produção submarina. Também toma decisões sobre o trabalho no fundo do mar, a coleta e transporte até as unidades flutuantes, navios ou plataformas. São dimensões de amplo espectro, que representam o grande saldo de conhecimento para o futuro, para os novos mercados e novas oportunidades.
Paulo M. Leite – Como se tomou a decisão de garantir a Petrobras como operadora única?
ESTRELLA – O governo sofreu pressões de todos os lados. Na própria Petrobras, um grande contingente de técnicos não conseguia vislumbrar a extraordinária oportunidade para o desenvolvimento nacional que a condição de operadora única representa. Havia a mesma dúvida em diversos níveis do governo federal. E é claro que já ocorriam pressões diretas das partes interessadas em mudar as regras a seu favor. Isso explica o email de agosto de 2009, quando a gerente no Brasil de uma petrolífera norte-americana, escreveu a seus superiores nos EUA. Alertava que o pre sal era uma grande ameaça aos interesses das empresas norte-americanas mas chamava a atenção para o fato de que se o candidato a presidente José Serra vencesse as eleições em 2010, aquele marco seria revogado. Convém lembrar que não foi a única manifestação neste sentido. Naquela época, recebi a visita de um cônsul dos Estados Unidos, em meu gabinete, falando do interesse de empresas de seu país em participar do pre sal. Ouvi um mesmo apelo de um executivo que visitei a trabalho no Texas.
Paulo M. Leite – O que aconteceu de lá para cá?
ESTRELLA – Até aqui soubemos resistir a todas as pressões. Tanto a postura do governo à época, como a votação do Congresso, que aprovou a legislação adequada, garantiram à Petrobras as condições de realizar um processo de desenvolvimento científico e tecnológico brasileiro, autônomo, em benefício da sociedade, da população e de empresas genuinamente brasileiras. Em cada área de competência, todos tiveram a oportunidade de mostrar capazes em escala mundial. A prova está na produção. Num prazo relativamente curto, em junho a produção do pré sal brasileiro fechou em 1,2 milhão de barris por dia, número recorde, que já representa quase metade da produção total do país.
Paulo M. Leite – Ao lado do então presidente da Petrobras, Sergio Gabrielli, o senhor participou de discussões com o presidente Lula, em 2007, quando se confirmou a existência do pré sal. Como foi?
ESTRELLA – É preciso lembrar o que estava acontecendo no mercado mundial de petróleo naquele momento para se ter uma ideia da importância da discussão que fazíamos em Brasília. O Iraque havia sido invadido, ocupado e destruído. A causa, como o planeta inteiro sabia, era a crescente dependência energética da Europa do petróleo e gás da Rússia, e dos Estados Unidos em relação ao Oriente Médio. Neste cenário energético desesperador para as nações hegemônicas ocidentais, obrigadas a mobilizar a OTAN e a realizar uma guerra, o Brasil aparece do outro lado do Atlântico, tirando da cartola a maior província petrolífera descoberta em 50 anos em todo o planeta. Pode-se imaginar o tipo de pressão que passamos a receber.
Paulo M. Leite – Quais pressões foram essas?
ESTRELLA – Por suas características, a descoberta do pré sal exigia uma mudança no sistema de exploração em vigor no país até então. O velho sistema de concessão precisava ser substituído pelo sistema de partilha, caso contrário o Brasil deixaria de receber os maiores benefícios da descoberta que acabava de ser feita.
Paulo M. Leite – O que precisava mudar?
ESTRELLA – Sabemos que o regime de concessão só é conveniente em situações de risco, onde quem procura petróleo não pode saber o que vai encontrar após a perfuração. Em compensação, quando encontra o que procura, as regras lhe garantem a propriedade integral da área. Mas estava claro, na primeira exposição feita ao presidente, com base numa área chamada de "Picanha Azul", porque tinha a forma de carne para churrasco, que não havia risco algum. Era um caso de risco exploratório zero. Neste caso, de risco zero, o regime de concessão deixava de ser interessante. Também precisávamos garantir que a Petrobras se tornasse a operadora única do pré-sal, em função dos benefícios envolvidos. Não eram, no entanto, decisões politicamente simples nem fáceis.
Paulo M. Leite– Por que?
ESTRELLA – A simples perspectiva de que estávamos a tratar de uma província petrolífera imensa, em termos mundiais, não era aceita por todos, mesmo na Petrobras. Havia o receio de que, com todas limitações que o conhecimento da geologia apresenta – lida-se com dados indiretos, que devem ser interpretados – poderia ser muito arriscado para o governo tomar decisões desse porte. Além disso, queríamos fazer uma mudança de legislação que equivale a retirar a propriedade de grandes reservas técnicas das grandes empresas privadas internacionais, que são, mundo afora, as responsáveis técnicas por se apropriarem de reservas de petróleo e gás natural para abastecer seus países sede e lhes garantirem, estrategicamente, segurança energética nacional.
Paulo M. Leite– Qual foi a reação a isso?
ESTRELLA – Estamos falando de uma mudança de enorme significado geopolítico, de abrangência mundial. Quando a descoberta do pré sal brasileiro foi tornada pública, em meados de 2007, a quarta frota da Marinha de guerra norte-americana foi reativada para atuar no Atlântico Sul, num sinal contundente de que a nação hegemônica ocidental havia inserido o Brasil e sua gigantesca descoberta entre seus interesses estratégicos.
Paulo M. Leite – O que se passou a seguir?
ESTRELLA – O governo estava decidido a retirar a Picanha Azul da 9a. rodada de licitações da ANP, marcada para o segundo semestre. Eram necessários retirar os 41 blocos de uma licitação cuja abrangência já era formalmente conhecida, pelo edital já publicado. Apesar da posição do presidente, havia resistências internas. O argumento é que aquilo poderia ser interpretado como uma "quebra de regras já estabelecidas com o setor petrolífero mundial" e que poderiam haver "retaliações" por parte das empresas petroleiras estrangeiras no sentido de não mais investir no Brasil. Era este o debate. Em nada muito diferente daquilo que vemos hoje, como sabemos.
Paulo M. Leite – O que o governo fez?
ESTRELLA – Nós, geólogos, engenheiros, pesquisadores, antevíamos a possibilidade do pre sal ser a viga mestra da energia necessária para o desenvolvimento do país. Era o que conseguíamos enxergar. Num estalo, bolaram o fundo social a ser abastecido com abundantes recursos financeiros para saúde, educação, emprego e moradia, sem falar em ciência e tecnologia.
Paulo M. Leite – Como o senhor entende o projeto elaborado pelo Serra?
ESTRELLA – Ele retira da Petrobras a responsabilidade de atuar como operadora unica do pré sal brasileiro. Cria o "direito de escolha", outorgando a empresa a decisão de participar ou não dos consórcios formados nos leilos da ANP para disputar os blocos do pré sal.
Paulo M. Leite – O que isso significa?
ESTRELLA – O projeto fere a essência do marco regulatório na media em que o abrangente leque de oportunidades de pesquisa e desenvolvimento pode ser transferido para outra empresa, certamente estrangeira, pois não há empresa de capital nacional com porte e capacitação para a atividade. O que se quer é mudar uma situação que vai selar a Petrobras como a mais competitiva e competente empresa petrolífera do planeta.
Paulo M. Leite – A importância do pré sal é tão grande assim?
ESTRELLA – Estamos falando do filé mignon da indústria de petróleo mundial. Tanto é assim que, com base nos resultados obtidos pela Petrobras no Brasil, a Exxon norte-americana conseguiu um acordo para se tornar operadora única do pre sal em Angola. Ninguém vai dizer que a regra que vale para a Exxon não é boa para a Petrobrás, certo?
Paulo M. Leite – Do ponto específico do Brasil, qual a vantagem da operadora única?
ESTRELLA – Na prática, significa renunciar a uma oportunidade – quem sabe única – de desenvolvimento tecnológico industrial sustentado.
Paulo M. Leite – Um dos mistérios do pré-sal consiste em saber o que aconteceu com a Shell: como é que um dos gigantes privados do petróleo mundial, que chegou tão perto do pré sal, perdeu uma oportunidade dessas?
ESTRELLA – Realmente a empresa anglo-holandesa operou um bloco exploratório sob o regime de concessão, na mesma área onde mais tarde a Petrobras descobriu o campo de Libra. A diferença estava no conhecimento que a empresa possuía sobre a área. Ela tinha como objetivo fazer pesquisas nos reservatórios acima do camada de sal, que na bacia de campos são os principais produtores. Ao atravessar essa seção geológica, decidiu interromper a perfuração, dar o bloco como testado e devolver a área a ANP.
Paulo M. Leite – Como isso foi possível?
ESTRELLA – Minha interpretação pessoal é que ocorreram dois fatores. Ao contrário da Petrobras, a Shell desconhecia as reais possibilidades daquele "sistema petrolífero" que produziu praticamente todo o petróleo e gás natural descoberto na extensa costa brasileira, em particular na bacia de Campos, até então a maior produtora. Também deve ter considerado os altos custos de prosseguir a perfuração. Sem poder avaliar o enorme potencial que poderia ser encontrado imediatamente abaixo de uma espessa camada de sal, decidiu não testá-lo.
Paulo M. Leite – Pode-se concluir alguma coisa desse episódio?
ESTRELLA – É possível fazer várias reflexões. A primeira é lembrar que a atividade de explorar e produzir petróleo não é um negócio para banqueiros. Envolve grandes investimentos, alto risco e a possibilidade de grandes perdas. Quem for fazer cálculos na ponta do lápis irá concluir que é mais garantido investir na poupança da Caixa Econômica, em troca daquela modesta remuneração mensal. Um poço exploratório de petróleo em alto mar não custa menos de US$ 50 milhões. As chances de sucesso, na média mundial, são de uma descoberta em cada dez tentativas. É quase uma aventura, o que reforça a necessidade de investir em pesquisas, que permitem ter um conhecimento científico real, apoiado em realidades concretas. Essa foi outra diferença entre a Petrobras e as demais empresas. Nossas pesquisas sempre nos colocaram a frente em matéria de conhecimento em águas brasileiras. Os críticos podem não aceitar mas o pré sal confirma isso.
GUILHERME ESTRELLA – Para entender: é o operador que decide a tecnologia de construção de poços e de produção de óleo e gás. Este trabalho oferece uma extraordinária oportunidade de pesquisa e desenvolvimento para todo tipo de inovações tecnológicas e operacionais. O pré sal brasileiro encontra-se a mais de 2000 metros de profundidade de mar. É a última fronteira geológica disponível para a produção de óleo e gás. A empresa que opera suas atividades será imensamente beneficiada, pois tudo passa por sua mão. Ela define a engenharia de projetos e de operação dos grandes sistemas de produção submarina. Também toma decisões sobre o trabalho no fundo do mar, a coleta e transporte até as unidades flutuantes, navios ou plataformas. São dimensões de amplo espectro, que representam o grande saldo de conhecimento para o futuro, para os novos mercados e novas oportunidades.
Paulo M. Leite – Como se tomou a decisão de garantir a Petrobras como operadora única?
ESTRELLA – O governo sofreu pressões de todos os lados. Na própria Petrobras, um grande contingente de técnicos não conseguia vislumbrar a extraordinária oportunidade para o desenvolvimento nacional que a condição de operadora única representa. Havia a mesma dúvida em diversos níveis do governo federal. E é claro que já ocorriam pressões diretas das partes interessadas em mudar as regras a seu favor. Isso explica o email de agosto de 2009, quando a gerente no Brasil de uma petrolífera norte-americana, escreveu a seus superiores nos EUA. Alertava que o pre sal era uma grande ameaça aos interesses das empresas norte-americanas mas chamava a atenção para o fato de que se o candidato a presidente José Serra vencesse as eleições em 2010, aquele marco seria revogado. Convém lembrar que não foi a única manifestação neste sentido. Naquela época, recebi a visita de um cônsul dos Estados Unidos, em meu gabinete, falando do interesse de empresas de seu país em participar do pre sal. Ouvi um mesmo apelo de um executivo que visitei a trabalho no Texas.
Paulo M. Leite – O que aconteceu de lá para cá?
ESTRELLA – Até aqui soubemos resistir a todas as pressões. Tanto a postura do governo à época, como a votação do Congresso, que aprovou a legislação adequada, garantiram à Petrobras as condições de realizar um processo de desenvolvimento científico e tecnológico brasileiro, autônomo, em benefício da sociedade, da população e de empresas genuinamente brasileiras. Em cada área de competência, todos tiveram a oportunidade de mostrar capazes em escala mundial. A prova está na produção. Num prazo relativamente curto, em junho a produção do pré sal brasileiro fechou em 1,2 milhão de barris por dia, número recorde, que já representa quase metade da produção total do país.
Paulo M. Leite – Ao lado do então presidente da Petrobras, Sergio Gabrielli, o senhor participou de discussões com o presidente Lula, em 2007, quando se confirmou a existência do pré sal. Como foi?
ESTRELLA – É preciso lembrar o que estava acontecendo no mercado mundial de petróleo naquele momento para se ter uma ideia da importância da discussão que fazíamos em Brasília. O Iraque havia sido invadido, ocupado e destruído. A causa, como o planeta inteiro sabia, era a crescente dependência energética da Europa do petróleo e gás da Rússia, e dos Estados Unidos em relação ao Oriente Médio. Neste cenário energético desesperador para as nações hegemônicas ocidentais, obrigadas a mobilizar a OTAN e a realizar uma guerra, o Brasil aparece do outro lado do Atlântico, tirando da cartola a maior província petrolífera descoberta em 50 anos em todo o planeta. Pode-se imaginar o tipo de pressão que passamos a receber.
Paulo M. Leite – Quais pressões foram essas?
ESTRELLA – Por suas características, a descoberta do pré sal exigia uma mudança no sistema de exploração em vigor no país até então. O velho sistema de concessão precisava ser substituído pelo sistema de partilha, caso contrário o Brasil deixaria de receber os maiores benefícios da descoberta que acabava de ser feita.
Paulo M. Leite – O que precisava mudar?
ESTRELLA – Sabemos que o regime de concessão só é conveniente em situações de risco, onde quem procura petróleo não pode saber o que vai encontrar após a perfuração. Em compensação, quando encontra o que procura, as regras lhe garantem a propriedade integral da área. Mas estava claro, na primeira exposição feita ao presidente, com base numa área chamada de "Picanha Azul", porque tinha a forma de carne para churrasco, que não havia risco algum. Era um caso de risco exploratório zero. Neste caso, de risco zero, o regime de concessão deixava de ser interessante. Também precisávamos garantir que a Petrobras se tornasse a operadora única do pré-sal, em função dos benefícios envolvidos. Não eram, no entanto, decisões politicamente simples nem fáceis.
Paulo M. Leite– Por que?
ESTRELLA – A simples perspectiva de que estávamos a tratar de uma província petrolífera imensa, em termos mundiais, não era aceita por todos, mesmo na Petrobras. Havia o receio de que, com todas limitações que o conhecimento da geologia apresenta – lida-se com dados indiretos, que devem ser interpretados – poderia ser muito arriscado para o governo tomar decisões desse porte. Além disso, queríamos fazer uma mudança de legislação que equivale a retirar a propriedade de grandes reservas técnicas das grandes empresas privadas internacionais, que são, mundo afora, as responsáveis técnicas por se apropriarem de reservas de petróleo e gás natural para abastecer seus países sede e lhes garantirem, estrategicamente, segurança energética nacional.
Paulo M. Leite– Qual foi a reação a isso?
ESTRELLA – Estamos falando de uma mudança de enorme significado geopolítico, de abrangência mundial. Quando a descoberta do pré sal brasileiro foi tornada pública, em meados de 2007, a quarta frota da Marinha de guerra norte-americana foi reativada para atuar no Atlântico Sul, num sinal contundente de que a nação hegemônica ocidental havia inserido o Brasil e sua gigantesca descoberta entre seus interesses estratégicos.
Paulo M. Leite – O que se passou a seguir?
ESTRELLA – O governo estava decidido a retirar a Picanha Azul da 9a. rodada de licitações da ANP, marcada para o segundo semestre. Eram necessários retirar os 41 blocos de uma licitação cuja abrangência já era formalmente conhecida, pelo edital já publicado. Apesar da posição do presidente, havia resistências internas. O argumento é que aquilo poderia ser interpretado como uma "quebra de regras já estabelecidas com o setor petrolífero mundial" e que poderiam haver "retaliações" por parte das empresas petroleiras estrangeiras no sentido de não mais investir no Brasil. Era este o debate. Em nada muito diferente daquilo que vemos hoje, como sabemos.
Paulo M. Leite – O que o governo fez?
ESTRELLA – Nós, geólogos, engenheiros, pesquisadores, antevíamos a possibilidade do pre sal ser a viga mestra da energia necessária para o desenvolvimento do país. Era o que conseguíamos enxergar. Num estalo, bolaram o fundo social a ser abastecido com abundantes recursos financeiros para saúde, educação, emprego e moradia, sem falar em ciência e tecnologia.
Paulo M. Leite – Como o senhor entende o projeto elaborado pelo Serra?
ESTRELLA – Ele retira da Petrobras a responsabilidade de atuar como operadora unica do pré sal brasileiro. Cria o "direito de escolha", outorgando a empresa a decisão de participar ou não dos consórcios formados nos leilos da ANP para disputar os blocos do pré sal.
Paulo M. Leite – O que isso significa?
ESTRELLA – O projeto fere a essência do marco regulatório na media em que o abrangente leque de oportunidades de pesquisa e desenvolvimento pode ser transferido para outra empresa, certamente estrangeira, pois não há empresa de capital nacional com porte e capacitação para a atividade. O que se quer é mudar uma situação que vai selar a Petrobras como a mais competitiva e competente empresa petrolífera do planeta.
Paulo M. Leite – A importância do pré sal é tão grande assim?
ESTRELLA – Estamos falando do filé mignon da indústria de petróleo mundial. Tanto é assim que, com base nos resultados obtidos pela Petrobras no Brasil, a Exxon norte-americana conseguiu um acordo para se tornar operadora única do pre sal em Angola. Ninguém vai dizer que a regra que vale para a Exxon não é boa para a Petrobrás, certo?
Paulo M. Leite – Do ponto específico do Brasil, qual a vantagem da operadora única?
ESTRELLA – Na prática, significa renunciar a uma oportunidade – quem sabe única – de desenvolvimento tecnológico industrial sustentado.
Paulo M. Leite – Um dos mistérios do pré-sal consiste em saber o que aconteceu com a Shell: como é que um dos gigantes privados do petróleo mundial, que chegou tão perto do pré sal, perdeu uma oportunidade dessas?
ESTRELLA – Realmente a empresa anglo-holandesa operou um bloco exploratório sob o regime de concessão, na mesma área onde mais tarde a Petrobras descobriu o campo de Libra. A diferença estava no conhecimento que a empresa possuía sobre a área. Ela tinha como objetivo fazer pesquisas nos reservatórios acima do camada de sal, que na bacia de campos são os principais produtores. Ao atravessar essa seção geológica, decidiu interromper a perfuração, dar o bloco como testado e devolver a área a ANP.
Paulo M. Leite – Como isso foi possível?
ESTRELLA – Minha interpretação pessoal é que ocorreram dois fatores. Ao contrário da Petrobras, a Shell desconhecia as reais possibilidades daquele "sistema petrolífero" que produziu praticamente todo o petróleo e gás natural descoberto na extensa costa brasileira, em particular na bacia de Campos, até então a maior produtora. Também deve ter considerado os altos custos de prosseguir a perfuração. Sem poder avaliar o enorme potencial que poderia ser encontrado imediatamente abaixo de uma espessa camada de sal, decidiu não testá-lo.
Paulo M. Leite – Pode-se concluir alguma coisa desse episódio?
ESTRELLA – É possível fazer várias reflexões. A primeira é lembrar que a atividade de explorar e produzir petróleo não é um negócio para banqueiros. Envolve grandes investimentos, alto risco e a possibilidade de grandes perdas. Quem for fazer cálculos na ponta do lápis irá concluir que é mais garantido investir na poupança da Caixa Econômica, em troca daquela modesta remuneração mensal. Um poço exploratório de petróleo em alto mar não custa menos de US$ 50 milhões. As chances de sucesso, na média mundial, são de uma descoberta em cada dez tentativas. É quase uma aventura, o que reforça a necessidade de investir em pesquisas, que permitem ter um conhecimento científico real, apoiado em realidades concretas. Essa foi outra diferença entre a Petrobras e as demais empresas. Nossas pesquisas sempre nos colocaram a frente em matéria de conhecimento em águas brasileiras. Os críticos podem não aceitar mas o pré sal confirma isso.
Paulo M. Leite– Só para retornar ao ponto urgente em discussão no Congresso, que envolve o projeto sobre o pré-sal brasileiro, a maior reserva de petróleo nos últimos 50 anos. O ponto central da mudança envolve retirar a Petrobras da condição de operadora única do pré-sal. Falamos disso antes, mas eu gostaria de saber se o senhor gostaria de acrescentar algo.
GUILHERME ESTRELLA – Eu acho importante reconhecer que na disputa pela soberania energética das nações, não há lugar para bom mocismo nem ingenuidade. É guerra entre mastodontes, que frequentemente envolve ações típicas de pirataria, em pleno século XXI, e também pode levar a confrontos abertos. A regra é: escreveu não leu, aparecem porta aviões ou cruzadores -- quando as reservas estão no mar.
Paulo M. Leite – O senhor não está exagerando?
GUILHERME ESTRELLA – Precisamos entender que “operador” de uma área está longe de ser apenas uma equipe técnica que cumpre determinações de quem obteve a concessão para pesquisar e explorar petróleo. Todas as empresas que participam de uma licitação vencedora, mesmo que não tenham a maioria das cotas, adquirem um status de “proprietário” das instalações, sistemas submarinos, navios de produção, equipamentos, tubulações de transferência. O operador é quem manda e desmanda. São as equipes do operador que, a bordo, embarcadas ou em terra, assumem a coordenação das operações. Também são elas que se apropriam, manuseiam e interpretam todos os dados de engenharia e geologia das rochas que produzem petróleo e gás natural dos sistemas implantados. Este sistema é cuidadosamente tratado pelo operador. Os segredos são guardados a sete chaves, pois são informações absolutamente confidenciais, apontam para novas descobertas e prioridades de investimentos.
Paulo M. Leite – Para os leigos, esse debate sobre “operador exclusivo” parece um debate técnico, sem maiores consequências na exploração do petróleo, sem nenhuma implicação sobre a soberania de uma nação...
GUILHERME ESTRELLA – As “prerrogativas” do operador têm um incalculável valor científico, tecnológico e financeiro para a empresa que comanda os trabalhos. Imaginemos uma gigantesca instalação de uma empresa estrangeira, que trabalha para o país-sede e até se confunde com seu governo, produzindo enormes volumes de petróleo e gás natural, insumos estratégicos, essenciais, para seus países de origem. Em termos financeiros, coisa de uma dezena de bilhões de dólares investidos. A bordo, centenas de cidadão estrangeiros: técnicos, engenheiros, geólogos, especialistas de alto padrão profissional. Peculiaridade: este magnífico sistema industrial marítimo se localizada a 300 km de nossa costa, nas proximidades dos limites de nossa zona econômica exclusiva, a chamada “Amazonia Azul.” Pois bem. Como é frequente em investimentos dessa natureza, chega um dia em que surgem divergências de qualquer tipo. Nas últimas décadas, no mundo do petróleo e gás, essas divergências têm sido muito comuns, como todos sabemos. Neste caso, o Brasil, no exercício de sua soberania, toma a decisão de intervir nas instalações. Estamos falando de uma decisão de envergadura, quando um acordo comercial se torna uma questão política. Alguém poderia me dizer o que aconteceria? A Marinha certamente está preocupada com isso.
Paulo M. Leite – Em 1976, o senhor participou da descoberta do campo de Majnoon, no Iraque, um dos grandes campos de petróleo do mundo, na época, episódio que também produziu ensinamentos úteis para o Brasil. Como foi?
GUILHERME ESTRELLA – A história do super campo de Majnoon, com uma reserva que chegamos a estimar em 80 bilhões de barris, é especialmente importante, porque ajuda a entender o caráter criminoso que pode assumir a disputa pelas áreas ricas em petróleo. Este campo era o verdadeiro alvo, o grande botim procurado pelos invasores do Iraque em nome da chamada Colização da OTAN, promovendo um genocídio que envergonha qualquer noção de civilização. A barbárie promovida no Iraque, com base na mentira inventada de que o país possuía armas de destruição em massa, é uma lição exemplar sobre a absoluta falta de qualquer sentido ético por parte do esforço das grandes potências para garantir seu suprimento de gás e petróleo. A causa real dessa invasão, um ato de pirataria em pleno século XXI, foi a tentativa, apoiada por tropas e forças mercenárias, de recuperar Majnoon.
Paulo M. Leite – Qual a relação da Petrobras com Majnoon?
GUILHERME ESTRELLA – No início da década de 1970, o Brasil vivia uma fase de grande crescimento econômico. Mas, naquele tempo, nossa produção de petróleo era baixa: as importações cobriam 80% das necessidades do país. Não tínhamos pesquisas apuradas, capazes de identificar a riqueza de nossos reservas e, por isso, em 1972 foi criada a Petrobras Internacional, Braspetro. Sua missão era explorar e produzir petróleo no exterior, usando a tecnologia que já possuíamos para reforçar o suprimento nacional. Em julho de 1971, o governo do Iraque nacionalizou as empresas estrangeiras que controlavam o setor de petróleo e gás do país. Numa decisão obviamente a mando dos países de origem dessas empresas – Estados Unidos, Reino Unido, França e Holanda – a Corte Internacional de Haia decretou o bloqueio do petróleo iraquiano, que a partir de então não poderia ser comercializado. Era uma forma de estrangular um esforço legítimo de um país por sua soberania, que inclui o melhor aproveitamento possível dos recursos naturais, que deve ser assegurado a toda nação. Em 1973, o preço do barril de petróleo quadriplicou. Numa medida que seria seguida por outros países, que se recusavam a arcar com um prejuízo que não lhes dizia respeito, o governo brasileiro decidiu quebrar esse o bloqueio. Naquele período, Ernesto Geisel era o presidente da Petrobras. Os países da OPEP fizeram um movimento na mesma direção. Para estimular a chegada de investimentos de fora, criaram a categoria de “cliente preferencial”, que envolvia um conjunto de facilidades para países importadores dispostos a exploração petróleo em seus territórios. Era uma decisão política, como tudo o que acontece no petróleo.
Paulo M. Leite – Quando Braspetro decidiu ir para o Iraque?
GUILHERME ESTRELLA – A empresa foi para o Iraque em 1973, logo iniciando os trabalhos de exploração. Mesmo com apoio de excelentes estudos de geologia de superfície e de geofísica, nós sabemos que é um trabalho de risco. O primeiro poço foi aberto -- sem sucesso. Mas aprovamos a perfuração de um segundo poço. Era Majnoon, onde assumi, em 1976, o cargo de gerente de exploração. Num trabalho de equipe, que envolveu vários profissionais por um longo período de estudo, e que não deve de forma alguma ser visto como fruto de uma ação individual, logo surgiram sinais de que se tratava de uma reserva realmente enorme. Tão grande que, nos anos seguintes, era possível perceber que havia sido criada uma situação insustentável, do ponto de vista político e estratégico. O governo do Iraque não tinha condições de deixar a exploração de Majnoon com uma empresa de país estrangeiro, ainda que fosse do Brasil, país que se recusara a participar do boicote. Em 1978, o contrato foi suspenso. É bom reconhecer que não éramos donos de Majnoon. Éramos prestadores de serviço do governo iraquiano, apenas.
Paulo M. Leite – O que aconteceu depois?
GUILHERME ESTRELLA – Foi feito um grande movimento, por parte do governo dos Estados Unidos e seus aliados, para recuperar a situação anterior. Entramos, assim, numa época em que a disputa pelo abastecimento de petróleo, até hoje responsável por 90% da energia que move a economia e a vida cotidiana do planeta, assume o caráter aberto de uma disputa militar permanente. Ela provocou a destruição da Líbia como país e como sociedade organizada. Idêntica situação viveu o Egito. O povo foi à rua e derrubou uma ditadura de 40 anos. O novo presidente, eleito democraticamente, só precisou murmurar que, em sua opinião, os contratos de gás natural do Delta do Nilo precisavam ser revistos, em benefício da população do país. Semanas depois, foi deposto e uma nova ditadura instalada no país. O que está acontecendo no Brasil, país que acabou de descobrir imensas reservas de seu petróleo e gás, as mais promissoras em 50 anos?
Paulo M. Leite – O que está acontecendo?
GUILHERME ESTRELLA – Tudo o que os governos que representam as grandes empresas de petróleo desejam é retornar ao mundo anterior a 1971. Convém lembrar que nessa época toda resistência era vencida pela força, como aconteceu com o golpe que instaurou a ditadura pró-Estados Unidos de Reza Pahlevi, e na intervenção na Argélia.
GUILHERME ESTRELLA – Eu acho importante reconhecer que na disputa pela soberania energética das nações, não há lugar para bom mocismo nem ingenuidade. É guerra entre mastodontes, que frequentemente envolve ações típicas de pirataria, em pleno século XXI, e também pode levar a confrontos abertos. A regra é: escreveu não leu, aparecem porta aviões ou cruzadores -- quando as reservas estão no mar.
Paulo M. Leite – O senhor não está exagerando?
GUILHERME ESTRELLA – Precisamos entender que “operador” de uma área está longe de ser apenas uma equipe técnica que cumpre determinações de quem obteve a concessão para pesquisar e explorar petróleo. Todas as empresas que participam de uma licitação vencedora, mesmo que não tenham a maioria das cotas, adquirem um status de “proprietário” das instalações, sistemas submarinos, navios de produção, equipamentos, tubulações de transferência. O operador é quem manda e desmanda. São as equipes do operador que, a bordo, embarcadas ou em terra, assumem a coordenação das operações. Também são elas que se apropriam, manuseiam e interpretam todos os dados de engenharia e geologia das rochas que produzem petróleo e gás natural dos sistemas implantados. Este sistema é cuidadosamente tratado pelo operador. Os segredos são guardados a sete chaves, pois são informações absolutamente confidenciais, apontam para novas descobertas e prioridades de investimentos.
Paulo M. Leite – Para os leigos, esse debate sobre “operador exclusivo” parece um debate técnico, sem maiores consequências na exploração do petróleo, sem nenhuma implicação sobre a soberania de uma nação...
GUILHERME ESTRELLA – As “prerrogativas” do operador têm um incalculável valor científico, tecnológico e financeiro para a empresa que comanda os trabalhos. Imaginemos uma gigantesca instalação de uma empresa estrangeira, que trabalha para o país-sede e até se confunde com seu governo, produzindo enormes volumes de petróleo e gás natural, insumos estratégicos, essenciais, para seus países de origem. Em termos financeiros, coisa de uma dezena de bilhões de dólares investidos. A bordo, centenas de cidadão estrangeiros: técnicos, engenheiros, geólogos, especialistas de alto padrão profissional. Peculiaridade: este magnífico sistema industrial marítimo se localizada a 300 km de nossa costa, nas proximidades dos limites de nossa zona econômica exclusiva, a chamada “Amazonia Azul.” Pois bem. Como é frequente em investimentos dessa natureza, chega um dia em que surgem divergências de qualquer tipo. Nas últimas décadas, no mundo do petróleo e gás, essas divergências têm sido muito comuns, como todos sabemos. Neste caso, o Brasil, no exercício de sua soberania, toma a decisão de intervir nas instalações. Estamos falando de uma decisão de envergadura, quando um acordo comercial se torna uma questão política. Alguém poderia me dizer o que aconteceria? A Marinha certamente está preocupada com isso.
Paulo M. Leite – Em 1976, o senhor participou da descoberta do campo de Majnoon, no Iraque, um dos grandes campos de petróleo do mundo, na época, episódio que também produziu ensinamentos úteis para o Brasil. Como foi?
GUILHERME ESTRELLA – A história do super campo de Majnoon, com uma reserva que chegamos a estimar em 80 bilhões de barris, é especialmente importante, porque ajuda a entender o caráter criminoso que pode assumir a disputa pelas áreas ricas em petróleo. Este campo era o verdadeiro alvo, o grande botim procurado pelos invasores do Iraque em nome da chamada Colização da OTAN, promovendo um genocídio que envergonha qualquer noção de civilização. A barbárie promovida no Iraque, com base na mentira inventada de que o país possuía armas de destruição em massa, é uma lição exemplar sobre a absoluta falta de qualquer sentido ético por parte do esforço das grandes potências para garantir seu suprimento de gás e petróleo. A causa real dessa invasão, um ato de pirataria em pleno século XXI, foi a tentativa, apoiada por tropas e forças mercenárias, de recuperar Majnoon.
Paulo M. Leite – Qual a relação da Petrobras com Majnoon?
GUILHERME ESTRELLA – No início da década de 1970, o Brasil vivia uma fase de grande crescimento econômico. Mas, naquele tempo, nossa produção de petróleo era baixa: as importações cobriam 80% das necessidades do país. Não tínhamos pesquisas apuradas, capazes de identificar a riqueza de nossos reservas e, por isso, em 1972 foi criada a Petrobras Internacional, Braspetro. Sua missão era explorar e produzir petróleo no exterior, usando a tecnologia que já possuíamos para reforçar o suprimento nacional. Em julho de 1971, o governo do Iraque nacionalizou as empresas estrangeiras que controlavam o setor de petróleo e gás do país. Numa decisão obviamente a mando dos países de origem dessas empresas – Estados Unidos, Reino Unido, França e Holanda – a Corte Internacional de Haia decretou o bloqueio do petróleo iraquiano, que a partir de então não poderia ser comercializado. Era uma forma de estrangular um esforço legítimo de um país por sua soberania, que inclui o melhor aproveitamento possível dos recursos naturais, que deve ser assegurado a toda nação. Em 1973, o preço do barril de petróleo quadriplicou. Numa medida que seria seguida por outros países, que se recusavam a arcar com um prejuízo que não lhes dizia respeito, o governo brasileiro decidiu quebrar esse o bloqueio. Naquele período, Ernesto Geisel era o presidente da Petrobras. Os países da OPEP fizeram um movimento na mesma direção. Para estimular a chegada de investimentos de fora, criaram a categoria de “cliente preferencial”, que envolvia um conjunto de facilidades para países importadores dispostos a exploração petróleo em seus territórios. Era uma decisão política, como tudo o que acontece no petróleo.
Paulo M. Leite – Quando Braspetro decidiu ir para o Iraque?
GUILHERME ESTRELLA – A empresa foi para o Iraque em 1973, logo iniciando os trabalhos de exploração. Mesmo com apoio de excelentes estudos de geologia de superfície e de geofísica, nós sabemos que é um trabalho de risco. O primeiro poço foi aberto -- sem sucesso. Mas aprovamos a perfuração de um segundo poço. Era Majnoon, onde assumi, em 1976, o cargo de gerente de exploração. Num trabalho de equipe, que envolveu vários profissionais por um longo período de estudo, e que não deve de forma alguma ser visto como fruto de uma ação individual, logo surgiram sinais de que se tratava de uma reserva realmente enorme. Tão grande que, nos anos seguintes, era possível perceber que havia sido criada uma situação insustentável, do ponto de vista político e estratégico. O governo do Iraque não tinha condições de deixar a exploração de Majnoon com uma empresa de país estrangeiro, ainda que fosse do Brasil, país que se recusara a participar do boicote. Em 1978, o contrato foi suspenso. É bom reconhecer que não éramos donos de Majnoon. Éramos prestadores de serviço do governo iraquiano, apenas.
Paulo M. Leite – O que aconteceu depois?
GUILHERME ESTRELLA – Foi feito um grande movimento, por parte do governo dos Estados Unidos e seus aliados, para recuperar a situação anterior. Entramos, assim, numa época em que a disputa pelo abastecimento de petróleo, até hoje responsável por 90% da energia que move a economia e a vida cotidiana do planeta, assume o caráter aberto de uma disputa militar permanente. Ela provocou a destruição da Líbia como país e como sociedade organizada. Idêntica situação viveu o Egito. O povo foi à rua e derrubou uma ditadura de 40 anos. O novo presidente, eleito democraticamente, só precisou murmurar que, em sua opinião, os contratos de gás natural do Delta do Nilo precisavam ser revistos, em benefício da população do país. Semanas depois, foi deposto e uma nova ditadura instalada no país. O que está acontecendo no Brasil, país que acabou de descobrir imensas reservas de seu petróleo e gás, as mais promissoras em 50 anos?
Paulo M. Leite – O que está acontecendo?
GUILHERME ESTRELLA – Tudo o que os governos que representam as grandes empresas de petróleo desejam é retornar ao mundo anterior a 1971. Convém lembrar que nessa época toda resistência era vencida pela força, como aconteceu com o golpe que instaurou a ditadura pró-Estados Unidos de Reza Pahlevi, e na intervenção na Argélia.
Paulo M. Leite – O senhor fez carreira como geólogo na Petrobras, onde ingressou em 1964 e permaneceu até a aposentadoria. Retornou em 2003, como diretor, já no governo Lula. Como civil, o senhor acompanhou de perto o período do regime militar. Como analisa essa época?
GUILHERME ESTRELLA – É praticamente impossível fazer uma análise isenta de um período em que se praticou o terrorismo de Estado. Mas é possível tentar interpretar o papel e as responsabilidades, que as Forças Armadas assumiram no país. Aceito a visão de que possuem a soberania nacional como valor maior e que, quando este conceito está sendo subvertido, não incomoda sua consciência a iniciativa de extinguir, pela violência, o regime democrático, a Constituição, os direitos da cidadania e os direitos humanos. Foi o que aconteceu em 1964 e não há argumento que torne isso aceitável. Mas, dentro de uma exercício reflexivo distanciado, sobre a história do país, pode-se apontar, isoladamente, alguns fatos positivos. Foi assim ao aceitar a noção de que nossa deficiência no insumo "energia" sempre foi um entrave para nosso desenvolvimento, que representava uma ameaça à segurança nacional e que era preciso enfrentar isso. A ditadura militar sempre teve na Petrobras a ferramenta de governo nessa matéria.
Paulo M. Leite – Por que isso é tão importante?
GUILHERME ESTRELLA – Não acho difícil entender que o maior entrave no nosso processo industrial foi a deficiência energética. Perdemos a primeira revolução industrial porque não tínhamos carvão. Atravessamos o século XIX produzindo energia em padrões quase medievais. A base era a roda dágua, a tração animal, o carvão vegetal, o braço escravo. Perdemos a segunda revolução industrial porque não tínhamos petróleo. Nosso precário parque industrial estava condenado a produção de tecidos, calçados e outras mercadorias primárias, em empresas movidas a energia hidroelétrica, de pequenas usinas, com tecnologia e engenharia totalmente importadas. Nas décadas de 50, 60 e 70, construímos nossas grandes hidroelétricas e não há dúvida de que este foi o momento de decolagem -- mesmo assim supertardia -- da industrialização brasileira. Num país continental, sem ferrovias, onde tudo se baseava no transporte ferroviário, petróleo e gás seguiam sendo nosso calcanhar de aquiles. Os governos da ditadura conheciam esta realidade e fortaleceram a Petrobras, elevando bastante os investimentos em exploração de petróleo.
Paulo M. Leite – Como foi este esforço?
ESTRELLA – Num tempo de petróleo barato, a 3 dólares o barril, não era uma opção ditada pelo mercado. Não havia motivação para ganhos imediatos, como nunca houve em nossa indústria. Era uma decisão estratégica, que olhava para o futuro, que se mostrava menos fácil de alcançar do que muitos imaginavam. Primeiro alvo de exploração, as bacias terrestres não responderam. Em 1968 fomos para a plataforma continental, que se situa em até 200 metros na lâmina dágua. Logo no segundo poço descobrimos o campo de Guaricema, no mar de Sergipe, a 80 metros de profundidade. Seguiram-se outras descobertas. Seis anos mais tarde, em 1974, a Petrobras descobriu o campo de Garoupa, na Bacia de Campos, que abriu a grande perspectiva brasileira de produção de petróleo no mar. Foi um imenso progresso, mas a auto suficiência não estava no horizonte. Em 1975 o governo quebra o monopólio estatal da Petrobras e cria os chamados contratos de risco, abrindo a exploração no território nacional para empresas estrangeiras. Apesar da polêmica que os contratos de risco provocaram, a iniciativa acabou sendo frustrada pela falta de disposição, inapetência mesmo, daquelas empresas para enfrentar riscos exploratórios. Foi neste período que ocorreu um fato que, embora não seja muito lembrado hoje, acabou decidindo a história do setor petrolífero brasileiro.
Paulo M. Leite– O que foi?
ESTRELLA – Naquele momento, grande parte da área leste e sudeste da plataforma brasileira fora coberta pelo chamado método geofísico sismográfico de prospecção petrolífera. Para atender, também, objetivos estratégicos da Marinha, ligados a definição da zona marítima brasileira de interesse econômico exclusivo, a Petrobras atirou várias linhas sísmicas muito além do limite de 200 metros da plataforma continental. Chegou a águas de 1000 e até 2000 metros de profundidade. Estas linhas sísmicas mostraram diversas feições geológicas que, teoricamente, eram muito prospectivas para óleo e gás. Mas não havia tecnologia disponível para que se produzisse óleo e gás nessa profundidade.
Paulo M. Leite – O que aconteceu então?
ESTRELLA – Naquela segunda metade de 1970, ocorreu um fato que não é muito lembrado. Toda aquela faixa de águas profundas e promissoras, foi dividida e quadriculada, em grandes blocos quadrados, como se fosse um tabuleiro de xadrez. Metade eram blocos brancos, metade eram blocos negros. Por iniciativa do governo -- estávamos no período Geisel -- as empresas estrangeiras que se encontravam no país por causa dos contratos de risco foram chamadas a participar de leilões competitivos, onde seriam oferecidas concessões exploratórias em toda a extensão da faixa, menos na bacia de Campos, onde já se havia descoberto óleo e gás. A proposta era: blocos brancos ficariam com a Petrobras, os pretos seriam licitados entre as empresas estrangeiras. Ou vice-versa, não me recordo direito. As empresas estrangeiras não quiseram participar.
Paulo M. Leite – Por que?
ESTRELLA – Pela falta de tecnologia. Decidiram que até poderiam se interessar pela oferta, com a condição de que dos contratos de concessão constasse uma cláusula de "aguardo de tecnologia." Isto significava que o período no qual deveriam cumprir suas obrigações de exploração e pesquisa de somente seria contado depois que as tecnologias de produção de óleo e gás estivessem desenvolvidas, testadas e disponíveis. A Petrobras não aceitou e encerrou o processo.
Paulo M. Leite– O que se pode aprender com este episódio, que teve um papel importante para a descoberta do pré-sal?
ESTRELLA – Este fato exibe a sensibilidade do governo de então para o caráter estratégico nacional do desenvolvimento tecnológico do setor petrolífero brasileiro. Não muito mais tarde, quando os contratos de risco já estavam extintos, a Petrobras descobre os grandes campos de águas profundas na bacia de Campos. Intramuros, com conhecimento, tecnologia e projetos inovadores, genuinamente brasileiros, a Petrobras construiu e implantou os grandes sistema de produção naquela bacia. A capacitação e competência que foram adquiridas neste processo aparelhou tecnologicamente a empresa para realizar a produção, em prazos recordes, de forma pioneira, das imensas reservas do nosso pré-sal, agora em águas abaixo dos 2000 metros de profundidade. Desde então, o Brasil conta com uma oferta abundante de energia, que nos assegura uma matriz energética estável, equilibrada, sem altos e baixos tão comuns no período anterior. Somos, afinal, um país soberano para promover a retomada do nosso processo industrial autônomo, para servir a interesses essencialmente brasileiros, com base na inteligência e competência dos brasileiros.
GUILHERME ESTRELLA – É praticamente impossível fazer uma análise isenta de um período em que se praticou o terrorismo de Estado. Mas é possível tentar interpretar o papel e as responsabilidades, que as Forças Armadas assumiram no país. Aceito a visão de que possuem a soberania nacional como valor maior e que, quando este conceito está sendo subvertido, não incomoda sua consciência a iniciativa de extinguir, pela violência, o regime democrático, a Constituição, os direitos da cidadania e os direitos humanos. Foi o que aconteceu em 1964 e não há argumento que torne isso aceitável. Mas, dentro de uma exercício reflexivo distanciado, sobre a história do país, pode-se apontar, isoladamente, alguns fatos positivos. Foi assim ao aceitar a noção de que nossa deficiência no insumo "energia" sempre foi um entrave para nosso desenvolvimento, que representava uma ameaça à segurança nacional e que era preciso enfrentar isso. A ditadura militar sempre teve na Petrobras a ferramenta de governo nessa matéria.
Paulo M. Leite – Por que isso é tão importante?
GUILHERME ESTRELLA – Não acho difícil entender que o maior entrave no nosso processo industrial foi a deficiência energética. Perdemos a primeira revolução industrial porque não tínhamos carvão. Atravessamos o século XIX produzindo energia em padrões quase medievais. A base era a roda dágua, a tração animal, o carvão vegetal, o braço escravo. Perdemos a segunda revolução industrial porque não tínhamos petróleo. Nosso precário parque industrial estava condenado a produção de tecidos, calçados e outras mercadorias primárias, em empresas movidas a energia hidroelétrica, de pequenas usinas, com tecnologia e engenharia totalmente importadas. Nas décadas de 50, 60 e 70, construímos nossas grandes hidroelétricas e não há dúvida de que este foi o momento de decolagem -- mesmo assim supertardia -- da industrialização brasileira. Num país continental, sem ferrovias, onde tudo se baseava no transporte ferroviário, petróleo e gás seguiam sendo nosso calcanhar de aquiles. Os governos da ditadura conheciam esta realidade e fortaleceram a Petrobras, elevando bastante os investimentos em exploração de petróleo.
Paulo M. Leite – Como foi este esforço?
ESTRELLA – Num tempo de petróleo barato, a 3 dólares o barril, não era uma opção ditada pelo mercado. Não havia motivação para ganhos imediatos, como nunca houve em nossa indústria. Era uma decisão estratégica, que olhava para o futuro, que se mostrava menos fácil de alcançar do que muitos imaginavam. Primeiro alvo de exploração, as bacias terrestres não responderam. Em 1968 fomos para a plataforma continental, que se situa em até 200 metros na lâmina dágua. Logo no segundo poço descobrimos o campo de Guaricema, no mar de Sergipe, a 80 metros de profundidade. Seguiram-se outras descobertas. Seis anos mais tarde, em 1974, a Petrobras descobriu o campo de Garoupa, na Bacia de Campos, que abriu a grande perspectiva brasileira de produção de petróleo no mar. Foi um imenso progresso, mas a auto suficiência não estava no horizonte. Em 1975 o governo quebra o monopólio estatal da Petrobras e cria os chamados contratos de risco, abrindo a exploração no território nacional para empresas estrangeiras. Apesar da polêmica que os contratos de risco provocaram, a iniciativa acabou sendo frustrada pela falta de disposição, inapetência mesmo, daquelas empresas para enfrentar riscos exploratórios. Foi neste período que ocorreu um fato que, embora não seja muito lembrado hoje, acabou decidindo a história do setor petrolífero brasileiro.
Paulo M. Leite– O que foi?
ESTRELLA – Naquele momento, grande parte da área leste e sudeste da plataforma brasileira fora coberta pelo chamado método geofísico sismográfico de prospecção petrolífera. Para atender, também, objetivos estratégicos da Marinha, ligados a definição da zona marítima brasileira de interesse econômico exclusivo, a Petrobras atirou várias linhas sísmicas muito além do limite de 200 metros da plataforma continental. Chegou a águas de 1000 e até 2000 metros de profundidade. Estas linhas sísmicas mostraram diversas feições geológicas que, teoricamente, eram muito prospectivas para óleo e gás. Mas não havia tecnologia disponível para que se produzisse óleo e gás nessa profundidade.
Paulo M. Leite – O que aconteceu então?
ESTRELLA – Naquela segunda metade de 1970, ocorreu um fato que não é muito lembrado. Toda aquela faixa de águas profundas e promissoras, foi dividida e quadriculada, em grandes blocos quadrados, como se fosse um tabuleiro de xadrez. Metade eram blocos brancos, metade eram blocos negros. Por iniciativa do governo -- estávamos no período Geisel -- as empresas estrangeiras que se encontravam no país por causa dos contratos de risco foram chamadas a participar de leilões competitivos, onde seriam oferecidas concessões exploratórias em toda a extensão da faixa, menos na bacia de Campos, onde já se havia descoberto óleo e gás. A proposta era: blocos brancos ficariam com a Petrobras, os pretos seriam licitados entre as empresas estrangeiras. Ou vice-versa, não me recordo direito. As empresas estrangeiras não quiseram participar.
Paulo M. Leite – Por que?
ESTRELLA – Pela falta de tecnologia. Decidiram que até poderiam se interessar pela oferta, com a condição de que dos contratos de concessão constasse uma cláusula de "aguardo de tecnologia." Isto significava que o período no qual deveriam cumprir suas obrigações de exploração e pesquisa de somente seria contado depois que as tecnologias de produção de óleo e gás estivessem desenvolvidas, testadas e disponíveis. A Petrobras não aceitou e encerrou o processo.
Paulo M. Leite– O que se pode aprender com este episódio, que teve um papel importante para a descoberta do pré-sal?
ESTRELLA – Este fato exibe a sensibilidade do governo de então para o caráter estratégico nacional do desenvolvimento tecnológico do setor petrolífero brasileiro. Não muito mais tarde, quando os contratos de risco já estavam extintos, a Petrobras descobre os grandes campos de águas profundas na bacia de Campos. Intramuros, com conhecimento, tecnologia e projetos inovadores, genuinamente brasileiros, a Petrobras construiu e implantou os grandes sistema de produção naquela bacia. A capacitação e competência que foram adquiridas neste processo aparelhou tecnologicamente a empresa para realizar a produção, em prazos recordes, de forma pioneira, das imensas reservas do nosso pré-sal, agora em águas abaixo dos 2000 metros de profundidade. Desde então, o Brasil conta com uma oferta abundante de energia, que nos assegura uma matriz energética estável, equilibrada, sem altos e baixos tão comuns no período anterior. Somos, afinal, um país soberano para promover a retomada do nosso processo industrial autônomo, para servir a interesses essencialmente brasileiros, com base na inteligência e competência dos brasileiros.
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