Ela começa — acredite! — com a primeira versão de Banco
Imobiliário. Passa por tabuleiros feministas está presente no Brasil
contemporâneo
Por Antonio Martins
Todo bom jogo — dos esportivos aos de mesa — é uma metáfora da vida;
portanto, a criação das regras promove certos valores e desestimula
outros, numa espécie de luta de classes (e de projetos de futuro)
simbólica. Um texto publicado há dias no excelente site norte-americano Truthout conta
a história pouquíssimo conhecida dos jogos orientados por ideias de
esquerda. Conhecê-la é ainda mais importante numa época em que as
gerações novíssimas são permanentemente convidadas a um mundo paralelo
de games eletrônicos, vistos às vezes como mais interessantes que a vida social…
Assinado por Brian Van Slyke, o texto de Truthout traz, desde o início, revelações provocadoras. Tome, por exemplo, o jogo brasileiro Banco Imobiliário, É uma versão do norte-americano Monopoly, produto
emblemático da indústria cultural, que correu o mundo e influenciou
adolescentes e jovens por décadas. Em sua versão mais conhecida,
estimula os participantes a ganhar dinheiro com a especulação
imobiliária e, em especial, a derrotar outros amigos empenhados na mesma
batalha insana.
O texto de Brian revela, com base em longa pesquisa: a versão original de Monopoly foi criada no início do século passado, por uma norte-americana quaker interessada
precisamente em… denunciar a devastação social provocada pela
gentrificação e pelas atitudes egoístas. Chamava-se Elizabeth Magie.
Didática, Elizabeth chegou a criar duas regras, para o mesmo
tabuleiro. Numa delas, todos os participantes beneficiavam-se, quando
havia criação de riqueza social. Na outra, que acabou capturada e
prevaleceu, impera a lei de cada um contra todos. Mas os objetivos da
criadora eram claros: “É preciso deixar as crianças perceberem
claramente a enorme injustiça de nosso sistema imobiliário atual. Quando
crescerem, se puderem desenvolver-se naturalmente, o mal será
rapidamente remediado”, escreveu ela.
Hoje, a crítica aos valores capitalistas, cada vez mais presente nas
novas gerações, levou um grupo de ativistas, ao qual está ligado o
próprio autor da matéria no Truthout, a criar Co-opoly, o “Jogo das Cooperativas”. Ele pode ser encontrado aqui.
É também do início do século 20 (1909) o curiosíssimo Suffragetto. Inventado pela União Social e Política das Mulheres Britânicas (WSPU),
relaciona-se à luta feminista pelo direito ao voto (sufrágio). Num
tabuleiro semelhante ao de xadrez e damas, opõe dois grupos: o das
mulheres reivindicantes e o dos policiais que as reprimiam nas ruas. O
objetivo é capturar a base adversária. Uma cópia do jogo original foi
recentemente descoberta e está exposta na Universidade de Oxford. É
possível imprimi-lo e jogá-lo.
Bem mais recente é o jogo Luta de Classes. Criado
em 1978 por Bertell Ollman, professor na Universidade de Nova York, tem
particularidades interessantes. Os jogadores ficam sabendo no início,
por um lance de dados, se serão burgueses ou trabalhadores. Os
capitalistas recebem, de partida, vantagens — fazem o lance inicial e
podem paralisar os oponentes, imputando-lhes dívidas. Mas os
trabalhadores têm a oportunidade de contra-atacar — formando sindicatos,
organizando greves, unindo-se em torno de temas como igualdade étnica e
de gênero.
A tradição de jogos questionadores e críticos está presente também no Brasil. Um de seus expoentes é o ativista Guilherme Cianfarini. Há cerca de dez anos, ele inventa jogos como Brasil — um País de Tolos (que expõe o sequestro da democracia pelas grandes corporações) e A Conta da Copa é Nossa (que
mergulha os jogadores na alienação das obras urbanas tocadas sem
relação alguma com as necessidades da população, porque presididas pelo
interesse do esporte-espetáculo e das empreiteiras).
No mercado, a grande maioria de jogos (e de games eletrônicos)
propõe valores como a guerra, a conquista, a violência a vitória
individual, o lucro. Mas a história oculta dos “jogos de esquerda”
revela uma brecha a ser ocupada no terreno decisivo da ética — e em
especial entre as pessoas que começam a se socializar. É uma fronteira
aberta, na luta por uma nova sociedade.
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