“Defensores de cada uma fingem ser inimigos, mas na realidade são aliados”
Jornal GGN - O artigo à seguir é uma palestra
proferida pelo professor e ex-ministro da Secretaria de Assuntos
Estratégicos da Presidência, Roberto Mangabeira Unger, em 2014 na
Universidade Federal Fluminense, onde ele, de modo sucinto, explica as
três tendências que dominam as ciências sociais: racionalizadora,
humanizadora e escapista. Segundo Unger, apesar dos defensores dessas
três tendências brigarem entre si eles são, na verdade, aliados.
"Essas três tendências são três modos diferentes, porém,
complementares, de suprimir a imaginação do possível e cortar essa
ligação indispensável entre entender o existente e imaginar o possível".
Revolução, reforma ou contemplação - a teoria social enjaulada*
Palestra e debate com o professor Mangabeira Unger em 23/11/2014 no
Laboratório de Alternativas Institucionais da Universidade Federal
Fluminense.
Há três tendências dominantes no amplo espectro das ciências sociais e das humanidades.
1 – Tendência Racionalizadora
Ocorre nas ciências sociais positivas, sobretudo como cultivadas na
academia dos EUA, onde predomina uma racionalização retrospectiva dos
arranjos existentes nas sociedades contemporâneas.
Essa tendência é mais patente na ciência social mais influente, a
economia. E, sobretudo, no uso prático da economia para orientar o
debate sobre as políticas públicas.
É uma racionalização funcionalista que se fundamenta numa ideia de
convergência. Ou seja, as sociedades contemporâneas estariam convergindo
para as mesmas instituições e práticas, por um processo quase
darwiniano de seleção daquilo que funciona melhor. No vocabulário da
história da filosofia nós poderíamos chamar essa tendência de um
hegelianismo de direita, porque seu espírito é identificar o real com o
racional.
2 - Tendência Humanizadora
É aquela que predomina nas disciplinas normativas da filosofia política e da teoria jurídica.
Nesse caso, a iniciativa intelectual prevalecente, nas sociedades
ricas do Atlântico Norte, é o recurso a justificativas pseudofilosóficas
de dois tipos de prática: reformista ou humanizadora.
Humanizadora pela redistribuição compensatória através dos
programas sociais e da tributação progressiva. E, reformista, pela
idealização sistemática do direito como um conjunto de princípios
impessoais e de políticas públicas.
O espírito delas é a aceitação do último grande compromisso
ideológico e institucional construído em meados do século passado. Na
Europa, é descrito como socialdemocrata e, nos EUA, é representado pelo
legado do New Deal de Roosevelt
No atual momento, o projeto dominante no Atlântico Norte é a
reconciliação social dos europeus com a flexibilidade econômica dos
americanos, dentro de um arcabouço institucional pouco ajustado.
E aqui vale uma crítica a esse segundo conjunto de ideias, pois, o
compromisso social democrata se definiu pelo abandono de qualquer
tentativa de redefinir os mundos do poder e da produção. Daí, esse
esforço humanizador na filosofia política e na teoria jurídica.
Vejam, por exemplo, as filosofias de justiça influentes no mundo
anglo-saxônico. Na forma são muito abstratas, teorias de “contrato
social”, mas o objetivo prático é muito claro. É a justificativa
filosófica das ações compensatórias.
- Quanto se vai tirar de quem, para atenuar as desigualdades geradas no sistema atual.
Não havendo qualquer tentativa de reimaginar o sistema atual. Sendo, por isso, definida como uma tendência humanizadora.
3 – Tendência Escapista
Um conjunto de ideias nas humanidades (fora das ciências sociais
aplicadas, incluindo a economia), onde prevalece um “aventureirismo
subjetivista”, inteiramente desconectado de qualquer tentativa de
reimaginar e reconstruir a ordem social.
Os defensores dessas três tendências, a racionalizadora, a
humanizadora e a escapista, fingem ser inimigos, mas na realidade são
aliados. Aliam-se no desarmamento da imaginação transformadora.
Do ponto de vista epistemológico, o problema central é o corte do
vínculo entre o entendimento do possível e a imaginação da
transformação.
Entender um fenômeno é entender as suas transformações, sobretudo,
na penumbra do possível adjacente, dos próximos passos. Assim é nas
ciências naturais.
Essas três tendências anteriormente descritas são três modos
diferentes, porém, complementares, de suprimir a imaginação do possível e
cortar essa ligação indispensável entre entender o existente e imaginar
o possível.
Agora uma segunda ordem de reflexões para situar esse quadro
intelectual, especificamente, na história da teoria social e na história
das ciências sociais.
A ideia central da teoria social europeia clássica, cuja expressão
mais elaborada é a doutrina de Marx. É o conceito de que a estrutura da
sociedade são criações humanas, não são fenômenos naturais. Nós
(humanidade) fizemos essas estruturas. E, como escreveu Vico, porque nós
as construímos nós podemos compreendê-las.
Para adotar um vocabulário que não é aquele dos teóricos sociais
clássicos, podemos dizer que as estruturas da sociedade são como uma
“política congelada”.
Há uma luta prática e visionária sobre a organização da sociedade e
essa luta é sempre parcialmente interrompida e a interrupção dessa luta
é que gera essa estrutura e aí a metáfora da “política congelada”.
Esse foi o conceito revolucionário da teoria social clássica.
Exemplificada na crítica de Marx da economia política dos ingleses. Eles
(os ingleses) imaginavam que essas leis da economia eram eternas e
universais, enquanto que, na verdade, eram leis de um determinado
regime.
Essa concepção revolucionária estrutural foi, porém, na teoria
social clássica, cerceada e comprometida por um conjunto de ilusões
deterministas. Em especial, por três tipos de ilusões.
1) Na história há um elenco fechado de regimes, de sistemas ou de estruturas, como são os modos de produção do marxismo.
2) Cada um desses sistemas é indivisível, sustenta-se ou cai como
um todo. A consequência prática disso é que só há dois tipos de
política. A revolucionária, que substitui um sistema por outro; e a
reformista, que maneja um desses sistemas para estabilizá-lo ou
humanizá-lo.
3) Além das leis próprias de operação de cada um desses sistemas
indivisíveis (modos de produção) há supostamente leis que governam a
sucessão histórica desses sistemas.
Tudo falso. Ilusões. Sem alongar, observa-se apenas que poucos
ainda acreditam nessas ideias. Curiosamente, porém, continuam usando o
vocabulário dos sistemas teóricos que não acreditam. O que é uma
atitude, poderia se dizer, sentimental em relação a um ideário
fossilizado e decrépito.
A ciência social rejeita essas ilusões deterministas, porém, perdeu
a ideia revolucionária central das estruturas (como criações humanas)
e, por isso, o espírito predominante do pensamento social é o da
naturalização das estruturas.
É aquilo que foi observado antes como tendência racionalizadora.
Essa operação de naturalizar, de fazer com que aquilo que aconteceu na
história pareça, senão necessário, ao menos natural, ganha cores
persuasivas numa situação histórica em que não há grandes transformações
estruturais. Caso estivéssemos em meados do século passado na Europa,
no período das guerras, tudo isso teria menos credibilidade. Mas se há
uma estagnação relativa essas tendências mistificadoras ganham uma
autoridade que elas não merecem.
Qual é, então, nossa tarefa na construção do pensamento social?
É resgatar a ideia central, o que há de melhor na teoria social
clássica, libertando-a dessas tendências racionalizadoras, humanizadoras
e escapistas. Em suma, libertar a teoria social das ideias que a
corromperam e radicalizar a visão das estruturas como “política
congelada”. A partir disso, é preciso demonstrar que a radicalização da
teoria social não a leva a um agnosticismo, a uma impotência
explicadora, mas sim a formas alternativas de explicação. E o resultado
disso não será um ceticismo ou o voluntarismo, mas outra maneira de
explicar os constrangimentos e as transformações.
A partir desse ponto, Mangabeira Unger inicia a apresentação de sua
teoria social. Devido a extensão e complexidade, não será descrita
aqui.
Apenas como provocação vale a pena transcrever o relato de sua
experiência em relação a subordinação cultural brasileira e a nossa
falta de capacidade inventiva. Segue o relato do professor:
Vou narrar um fenômeno prático que eu assisti por anos e anos lá em Cambridge Massachusetts.
Um jovem de classe média do Brasil, muito inteligente que sempre se
deu bem nas provas e é admitido no doutorado em economia no MIT ou em
Havard.
Ele chega lá, pensando que vai escrever uma tese crítica à teoria
econômica dominante. Contra a economia neoclássica pós-marginalista. Ele
vem com intenções de rebeldia. Vai ser um pensador.
Chega lá, e depois de algum tempo, constata que não consegue fazer.
É claro que é contra a maré, mas ele não é proibido de fazer. Ele
não deixa de fazer [a tese “revolucionária” que imaginava] porque os
mentores o proíbem. Ele deixa de fazer porque ele não consegue fazer.
Ele não sabe por onde começar. Ele não tem uma formação mais ampla. Não
conhece na intimidade a história do pensamento econômico. Não tem ideias
filosóficas ou de teoria social mais elaborada. Então, ele não consegue
fazer. Aí ele se rende. E acaba escrevendo uma tese aplicando a teoria
que ele pretendia atacar.
Sua tese trata de algum aspecto da experiência brasileira que ele
vivenciou. Por exemplo, uma tese sobre a hiperinflação. Com isso, ele
tem uma experiência de fracasso, de malogro. E até de corrupção pessoal.
Não é um malogro só intelectual, é um colapso do projeto existencial
dele.
Aí ele pensa assim: eu sou um jovem de classe média, eu não vou ser
o pensador que eu imaginava..., pelo menos, eu não vou ser pobre.
Rousseau comenta em algum lugar. Eles não puderam ser homens (sic), então, decidiram ser ricos.
E essa é uma experiência recorrente, então esse jovem diz: eu vou
trabalhar lá no BC ou na Fazenda e depois eu vou alavancar isso numa
banca privada e eu vou ser rico.
São essas pessoas que escreveram os planos econômicos no Brasil e
conduziram a política do Estado Brasileiro. E a posição deles no país é
uma consequência direta de fracasso pessoal que eu acabei de relatar. Eu
gostaria de ver esse ciclo interrompido. E eu dei só esse exemplo numa
área, mas em outras áreas ocorre a mesma coisa.
* A palestra não tem título. Esse é uma criação minha Rpv. A ideia
de contemplação é associar a racionalização funcionalista com a
contemplação meramente descritiva pós-moderna. A ideia de jaula é da
alegoria de Weber "ein stalhartes Gehause" traduzida para o ingles como
iron cage - jaula de ferro.
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