do Brasil Debate
Com lançamento marcado para segunda-feira, 10 de outubro, na Câmara
dos Deputados, o documento ‘Austeridade e Retrocesso: Finanças Públicas e
Política Fiscal no Brasil’ desconstrói a PEC 241 e o discurso da
austeridade.
Elaborado por iniciativa do Fórum 21, Fundação Friedrich Ebert, GT de
Macro da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP) e Plataforma
Política Social apresenta uma análise aprofundada da questão fiscal,
apontando seus problemas reais, denunciando os problemas fictícios e
desmascarando os mitos que sustentam um discurso que se traveste como
técnico, mas que atende a interesses políticos.
A força desse discurso se materializa na proposição da PEC 241, a PEC
da Maldade, que pretende instituir uma austeridade permanente no Brasil
a partir de diagnósticos e argumentos equivocados e falaciosos. Na
verdade, trata-se da imposição de outro projeto de país, incompatível
com a Constituição de 1988 e com a expansão de bens públicos como saúde e
educação.
Leia, abaixo, o texto de apresentação. Leia a íntegra na Versão digital ou na versão PDF: Austeridade e Retrocesso
Austeridade e Retrocesso: Finanças Públicas e Política Fiscal no Brasil
Desde o final de 2014, o Brasil vem sendo submetido à retórica que
propõe a austeridade como único caminho para recuperar a economia. Com o
objetivo de melhorar as contas públicas e restaurar a competitividade
da economia por meio de redução de salários e de gastos públicos, a
austeridade se sustenta em argumentos controversos e até mesmo
falaciosos. Entre os principais experimentos internacionais, vem
predominando resultados contraproducentes, não resultando em
crescimento, tampouco equilíbrio fiscal. O que sim é menos controverso é
que tais experimentos têm como objetivo redesenhar o papel do Estado
para atender interesses velados. No Brasil, o ajuste econômico ortodoxo,
iniciado na gestão Levy, fracassou em retomar o crescimento e
estabilizar a dívida pública, contribuindo para lançar o país no maior
retrocesso econômico das últimas décadas.
Não obstante, o ajuste ajudou a criar as condições necessárias para
mudança da correlação de forças políticas e para impor ao país, passando
ao largo do crivo das urnas, um outro projeto de sociedade. Nesse
contexto, esse documento procede uma análise das finanças públicas e
política fiscal no Brasil, procurando esclarecer as principais causas da
atual crise fiscal, assim como desconstruir simplificações e mitos,
muitos dos quais baseados em argumentos econômicos supostamente técnicos
que sustentam a austeridade. O documento também é propositivo ao
apontar alternativas fiscais para um projeto de país que valorize a
democracia, a distribuição da renda e da riqueza e a expansão dos
direitos sociais.
Da agenda Fiesp ao austericídio
A economia brasileira entrou em uma trajetória de desaceleração no
quadriênio 2011-2014 depois do desempenho extraordinário durante
2007-2010. Há fatores que escapam à política econômica e explicam essa
desaceleração, dentre eles a perda de dinamismo de um ciclo doméstico de
consumo e de crédito ou os desdobramentos da crise
internacional. Contudo, é importante apontar que a política fiscal
praticada pelo governo contribuiu para essa trajetória de queda do
crescimento.
Enquanto no quadriênio 2007-2010 o espaço fiscal foi canalizado
prioritariamente para investimentos públicos, no quadriênio 2011-2014 a
taxa de investimento parou de crescer e, em compensação, o governo
elevou significativamente os subsídios e desonerações ao setor privado. O
governo fez uma aposta no setor privado e acreditou que promoveria o
crescimento econômico via realinhamento de preços macroeconômicos e
incentivos aos investimentos privados – a chamada agenda FIESP.
Ironicamente, a FIESP passou de beneficiada das políticas de um governo
para algoz do mesmo.
Como resposta ao cenário de piora nos indicadores fiscais provocada
pela queda no crescimento econômico e pelas desonerações, o segundo
governo Dilma tem início adotando a estratégia econômica dos candidatos
derrotados no pleito de 2014, ou seja, realizou um choque de preços
administrados e um duro ajuste fiscal e monetário, na esperança de que o
setor privado retomasse a confiança e voltasse a investir. Joaquim Levy
foi o símbolo da implementação da austeridade econômica no Brasil que
consiste em uma política deliberada de ajuste da economia por meio de
redução de salários e gastos públicos para supostamente aumentar lucros
das empresas e sua competitividade, assim como tentar estabilizar a
trajetória da dívida, com resultados contraproducentes.
O forte ajuste fiscal, em uma economia já fragilizada, agravou os
problemas existentes e contribuiu para transformar uma desaceleração em
uma depressão econômica. O ajuste fiscal promovido se mostrou
contraproducente, pois gerou aumento da dívida pública e do déficit
público.
Em 2015, por exemplo, os investimentos públicos sofreram queda real
de mais de 40% no nível federal, o gasto de custeio caiu 5,3%, e o
governo não logrou a melhoria das expectativas dos agentes econômicos
que justificaria esse ajuste com vistas a retomar o crescimento. Pelo
contrário, a economia real só piorou e as expectativas se deterioraram,
apesar de toda a austeridade fiscal manifestada e praticada. Naquele
ano, apesar de todo o esforço do governo para reduzir as despesas, que
caíram 2,9% em termos reais, as receitas despencaram e o déficit ficou
ainda maior, evidenciando o caráter contraproducente do ajuste: o
austericídio.
A virada para a austeridade foi um remédio equivocado para os
problemas pelos quais a economia brasileira passava. O tratamento de
choque fundado em uma contração fiscal, um rápido ajuste na taxa de
câmbio, um choque de preços administrados e um aumento de juros
contribuiu para criar a maior crise econômica dos últimos tempos.
Contudo, para determinados interesses políticos, o ajuste se mostrou
funcional ao gerar desemprego, queda de salários reais e assim mudar a
correlação de forças para favorecer a imposição de outro projeto de
país, sem passar pelo crivo das urnas.
O novo regime fiscal e a imposição de outro projeto de sociedade
A gestão da política fiscal protagonizada pelo governo Temer lançou
sinais contraditórios com relação à continuidade das políticas de
austeridade. Para o curto prazo definiu-se o “keynesianismo
fisioló-gico” e para o longo prazo, a “austeridade permanente”.
O afrouxamento da meta fiscal para 2016 e 2017 evidencia por um lado o
pragmatismo econômico e, por outro lado, hipocrisia dos que argumentam
pela austeridade e, simultaneamente, passam a defender um déficit
primário recorde no novo Governo.
Como medida de longo prazo, o governo Temer propõe estabelecer um
“Novo Regime Fiscal” por meio de uma proposta de emenda constitucional
(PEC 241) que cria por 20 anos um teto para crescimento das despesas
públicas vinculado à inflação. Enquanto a população e o PIB crescem, os
gastos públicos ficam congelados.
A proposta apoia-se em argumentos falsos de que nações desenvolvidas
usam regras semelhantes. Desde 2011, membros da União Europeia
estabeleceram um limite para o crescimento da despesa associado à taxa
de crescimento de longo prazo do PIB e não em crescimento real nulo. Na
maioria desses países já existe uma estrutura consolidada de prestação
de serviços públicos, diferentemente do Brasil onde há muito maiores
carências sociais e precariedades na infraestrutura.
Segundo nossas estimativas, a regra implicaria reduzir a despesa
primária do governo federal de cerca de 20% do PIB em 2016 para algo
próximo de 16% do PIB até 2026 e de 12% em 2036.
Adicionalmente, para que o teto global da despesa seja cumprido –
dado que algumas despesas como os benefícios previdenciários tendem a
crescer acima da inflação – os demais gastos (como Bolsa Família e
investimentos em infraestrutura) precisarão encolher de 8% para 4% do
PIB em 10 anos e para 3% em 20 anos, o que pode comprometer o
funcionamento da máquina pública e o financiamento de atividades
estatais básicas. Essa meta não parece ser realista.
A nova regra não prevê nenhum mecanismo para lidar com crises
econômicas ou outros choques. Ao contrário, tende a engessar a política
fiscal por duas décadas.
Na verdade, o que o novo regime se propõe a fazer é retirar da
sociedade e do parlamento a prerrogativa de moldar o tamanho do
orçamento público, que passará a ser definido por uma variável econômica
(a taxa de inflação), e impor uma política permanente de redução
relativa do gasto público.
Em suma, trata-se da imposição de um projeto de país que dificilmente
passaria no teste de um pleito eleitoral, única forma de garantir sua
legitimidade.
Quem ganha? Quem não quer financiar os serviços públicos por meio de
impostos e o grande capital que enxerga o Estado como concorrente quando
esse ocupa setores que poderiam ser alvo de lucros privados, como saúde
e educação.
Quem perde? A população mais pobre, isto é, aqueles que são os
principais beneficiários dos serviços públicos. Além disso, aqueles que
vislumbram uma sociedade mais justa e igualitária.
O falacioso discurso da austeridade
A austeridade é uma política deliberada de ajuste da economia por
meio de redução de salários e gastos públicos supostamente com o
objetivo de reduzir a dívida e aumentar lucros e a competitividade das
empresas.
A recomendação de que o Estado deve cortar gastos em momentos de
crise parte de uma falácia de composição que desconsidera que se todos
os agentes cortarem gastos ao mesmo tempo, inclusive o Estado, não há
caminho possível para o crescimento. A solução mais razoável para tratar
de um desajuste fiscal em meio a uma recessão é, portanto, estimular o
crescimento, não cortar gastos.
No círculo vicioso da austeridade, cortes do gasto público induzem a
redução do crescimento que provoca novas quedas da arrecadação que, por
sua vez, exige novos cortes de gasto. Esse círculo vicioso só pode ser
interrompido por decisões deliberadas do governo, a menos que haja
ampliação das exportações líquidas em nível suficiente para compensar a
retração da demanda interna, pública e privada. Esta exceção é pouco
provável diante de uma crise internacional como a que o mundo enfrenta
nesta década, com lenta recuperação da demanda e maior competição pelos
mercados.
A obsessão alarmista contra qualquer elevação da dívida pública
esconde uma agenda política permeada por interesses de grupos
econômicos, mas travestida como uma questão meramente técnica, seja ao
defender a retração de bancos públicos, seja ao demandar a redução dos
gastos sociais.
No fundo, a austeridade é principalmente um problema político de
distribuição de renda e não um problema de contabilidade fiscal. Os
efeitos da austeridade afetam de forma distinta os diferentes agentes
econômicos e classes sociais de forma que os mais vulneráveis, que fazem
mais uso dos serviços sociais, são mais afetados.
Apesar das inúmeras evidências contrárias à sua eficácia, a
austeridade persiste como ideologia e sempre retorna ao debate político
por ser oportuna para os grupos dominantes de poder.
A insensatez do superávit primário
O regime fiscal brasileiro é extremamente pró-cíclico, ou seja,
acentua as fases de crescimento e de recessão. Assim, em contextos de
baixo crescimento, a busca pelo cumprimento da meta fiscal por meio de
uma política fiscal contracionista retira estímulos à demanda agregada e
reduz ainda mais o crescimento econômico e a própria arrecadação.
Um segundo fator a se sublinhar sobre o regime fiscal brasileiro é
sua natureza “anti-investimento”, porque, diante de uma estrutura de
gastos públicos rígida, os cortes de despesa recaem primordialmente
sobre o investimento público, um dos poucos gastos passíveis de
contingenciamento. O mesmo regime impõe uma lógica curto-prazista à
gestão da política fiscal e subordina o planejamento governamental.
Na ditadura do superávit primário, os fins são atropelados pelos
meios, e tudo se submete à necessidade de cumprir a meta de curto prazo,
inclusive o próprio crescimento, o emprego e o bem estar da população.
Portanto, um novo modelo de gestão fiscal precisa ser constituído, de
caráter anticíclico, que viabilize o planejamento e que priorize o
investimento público.
Há diversas variantes institucionais para um regime fiscal, dentre
essas estão as que estipulam metas fiscais ajustadas ao ciclo econômico,
como a meta de “resultado fiscal estrutural”. Ou alternativamente,
pode-se adotar bandas fiscais de forma análoga ao que ocorre no regime
de metas de inflação. Ainda há a opção, aplicada em alguns países, de
retirar todo investimento público do cálculo do superávit primário
(assim como o gasto com juros é excluído desse indicador) e assim
incentivar o uso do investimento público como vetor de desenvolvimento e
abrir espaço para atuação anticíclica do gasto público.
Desmistificando a dívida pública
A dívida brasileira é tão grande? Qual é o parâmetro para definição
de “grande”? Na verdade, poucos economistas se arriscam a definir um
parâmetro ótimo para dívida pública, simplesmente porque as evidências
não parecem indicar que esse patamar exista. Não há um número mágico a
partir do qual a relação dívida pública/PIB torna-se problemática. Isso
vai depender das especificidades de cada país.
No Brasil, a excessiva preocupação com o patamar da dívida é
carregada por preconceitos ideológicos e por uma visão estreita sobre a
relação entre Estado, moeda estatal e dívida pública. Uma dívida elevada
pode custar muito caro, mas um Estado soberano não quebra por conta de
dívidas na sua própria moeda. Por isso, a natureza da dívida pública se
diferencia substancialmente da gestão de dívidas privada e o governo não
incorre nas mesmas restrições para gasto e endividamento. O paralelo
com a economia da dona de casa não serve para as finanças públicas.
Entre 2003 e 2013 a redução da relação dívida líquida/PIB foi
expressiva, de 54,3% para 30,6%, muito embora as taxas de juros
continuassem pesando no orçamento público.
A dívida externa pública, por sua vez, caiu e, a partir de 2006 o
país passou a realizar uma política de acumulação de reservas cambiais,
tornando-se credor externo líquido. Por conta disso, quando em 2008 a
crise mundial determinou forte depreciação da moeda brasileira, a
acumulação de reservas cambiais propiciou significativos ganhos
patrimoniais para o Estado brasileiro.
No final de 2014, pelo critério da dívida líquida não havia um
cenário de tragédia fiscal, desenhado pelos economistas da mídia e do
mercado. Havia sim, condições financeiras para realizar uma política
anticíclica que ampliasse o investimento público e o gasto social para
impedir que a desaceleração cíclica se transformasse em uma depressão. À
época, a necessária e esperada desvalorização cambial apenas
contribuiria para reduzir o patamar da dívida líquida, ampliando o
espaço fiscal para políticas de estímulo ao crescimento.
Apesar da redução substancial da dívida líquida, na última década a
dívida bruta manteve-se relativamente estabilizada e passou a crescer a
partir de 2013. Diferentemente do senso-comum, essa dinâmica da dívida
bruta não é explicada pela “gastança do governo” ou o resultado
primário, mas principalmente pela acumulação de ativos por parte do
Estado como a acumulação de reservas cambiais e de créditos junto ao
BNDES.
Essa estratégia possui méritos como, por exemplo, a redução da
vulnerabilidade externa do setor público. Da mesma forma a política de
expansão dos empréstimos do BNDES, em 2009, foi importante para a ação
contracíclica que assegurou a recuperação rápida da economia brasileira
na maior crise da história do capitalismo mundial desde a década de
1930. No entanto, não devemos negligenciar seus elevados custos.
A estratégia de acumulação simultânea de ativos e passivos, com
grande diferencial de rentabilidade entre eles, explica boa parte da
elevada conta de juros. Em 2015, domando-se os custos de oportunidade da
manutenção das reservas internacionais e dos créditos ao BNDES com o
resultado das operações de swaps cambiais, chegamos a 4,9% do PIB.
Em suma, se o objetivo for equacionar a dívida bruta é preciso
desatar o nó da gestão macroeconômica, reduzir substancialmente o gasto
com juros e ponderar o custo da estratégia de acumulação de ativos. A
ideia que se disseminou no Brasil de que ao governo só compete controlar
os gastos primários, desconsiderando os custos e benefícios fiscais das
demais políticas macroeconômicas, deve ser revista e amplamente
debatida.
Mito da gastança federal
O diagnóstico convencional da crise pela qual passa o país se traduz
simplificadamente na seguinte narrativa: os governos do PT expandiram
demais os gastos públicos, encobriram o déficit público crescente por
meio da chamada “contabilidade criativa” e das “pedaladas fiscais” e
esse tipo de política fiscal expansionista e nada transparente destruiu a
confiança do mercado e mergulhou o paísna estagflação.
Contudo, a análise dos dados mostra que, de fato, a despesa do
governo vem crescendo a um ritmo elevado e estável há tempos. As taxas
médias de crescimento real do gasto do governo federal dos últimos
quatro governos foram: FHC II (3,9%), Lula I (5,2%), Lula II (5,5%) e
Dilma I (3,8%).
O principal fator por detrás do crescimento das despesas na esfera
federal não são os gastos com pessoal, como muitos acusam. Estes crescem
sistematicamente abaixo do PIB e tiveram sua menor taxa de expansão
real justamente no governo Dilma I (-0,3%), ao contrário do que ocorre,
por exemplo, nos estados e municípios, onde o gasto com salários e
aposentadorias de servidores tem crescido a 5,5% ao ano,
independentemente da coloração partidária do governante.
O motor do gasto federal tem sido os benefícios sociais
(aposentadorias e pensões do INSS, benefícios a idosos e deficientes,
seguro-desemprego, bolsa família, etc), que hoje consomem metade do
gasto da União (mais de R$ 500 bilhões em 2015) e crescem a taxas
sistematicamente superiores ao PIB pelo menos desde 1999, por influência
principal de fatores demográficos, da justa formalização e dos direitos
consagrados na Constituição e, adicionalmente, pela política de
valorização do salário mínimo.
Porém, uma visão mais acurada dos gastos sociais mostra que tampouco
nesta área houve expansão desenfreada, sobretudo frente às demandas
sociais brasileiras, e que a política de valorização do salário mínimo
contribuiu para este cenário, mas com impactos sobre a redução da
desigualdade relevantes. Certamente é possível discutir excessos e
tornar o gasto mais eficiente, mas as possibilidades de fontes de
financiamento discutidas neste documento evidenciam que este é um debate
que deve envolver toda a sociedade brasileira.
Vale notar que, a despeito de gastos elevados, o governo conseguiu
manter resultados fiscais positivos na última década e meia pelo aumento
da carga tributária (1999-2005) ou pelo crescimento mais acelerado do
PIB (2006-2011). Nos governos Lula, enquanto o país crescia, não havia
desajuste fiscal apesar do crescimento do gasto público. Mas a partir de
2012, com a queda do crescimento econômico e com as desonerações
tributárias, houve uma piora dos resultados fiscais.
Reforma tributária, já!
A estrutura tributária brasileira é extremamente perversa com os mais
pobres e a classe média e benevolente com os mais ricos. Esse sistema
singular é reflexo tanto do federalismo brasileiro e da dualidade
tributária (impostos e contribuições sobrepostos), quanto de algumas
recomendações de política que o mainstream econômico propagou nas
décadas de 80 e 90 e que foram incorporadas de forma bastante acrítica
ou peculiar pelo Brasil.
A agenda de reformas da tributação sobre a renda e o patrimônio, que
envolve um forte conflito distributivo, permaneceu totalmente embargada
nos últimos 20 anos, não tendo o governo federal apresentado qualquer
proposta de reforma mais substancial que visasse ampliar a
progressividade ou mesmo corrigir as graves distorções ensejadas pela
atual legislação.
O Brasil foi um dos primeiros países e até hoje um dos poucos que
isentou e continua isentando de imposto de renda os dividendos
distribuídos a acionistas, tal como a pequena Estônia.
De acordo com os dados das declarações de imposto de renda, as 70 mil
pessoas mais ricas do Brasil, representando meio milésimo da população
adulta, concentram 8,2% do total da renda das famílias, índice este que
não encontra paralelo entre as economias que dispõem de informações
semelhantes. Esse mesmo seleto grupo pagou apenas 6,7% de imposto de
renda sobre esse montante.
Além de injusta, essa assimetria entre o tratamento tributário
dispensado a dividendos e salários tem sido responsável por um fenômeno
conhecido por “pejotização”, que é a constituição de empresas por
profissionais liberais, artistas e atletas com o objetivo de pagar menos
impostos do que como autônomos ou assalariados.
Nesse contexto, a proposta de se aumentar alíquotas do imposto de
renda das pessoas físicas sem revogar a isenção de dividendos não
proporciona uma redistribuição de renda tão efetiva uma vez que as
alíquotas progressivas da tabela do Imposto de Renda (IRPF) só atingem
os “rendimentos tributáveis”, o que não inclui atualmente a distribuição
de lucros e dividendos que são as principais fontes de renda dos mais
ricos. Então, qualquer proposta de reforma do imposto de renda que não
passe pela tributação dos dividendos não será tão efetiva nos objetivos
de contribuir com uma maior justiça fiscal e também gerar receitas
extras para o governo.
Na atual conjuntura de crise, é pouco razoável crer na possibilidade
de um equilíbrio fiscal com baixo crescimento. Isso implica que, no
curto prazo, deveríamos no mínimo assegurar espaço fiscal para o
investimento público e para gastos sociais de elevado impacto sobre o
bem-estar das camadas mais vulneráveis da população.
Uma reforma tributária, que combine eficiência e equidade poderia
atuar incentivando o crescimento econômico de longo prazo ao reduzir a
tributação do lucro e da produção das empresas, ao mesmo tempo em que
concentra o ajuste fiscal de curto prazo sobre uma pequena parcela da
poupança dos mais ricos, não diretamente relacionada ao investimento, e,
por conseguinte, vinculada a um maior nível de emprego e produto.
Assim, ganha-se tempo para aprimorar outras propostas de reformas
estruturais das despesas, debatê-las com a sociedade e pactuá-las
democraticamente .
Nenhum comentário:
Postar um comentário