Nunca
foi tão verdadeira a sentença do poeta Torquato Neto: “Leve um homem e
um boi ao matadouro. O que berrar primeiro é o homem, mesmo que seja o
boi”
Por Rosemberg Cariry | Imagem: Pablo Picasso, El Toro (1945)
Por Rosemberg Cariry | Imagem: Pablo Picasso, El Toro (1945)
Há
momento em que o desânimo chega, e, diante de um mundo que se desfaz, a
necrofilia triunfa como bandeira do grande mercado, e a ideologia da
direita e do neoliberalismo triunfam ante a fraqueza e os erros dos
homens de bem. De que valeram todas as lutas dos trabalhadores pelas
significações do trabalho e da vida? De que valeram todas as lutas pela
libertação da mulher? De que valeram todas as lutas contra as
intolerâncias e os racismos? De que valeram os sangues derramados por
todas as bandeiras da justiça, se o que hoje vemos é o triunfo do ódio,
da ganância capitalista, da guerra, da violência e da morte? De que
valeram os milhares de sacrificados se, por fim, triunfou a estupidez, a
intolerância, o fundamentalismo, seja ele da Bolsa de Valores, do
Grande Mercado, da Grande Imprensa, do Estado Islâmico ou das Igrejas
Neopentecostais que pregam as novas cruzadas, as novas guerras
religiosas, em nome de um Deus capitalista e insensível aos direitos
humanos, à diversidade cultural e às liberdades básicas dos povos?
Em
momentos assim, o desejo é calar, é reconhecer a derrota. Mas, se
olhamos a história, não podemos calar. É preciso lembrar que o
capitalismo nascente usava mulheres trabalhando nos teares 18 horas por
dia, por um salário de fome. Crianças de apenas cinco anos eram usadas
nas minas, para atingir os buracos mais estreitos, onde não chegavam nem
mesmo os mineiros mais magros. O tempo médio de vida-uso dessas
crianças? Dois a três anos. Contra o capitalismo, Jonathan Swift escreveu uma sátira devastadora na época, intitulada Uma
modesta proposta para prevenir que, na Irlanda, as crianças dos pobres
sejam um fardo para os pais ou para o país, e para as tornar benéficas
para a República. A obra propõe aos grandes
capitalistas europeus que mais produtivo e eficiente seria a engorda
dessas crianças e a industrialização das suas carnes macias para fazer
salsichas. Afinal, não só importava o lucro? Na computação dos lucros,
que importava mesmo a morte desses pequenos escravos? Se morriam
milhares, esgotados pela exploração patronal, outros milhares os
substituíam. Tudo em nome do lucro e do progresso.
As empresas de comunicação, caso dos jornais, no início do século XX,
exploravam crianças miseráveis até os últimos centavos, nas vendas
avulsas, pelas ruas. Houve registros até de uma greve de crianças contra
o trabalho escravo imposto pelos jornais (que se consideravam as
“trombetas” da liberdade – para os burgueses, mas se esqueciam de dizer
que escravizavam crianças).
As
primeiras greves foram recebidas com balas, a Comuna de Paris foi
recebida com balas, a ideia da liberdade foi recebida com bala. Tudo em
nome do lucro e da ordem.
A fome e a miséria das massas eram “condições naturais”, e quem se
erguesse contra esse estado de coisas era assassinado. Por isso, cada
pequena conquista social, cada pequena conquista do espírito, cada
pequeno avanço na humanização do homem, custou centenas de milhares de
mortos, milhares de milhões. A razão burguesa, baseada na legenda
positivista da ordem e do progresso,
marcharia sobre os povos e estabeleceria os colonialismos com suas
devastações étnicas, culturais e ecológicas ilimitadas. Diziam os
capitalistas que a humanidade caminhava em linha reta, subindo as
escadas da evolução. No topo da pirâmide (da evolução), estavam, claro,
os homens brancos, burgueses, capitalistas. Enquanto isso, no mundo,
estabelecia-se o horror, de forma tão assombrosa que, apenas no século
XX, as guerras capitalistas geraram mais de trezentos milhões de mortos.
Se na grande exposição de Paris (em 1900) comemorava-se
o apogeu da razão e da técnica – com os trens cortando os continentes e
os navios a vapor cortando os mares, o telégrafo ligando os povos, e a
psicanálise desvendando a alma do homem – os demônios que dormiam nos
porões do inconsciente preparavam-se para reinar na nova era das devastações.
Não tardaria a eclodir a I Grande Guerra Mundial
– um exemplo tenebroso da capacidade destrutiva do ser humano. Nenhum
profeta do velho testamento foi capaz de imaginar um inferno de tamanho
horror. Nas trincheiras, milhões de homens apodreciam na lama fétida,
entre ratos e podridões. Entre gases, balas e o vazio das filosofias, o
mundo esfacelou-se, e a razão burguesa mostrou a sua face necrófila. A
Segunda Grande Guerra não passaria de um ato contínuo daquela primeira
guerra, após breve intervalo. Os horrores de hoje alimentam-se dos
horrores desse passado, mesmo que sejam bem mais sofisticadas as
tecnologias e mais numerosas as mortes. Sem a mediação da ética,
dominada pelo mercado, cada vez mais, a ciência mostra-se ao lado do
lucro e da morte. O genocídio concentracionário nazifascista não é uma
exceção na construção da modernidade, antes é um experimento biopolítico
(conceito de Foucault)
posto em prática pela modernidade. Os experimentos realizados nos
campos-da-morte continuam a ser usados pela ciência, pela comunicação,
pela política, pela psicologia de massas, pela economia neoliberal e
globalizada, sob outros rótulos e outros pretextos políticos, econômicos
e científicos. Inclusive no discurso cego da eficiência, da hierarquia e
da ordem. O “socialismo real”, que tentou seguir o modelo de um
capitalismo de estado, fracassou diante dos mesmos horrores.
Hoje, vemos o mundo estilhaçado. Como diziam os velhos Marx e Engels:
“Tudo que é sólido se desmancha no ar”. Essa percepção da tragédia que
ameaça toda a humanidade em nada evita que o capitalismo em crise
continue em busca de mercados para as suas armas, envenene os alimentos,
a terra e as águas com seus agrotóxicos, empurrando milhões de seres
humanos (mais de dois terços da humanidade) para a mais completa ruína e
degradação. Todo esse desastre é bem louvado na grande imprensa (em
nome do grande deus-mercado), recebe as benesses dos intelectuais a
serviço da ideologia da dominação, é alimentado por políticos que beiram
a insanidade. Os bancos e as bolsas de valores comemoram os lucros de
uma economia que se desligou do homem e do destino da humanidade, a tudo
aprisionando e degradando. Tudo o que disso discorda passa a ser visto
como retrógrado, marginal, subversivo, perigoso. “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem” (Brecht).
Olhando
esse quadro de ruínas, que mais se completa com a destruição dos
estados e das nações (inclusive a brasileira, com o desastre do governo
Temer), pode vir o desânimo. No entanto, é nesse momento que devemos
encontrar em nós mesmos a melhor força, a chama acesa da esperança, a
utopia da construção de um mundo de maior justiça e solidariedade, e,
junto com os que não se renderam, continuar a luta necessária. Se ser
homem é um projeto em construção, o verdadeiro humanismo só virá com a
afirmação da liberdade, da solidariedade, da espiritualidade, do triunfo
da poesia sobre a brutalidade do capitalismo e do processo de
globalização dos mercados. Um humanismo que compreenda que o planeta
Terra foi feito para a vida de todas as espécies e que só o equilíbrio
da natureza pode garantir o futuro. Sim, é preciso afirmar a vida,
apesar dos conglomerados-multinacionais-de-comunicação (indústrias
perversas de manipulação de consciências), banqueiros, empresários,
corporações e biopolíticas neofascistas, postos em movimento, com suas
pulsões de destruição e de morte.
Vejamos
o que acontece com a nossa infância… Dezenas de milhares de crianças e
jovens pobres – a maioria de ascendência afro-brasileira – são
assassinadas por policiais, pelo tráfico e pelas organizações
criminosas, nas periferias das grandes cidades, sem que nada seja feito.
O que nos revela um verdadeiro genocídio! Em vez de mais presídios e
redução da maioridade penal,
deveríamos ter mais escolas, cultura, esportes, artes e condições de
vida dignas. As favelas precisam se libertar do fardo das misérias
herdadas das senzalas, nesse país que mantém ainda uma elite de espírito
escravagista, que perpetua a tirania e os desrespeito aos mais
elementares direitos humanos. A situação em todo o mundo não é menos
grave, temos mais de vinte milhões de crianças em situação de refugiados
e muitos outros milhões padecem de fome, de doenças, de violências e de
misérias crônicas.
A
situação também é terrível para os nossos índios que são assassinados,
brutalizados, alcoolizados, contaminados, prostituídos, expulsos de suas
terras pelo agronegócio, pelas madeireiras, pelas mineradoras, pelos
bancos, pelas multinacionais. Toda essa economia de commodities,
voltada para a exportação, tem por meta transformar o Brasil numa
neocolônia, produtora da monocultura da soja, assim como nos séculos
XVIII e XIX, fomos a colônia exportadora do açúcar ou do café. Triste
destino. Só quem viajou por 150 quilômetros de plantações de soja,
situadas no coração do cerrado devastado, pode compreender a tragédia
que se anuncia.
A
violência contra a mulher atinge índices insuportáveis até mesmo para a
mais perversa das sociedades. Uma onda misógina toma conta do país. No
entanto, aí estão os novos donos dos poderes, com apoio do Congresso
Nacional, incentivando o preconceito contra a mulher, dando golpes
contra a democracia, cortando as verbas dos programas sociais, acabando
com as escolas públicas e os programas de cultura e de pesquisas,
subsidiando o agronegócio e as mineradoras, militarizando a vida,
criminalizando a pobreza, cercando as favelas, incentivando o trabalho
escravo, matando os índios e dizimando a infância pobre. Se nos
calarmos, voltaremos a trabalhar 18 horas por dia, com salários de
misérias? Seremos condenados a nos aposentar com 70 anos ou mais,
recebendo metade um salário mínimo, se sobrevivermos à dura exploração,
às doenças, às químicas alimentares e aos agrotóxicos? Diante de tão
grandes ameaças, estaremos condenados a não mais pensar?
Calar
ou não calar é uma questão de vida e morte. Se não falamos estamos
condenados, se falamos estaremos, da mesma forma, condenados pelas
represálias que virão. O que fazer então? Como resposta, lembro um
trecho de um poema de Torquato Neto: “Leve um homem e um boi ao
matadouro o que berrar primeiro é o homem, mesmo que seja o boi”. Assim,
haverá sempre um homem berrando, um discurso feito para os peixes ou um
profeta pregando no deserto.
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