Em seu novo livro, sociólogo afirma: lutas operárias já não podem libertar a sociedade; cabe à esquerda despertar múltiplos sujeitos que sistema quer manter inertes
Por Boaventura de Sousa Santos | Imagem: Eric Drooker
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Este é um trecho de
“A difícil democracia – reinventar as esquerdas”
De Boaventura de Sousa Santos, pela Editora Boitempo
Lançamento até 28/10, nas livrarias
O texto faz parte de entrevista conduzida por Antoni Jesús Aguiló Bonet
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Este é um trecho de
“A difícil democracia – reinventar as esquerdas”
De Boaventura de Sousa Santos, pela Editora Boitempo
Lançamento até 28/10, nas livrarias
O texto faz parte de entrevista conduzida por Antoni Jesús Aguiló Bonet
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Os
sujeitos históricos são todos os sujeitos que fazem a história. Fazem
história na medida em que não se conformam com o modo como a história os
fez. Fazer história não é toda a ação de pensar e agir na
contracorrente; é o pensar e o agir que força a corrente a desviar-se de
seu curso “natural”. Sujeitos históricos são todos os rebeldes
competentes.
No
século passado, ficamos muito marcados pela ideia de que o sujeito
histórico da transformação socialista da sociedade era o operariado
industrial. As divisões no movimento operário e a perda de horizontes
pós-capitalistas, combinadas com a emergência de movimentos sociais que
se apresentavam como alternativas mais radicais tanto no plano temático
como no plano cultural e organizacional, criaram a ideia finissecular de
que o operariado deixara de ser o sujeito histórico teorizado por Marx e
que ou o conceito deixara de ter interesse em geral ou era necessário
pensar em sujeitos históricos alternativos.
Temo
que, assim formulada, essa questão confunda mais do que esclareça. Se
atentarmos à composição sociológica dos movimentos sociais,
verificaremos que em sua base estão quase sempre trabalhadores e
trabalhadoras, ainda que não se organizem como tal nem recorram às
formas históricas do movimento operário (os sindicatos e os partidos
operários). Organizam-se como mulheres, camponeses, indígenas,
afrodescendentes, imigrantes, ativistas da democracia participativa
local ou dos direitos humanos, homossexuais etc. A questão importante a
fazer não é a da perda de vocação histórica dos trabalhadores. É antes a
de saber por que nos últimos trinta anos os trabalhadores se
mobilizaram menos a partir da identidade ligada ao trabalho e mais a
partir das outras identidades que sempre tiveram.
Os
fatores que podem contribuir para uma resposta são muitos. Houve
transformações profundas na produção capitalista, quer no domínio das
forças produtivas, quer no domínio das relações de produção. Por um
lado, os avanços tecnológicos nas linhas e nos processos de produção, a
revolução nas tecnologias de informação e de comunicação e o
embaratecimento dos transportes alteraram profundamente a natureza, a
lógica, a organização e as hierarquias do trabalho industrial. Por outro
lado, o capitalismo “globalizou-se” (entre aspas, porque ele sempre foi
global) para se furtar à regulação estatal das relações
capital/trabalho, o que conseguiu em boa parte. Era nessa regulação que
se assentava a identidade sociopolítica dos trabalhadores enquanto tal.
A
desregulação da economia foi, entre outras coisas, desidentificação
operária. Foi um processo dialético, pois a desidentificação causada
pelas alterações no nível da produção também favoreceu o êxito da
desregulação. Por sua vez, a desidentificação operária abriu espaço para
a emergência de outras identidades até então latentes ou mesmo
ativamente reprimidas pelos próprios trabalhadores. Progressivamente, as
identificações alternativas tornaram-se mais credíveis e eficazes para
canalizar a denúncia da deterioração das condições de vida dos
trabalhadores, do agravamento das desigualdades de poder e da injustiça
social causadas pela nova fase do capitalismo global a que se
convencionou chamar “globalização” ou “neoliberalismo”.
As
identificações alternativas não estavam igualmente distribuídas ou
disponíveis no vastíssimo campo social do trabalho, e as assimetrias se
revelaram nos tipos de demanda que adquiriram mais visibilidade e nas
regiões do mundo em que se mostraram mais eficazes. Em muitos casos, nem
sequer é correto falar de identidades alternativas, pois os grupos
sociais que se apropriaram delas não tinham tido antes nenhuma
identificação assentada nos processos e na força de trabalho. Nesses
casos, estamos diante de identidades originárias que em certo momento
histórico se transformam em recursos ativos de identificação coletiva e
reivindicativa.
Essa
mudança foi propiciada por transformações no domínio cultural que,
entretanto, ocorreram e que foram, também elas, resultado de relações
dialéticas. Por um lado, a mobilização política a partir das “novas”
identidades revelou outras formas de opressão antes naturalizadas e
dotou-as de uma carga ética e política que não tinham. Revalorizou o que
era desvalorizado: as mulheres eram inferiores e menos capazes de
realizar o trabalho industrial mais qualificado; os indígenas não
existiam ou eram povos em extinção; os camponeses eram um resíduo
histórico, e seu desaparecimento seria sinal de progresso; os
afrodescendentes eram o resultado infeliz, mas marginal, de um processo
histórico globalmente portador de progresso; a preocupação com o meio
ambiente era reacionária, porque celebrava o subdesenvolvimento; os
recursos naturais existiam na natureza, não em comunidades humanas, e
eram infinitos, logo exploráveis sem limite; os direitos humanos eram
uma nebulosa política duvidosa, e o que se resgatava dela eram os
direitos de cidadania pelos quais o movimento operário tanto tinha
lutado; os direitos coletivos eram uma aberração jurídica e política; a
paz era um bem, mas o complexo industrial-militar também o era; a
democracia era algo positivo, mas com muitas reservas, porque desviava
as atenções e as energias necessárias para a revolução ou porque dava
aos excluídos a ilusão perigosa de algum dia serem incluídos, o que, ao
ocorrer, seria um desastre para a ordem social e a governabilidade.
Como
afirmei, esses processos estiveram dialeticamente vinculados às
transformações do capitalismo no período. Por um lado, a lógica da
acumulação ampliada fez com que mais e mais setores da vida fossem
sujeitos à lei do valor: dos bens essenciais para a sobrevivência (por
exemplo, a água) ao corpo (homo prostheticus, prolongamentos
eletrônicos do corpo, indústria do cuidado corporal, tráfico de órgãos),
dos estilos de vida (consumos físicos e psíquicos “necessários” à vida
na sociedade de consumo) à cultura (indústria do lazer e do
entretenimento), dos sistemas de crenças (teologias da prosperidade) à
política (tráfico de votos e decisões por via da corrupção, lobbying,
abuso de poder). Com todas essas transformações, o capitalismo foi
muito além da produção econômica no sentido convencional – passou a ser
um modo de vida, um universo simbólico-cultural suficientemente
hegemônico para impregnar as subjetividades e a mentalidade das vítimas
de suas classificações e suas hierarquias.
A
luta anticapitalista passou a ser mais difícil e precisa ser cultural e
ideológica para ter eficácia no plano econômico. Por outro lado, e para
surpresa de muitos, a acumulação ampliada, longe de erradicar os
últimos vestígios da acumulação primitiva (as formas de superexploração,
pilhagem, escravatura, confisco tornados possíveis por meios
“extraeconômicos”, militares, políticos), fortaleceu-a tal como havia
previsto Rosa Luxemburgo e tornou-a uma realidade cruel para milhões de
pessoas que vivem na periferia do sistema mundial, tanto na periferia
global (os países mais fortemente submetidos à troca desigual) como nas
periferias nacionais (os grupos sociais excluídos em cada nação,
inclusive nos países centrais, o que se tem chamado “Terceiro Mundo
interior”). Muitos dos que vivem sob o regime do fascismo social estão
sujeitos a formas de acumulação primitiva.
Esses
são alguns dos fatores que vieram questionar não só o protagonismo do
movimento operário, como também a própria ideia de sujeito histórico. As
formas de opressão reconhecidas como tal são hoje muito numerosas, e o
modo como são vividas, muito diversificado na intensidade e nas lutas de
resistência que suscita. A inter-relação global entre elas é também
mais visível. A pluralidade das ações e dos atores anticapitalistas e
anticolonialistas é hoje um fato incontornável quando se pensa em
alternativas ao capitalismo e ao colonialismo.
Não
é claro o sentido hoje da expressão “alternativa socialista radical”.
Primeiro, porque, como vimos, o objetivo do socialismo é vago ou
contestado, e muitos dos movimentos que lutam contra o capitalismo ou
contra o colonialismo não definem seus objetivos como socialismo.
Segundo, porque também não é claro o que se entende por radical referido
a socialismo. Uso o adjetivo “radical” quando referido à democracia
porque lhe posso dar um conteúdo específico, o das lutas articuladas
pela democratização em cada um dos seis espaços-tempo que citei. Além de
certo limite, o êxito dessas lutas é incompatível com o capitalismo. A
democracia revolucionária é a que sabe passar esse limite e impor-se
além dele. Faz isso criando subjetividades, mentalidades e formas de
organização tão intensamente democráticas que a imposição ditatorial do
capitalismo se torna uma violência intolerável e intolerada.
O
êxito das alternativas socialistas mede-se pelo grau, mais intenso ou
menos intenso, com que tornam o mundo menos confortável para o
capitalismo. O problema é que tal efeito está longe de ocorrer de modo
linear, algo que é muito difícil de conceber em teoria e de valorizar em
política. As inércias políticas e teóricas decorrem dessa dificuldade. A
crença na linearidade leva-nos a continuar a acreditar em propostas e
modelos há muito inviáveis, ao mesmo tempo que nos impede de identificar
o valor propositivo de lutas e objetivos emergentes. As alternativas
socialistas (prefiro sempre o plural) tendem a surgir de uma confluência
virtuosa entre a identificação do que já não é possível e a identificação do que ainda não é possível.
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