Como a China aproveita-se da obsessão militarista dos EUA para
propor, em alternativa, uma integração baseada em ferrovias de alta
velocidade, gasodutos, portos e redes de fibra ótica
Por Pepe Escobar | Tradução Vila Vudu
Há quase seis anos, o presidente Putin propôs à Alemanha “a criação
de uma comunidade econômica harmoniosa que se estenda de Lisboa a
Vladivostok.”
A ideia representava um imenso empório comercial que uniria Rússia e
União Europeia ou, nas palavras de Putin, “um mercado continental
unificado com capacidade estimada em trilhões de dólares.”
Em resumo: Integração da Eurásia.
Washington entrou em pânico. Registros mostram como a visão de Putin –
embora extremamente sedutora para os industriais alemães – foi
rapidamente desmontada pelo processo de demolição controlada que os EUA
puseram em ação na Ucrânia.
Três anos atrás, no Cazaquistão, depois na Indonésia, o presidente Xi Jinping expandiu a visão de Putin, propondo o projeto Um Cinturão, Uma Estrada [ing. One Belt, One Road (OBOR)], também chamado Novas Rotas da Seda,
ampliando a integração geoeconômica do Pacífico Asiático mediante uma
vasta rede de rodovias, ferrovias para trens de alta velocidade,
oleodutos e gasodutos, portos e cabos de fibra ótica.
Em resumo: uma versão da integração da Eurásia ainda mais ambiciosa,
envolvendo dois terços da população mundial, a economia e o comércio. A
diferença é que agora a coisa vem com poderosos músculos financeiros a
lhe dar suporte, mediante um Fundo Rota da Seda, o Banco Asiático de
Investimento e Infraestrutura (BSII), o Novo Banco de Desenvolvimento
dos BRICS (NBD), uma muito ampla ofensiva comercial por toda a Eurásia e
a entrada oficial do yuan na cesta de moedas que usufruem dos Direitos
Especiais de Saque do FMI (que é como o batismo do yuan, que passa a ser
moeda que interessa manter nos cofres, como moeda de reserva, a todos e
quaisquer bancos centrais de países em crescimento.
Na recente reunião do G20 em Huangzhou, o presidente Xi claramente demonstrou como o projeto OBOR
é absolutamente central à visão chinesa de como deve avançar a
globalização. Pequim está apostando que a ampla maioria de nações em
toda a Eurásia preferirão investir em, e lucrar com, um projeto
“ganha-ganha” de desenvolvimento econômico, em vez de se deixar enredar
num jogo estratégico tipo perde-perde entre EUA e China.
E isso é anátema absoluto para o Império do Caos. Como aceitar que a China esteja vencendo o Novo Grande Jogo na Eurásia / século 21, construindo Novas Rotas da Seda?
E não esqueçam a Rota da Seda na Síria
Poucos no ocidente souberam que, como RT noticiou, antes do G20 reuniu-se um Fórum Econômico Oriental em Vladivostok. Essencialmente, foi mais uma celebração de facto da integração da Eurásia, com Rússia, China, Japão e Coreia do Sul.
E que essa Eurásia integrada em pouco tempo se fundirá com a União
Econômica Eurasiana liderada pela Rússia – a qual, só ela, já é um tipo
de Nova Rota da Seda russa.
Todas essas estradas levam à conectividade total. Considerem-se, por exemplo, os trens de carga que agora já ligam regularmente Guangzhou,
o entreposto chave no sudeste da China, ao centro logístico no parque
industrial Vorsino, perto de Kaluga [quase na fronteira entre a Rússia e
a União Europeia]. A viagem agora é feita em apenas duas semanas –
economizando nada menos que um mês de viagem, em relação ao trajetopor
mar; e corta 80% do custo, em relação ao transporte aéreo.
É mais uma conexão estilo Nova Rota da Seda entre China e Europa via
Rússia. Outra conexões, muitíssimo mais ambiciosa, será a expansão da
ferrovia Transiberiana, com trens de alta velocidade: a Rota da Seda
Siberiana.
Há também a integração mais próxima, de China e Cazaquistão – país também membro da União Econômica Eurasiana. A ferrovia duty-free
Transeurasiana já está operando, de Chongqing em Sichuan cruzando
Cazaquistão, Rússia, Belarus e Polônia, até Duisburg na Alemanha. Pequim
e Astana estão desenvolvendo uma zona livre comum de comércio em
Horgos. E, paralelamente, uma Zona de Cooperação Econômica
Transfronteira China-Mongólia, começou a ser construída mês passado.
O Cazaquistão está até flertando com a ambiciosa ideia de um Canal
Eurasiano do Mar Cáspio ao Mar Negro, e dali adiante até o Mediterrâneo.
Mais cedo ou mais tarde, empresas construtoras chinesas aparecerão com
um estudo de viabilidade, pronto.
Uma agenda de Washington virtualmente invisível na Síria – embutida
na obsessão do Pentágono com não admitir que nenhum cessar-fogo jamais
funcione, ou para impedir que seus “rebeldes moderados” caiam, em Aleppo
– é quebrar ali, também, um importante nó da Nova Rota da Seda. A China
tem operado comercialmente conectada à Síria desde a Rota da Seda
original, que sempre passou por Palmyra e Damasco. Antes da “Primavera
Árabe” síria, comerciantes sírios era presença vital
em Yiwu, sul de Xangai, o maior centro atacadista para bens de consumo
de pequeno porte de todo o mundo. Os sírios compravam ali todos os tipos
de produtos, no atacado, para revender no Oriente Médio.
O “Lago Norte-americano”
A Washington neoconservadora/neoliberal está totalmente catatônica,
incapaz de formular qualquer resposta – ou, pelo menos, alguma
contraproposta, à integração eurasiana. Uns poucos ali, com QI um pouco
mais alto, podem compreender que o que se chama “ameaça” da China aos
EUA tem tudo a ver com força econômica. Considerem a profunda
hostilidade de Washington contra o BAII (Banco Asiático de Infraestrutura e Investimento). Mas nem todo o lobbying
norte-americano mais furioso conseguiu impedir que aliados seus, como
Alemanha, Grã-Bretanha, Austrália e Coreia do Sul, se integrassem ao
novo banco, como parceiros.
E há o empenho insano para conseguir aprovar a “Parceria” Trans-Pacífico, TPP
– China excluída – e braço comercial da OTAN, de apoio ao pivô para a
Ásia, que deveria ter sido a cereja do bolo, hoje já quase completamente
abatumado, da política econômica de Obama. Seja como for, no pé em que
está hoje, a TPP está praticamente morta.
O que a conjuntura geopolítica parece estar mostrando é a Marinha dos
EUA disposta a fazer praticamente qualquer coisa, no esforço para
impedir que a China assuma o domínio estratégico no Pacífico, ao mesmo
tempo em que a TPP operaria como arma para impedir que a China dominasse
economicamente aquela região.
Com o pivô para a Ásia configurado como ferramenta para “conter a
agressão chinesa”, os excepcionalistas demonstraram claramente como são
incapazes de admitir que todo o jogo está relacionado à geopolítica da
cadeia de suprimento pós-ideológico. Os EUA não precisam conter a China;
precisam, isso sim, desesperadamente, da conexão industrial, financeira
e comercial com os nós cruciais, em toda a Ásia, para (re)construir a
economia norte-americana.
Longe vão os dias, de março-1949, quando MacArthur podia pavonear-se
de que “o Pacífico é agora um lago anglo-saxão”. Mesmo depois do fim da
Guerra Fria, o Pacífico era um lago norte-americano de facto; os EUA violavam à vontade o espaço aéreo e naval da China.
Hoje, meros 67 anos depois, temos aí toda a Academia de Guerra do Exército dos EUA e toda a Think-Tankelândia
passando noites em claro debruçados sobre os sofisticados mísseis
chineses capazes de vedar o acesso à Marinha dos EUA para o Mar do Sul
da China. Lago norte-americano? Acabou-se. No more.
O xis da questão é que a China apostou fortemente na construção de
infraestrutura – que se traduz em conectividade de primeira classe para
todo o planeta – como os reais commons globais do século 21, muitíssimo mais importantes que security.
Afinal, toda uma grande parte da infraestrutura global ainda está para
ser construída. Enquanto a China turbina o próprio papel de maior
exportador global de infraestrutura – de ferrovias de alta velocidade a
telecomunicações de baixo custo – a “nação indispensável” está ainda às
voltas com a tal pivoteação, atrapalhada, perplexa, doentiamente
obcecada com “contenção” por via militar.
Dividir para governar aqueles rivais “hostis”
Bem… As coisas não mudaram muito desde quando o Dr. Zbig “Grande
Tabuleiro de Xadrez” Brzezinski sonhava no final dos anos 1990s com uma
fragmentação chinesa de dentro para fora, diretamente até a Estratégia
de Segurança Nacional de 2015 de Obama, que nada é além de fútil
nostalgia retórica sobre conter Rússia, China e Irã.
Daí a cesta de mitos agregados como “liberdade de navegação” –
eufemismo que Washington adota para “controle perene de rotas marítimas
que são rotas de suprimento para a China – e uma apoteose de “agressão
chinesa” cada vez mais fundida com “agressão russa”; afinal de contas, a
parceria estratégica encabeçada por Pequim-Moscou para integração da
Eurásia tem de ser rompida a qualquer custo.
Por quê? Porque a hegemonia global dos EUA tem de ser sempre
percebida como força irremovível, uma força da natureza que ninguém
muda, feito a morte e os impostos (exceto a Apple na Irlanda).
Vinte e quatro anos depois do Guia de Planejamento da Defesa do Pentágono (ing.Pentagon’s Defense Planning Guide),
ainda prevalece o mesmo modo de pensar: “Nosso primeiro objetivo é
impedir a reemergência de novo rival (…) impedir qualquer potência
hostil de dominar região cujos recursos, sob controle consolidado, sejam
suficientes para gerar poder global. Essas regiões incluem Europa
Ocidental, Ásia Oriental, o território da União Soviética e o sudoeste
da Ásia”.
Epa! Agora, até o Dr. Zbig “Grande Tabuleiro de Xadrez”
Brzezinski também está apavorado. Como conter essas amaldiçoadas rotas
da seda, com as “ameaças existenciais” (para o Pentágono) China e
Rússia, bem ali, no coração da ação? Dividir para governar. E o que mais
teriam?!
Para um já confuso Brzezinski, os EUA devem
“conceber uma política na qual pelo menos um dos dois estados
potencialmente ameaçadores torne-se parceiro na busca por estabilidade
primeiro regional, depois mais amplamente global, e assim conter pelo
menos o rival menos previsível mas potencialmente o que tem maior
probabilidade de se superdistender. Atualmente, o que mais provavelmente
se superdistenderá parece ser a Rússia, mas no longo prazo, pode ser a
China.”
Tenham bons pesadelos.
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