Com base em dados da Receita, economista calcula: 0,05% da
população ganham mais de R$ 100 mil ao mês; e 0,15%, mais de R$ 50 mil.
Eles pagam apenas 7% de Imposto de Renda
Por Patricia Fachin, no IHU
Aproximadamente 70 mil pessoas estão no topo da pirâmide dos super-ricos brasileiros,
que têm rendimentos acima de um milhão e trezentos mil reais anuais e,
em segundo lugar, estão as outras 200 mil pessoas mais ricas do país,
com rendimentos a partir de 650 mil anuais. Esses dados correspondem às
informações obtidas a partir da análise da declaração do Imposto de
Renda de 2013 e têm sido utilizados na pesquisa do economista Rodrigo
Octávio Orair, que estuda alternativas ao atual sistema tributário brasileiro.
“A principal renda deles”, informa, “são lucros e dividendos e
aplicações financeiras. Então, são pessoas cuja fonte de renda não é
tanto a renda do trabalho regular, mas, fundamentalmente, a renda por
conta de serem proprietários de empresas, ou por investirem em ações, ou
em rendimentos de aplicações financeiras”.
Na avaliação do economista, as atuais informações sobre a renda do 1% mais rico do
país levantam uma discussão a respeito da desigualdade da tributação.
Ele sugere, inclusive, um debate sobre uma possível reforma tributária
no país, já que os mais ricos pagam “7% de imposto de renda”.
O economista frisa ainda que em muitos países desenvolvidos as
alíquotas progressivas têm sido uma opção para tributar as pessoas
conforme a renda. Isso significa, explica, que “uma parte da população é
isenta e a partir daí existem alíquotas marginais cada vez mais altas,
de maneira que os muito ricos pagam mais imposto do que a classe média
alta e do que os muito pobres”. No Brasil, ao contrário, compara, “temos
um conjunto de isenções e benefícios tributários que permitem que a
maior parte da renda dos muito ricos seja isenta”.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone, Rodrigo Orair pontua ainda que em vez de a Reforma da Previdência e das discussões em torno do salário mínimo serem temas do ajuste fiscal,
a Reforma Tributária deveria ser colocada em pauta para retomar o
crescimento e o investimento. “O ideal seria fazer uma discussão ampla e
ver todas essas distorções e todos esses excessivos benefícios. O
ajuste fiscal não pode ser feito só pelo lado da despesa, suprimindo
direitos sociais, ainda que haja certos privilégios que precisam ser
combatidos, mas é possível fazer ajuste fiscal de duas formas, inclusive
pela receita, por exemplo, revisando uma série de subsídios e
desonerações que não se mostraram efetivos. O segundo caminho – que é
uma tendência, baseada em um relatório recente da OCDE sobre tendências
de tributação nos países desenvolvidos e consiste em perseguir o ajuste
fiscal, poupando a base da distribuição de renda – é por meio da
ampliação da progressividade da tributação, ou seja, ampliando a
tributação sobre os muito ricos; e não temos discutido isso no Brasil”,
reitera.
Rodrigo Octávio Orair
é graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Minas
Gerais – UFMG, mestre em Teoria Econômica pela Universidade Estadual de
Campinas – Unicamp. Atualmente é pesquisador do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada – Ipea.
Confira a entrevista.
Rodrigo Octávio Orair – Esse é um grande
debate na literatura, pois não se tem uma definição clara do que é rico
ou do que é classe média; tudo isso é mal definido. Em geral existem
dois tipos de debate: um sociológico, a partir da temática de classes
sociais; e uma definição mais econômica, a partir das faixas de renda.
Acho mais interessante esses trabalhos longos que tratam das classes
sociais, mas no debate político e público acaba prevalecendo uma visão
mais reducionista relacionada à renda.
Então a partir da renda, como caracteriza o estrato social
brasileiro? Que rendas correspondem às categorias salariais existentes
hoje, como classe A, B, C, D?
Normalmente os estudos de distribuição de renda se baseavam nas
chamadas pesquisas domiciliares, que, em geral, são feitas pelo IBGE.
Essas pesquisas tendem a subestimar a renda dos muito ricos, por dois
motivos: primeiro, porque a pesquisa é amostral, e é difícil conseguir
captar quem são os mais ricos, porque é uma fração muito pequena da
população; segundo, por conta da própria natureza dessas pessoas, porque
são rendas que vêm, principalmente, da propriedade, seja de empresas,
seja de ativos financeiros. Logo, são rendas mais instáveis e são
difíceis de serem identificadas em comparação com um cidadão que tem um
trabalho formal e que todos os meses recebe o mesmo salário.
Recentemente começou a haver, de novo, um crescente interesse por
outro tipo de estudo, que são os estudos com os dados das declarações de
Imposto de Renda de Pessoa Física – IRPF. O principal estudo na literatura internacional sobre isso é do Thomas Piketty,
no qual ele recupera séries históricas das declarações de Imposto de
Renda para analisar a desigualdade e a renda dos muito ricos.
Recentemente o Brasil entrou nessa onda, e começou a se
ter acesso a dados mais detalhados do IRPF. Através desses dados é
possível captar melhor as rendas dos muito ricos no Brasil.
Então a pesquisa via Imposto de Renda é mais adequada para identificar qual é a renda dos mais ricos?
Para obter as informações sobre os muito ricos, sim, porque só declara Imposto de Renda
quem tem uma renda maior. A maioria da população brasileira não declara
Imposto de Renda porque está abaixo dos limites de isenção. Com a
análise desses dados começamos a ter informações reais de quanto ganham
os muito ricos no Brasil. Em geral estou falando de frações de
concentração de renda do topo, ou seja, o quanto ganha o 1% mais rico no Brasil,
que é a população adulta dividida por 100, isto é, quanto ganha o
centésimo mais rico do Brasil e quanto ganha o milésimo mais rico do
país, que é 0,1% mais rico da distribuição de renda.
Qual é a renda desses estratos?
Só para dar um exemplo, conforme dados da renda anual do Imposto de Renda de 2013, que pertence ao estudo que fiz com o Sérgio Wulff Gobetti,
o grupo mais rico gira em torno de 70 mil pessoas — 0,05% da população,
considerando apenas os adultos no – nesse ano havia cerca de 140
milhões de habitantes com mais de 18 anos no país -, que tem rendimentos
acima de um milhão e trezentos mil reais anuais, e a renda média deles é
de 4,2 milhões de reais por ano. E depois, os 200 mil mais ricos do
país ganham a partir de R$ 650 mil anualmente. No Brasil, os super-ricos
são esses 70 mil, que recebem mais de um milhão e trezentos mil reais
por ano.
É possível identificar quais são as áreas de atividades de atuação dos super-ricos?
É difícil cruzar os dados por setores de atividades, mas é possível
saber o tipo de renda que eles recebem, e a principal renda são lucros e
dividendos e aplicações financeiras. Então, são pessoas cuja fonte de
renda não é tanto a renda do trabalho regular, mas, fundamentalmente, a
renda por conta de serem proprietários de empresas, ou por investirem em
ações, ou em rendimentos de aplicações financeiras.
É a partir da não tributação de lucros e dividendos que
afirma que a transferência de renda para os ricos é crescente no Brasil?
Como essa transferência ocorre e quais dados demonstram isso?
Para entender isso, é preciso compreender o que é a ação distributiva
do Estado. O Estado altera a distribuição de renda da população de duas
maneiras principais: de um lado, pela estrutura da tributação de quem
arrecada, ou seja, quem paga para financiar o Estado na forma de
tributos; de outro lado, os tipos de gastos que o Estado tem, que pode
pagar, obviamente, benefícios assistenciais para a família, como o Bolsa
Família, salários para os servidores, subsídios para investimentos e
outros tipos de gastos que vão gerar renda para as famílias, como os
benefícios previdenciários. O que chama a atenção no Brasil é que do
lado da arrecadação, o Imposto de Renda é bastante restrito no sentido de tributar os muito ricos, e mostramos isso com os dados do Imposto de Renda.
Em quase todos os países desenvolvidos, com poucas exceções, em
geral, há o que chamamos de alíquotas progressivas do Imposto de Renda,
isto é, uma parte da população é isenta e a partir daí existem alíquotas
marginais cada vez mais altas, de maneira que os muito ricos pagam mais
imposto do que a classe média alta e do que os muito pobres. No Brasil
temos um conjunto de isenções e benefícios tributários que permitem que a
maior parte da renda dos muito ricos seja isenta; o principal deles são
os lucros e dividendos: a pessoa é dona de uma empresa, essa empresa
opera, transfere lucros e dividendos para a pessoa física, que por sua
vez paga 0% de imposto quando recebe esses rendimentos.
O contraste com o salário é muito grande, porque se você é um
trabalhador, vai pagar até 27,5% de IRPF. Portanto, esse é um mecanismo
que, de um lado, faz com que o financiamento do Estado pese muito pouco a
mão dos muito ricos. Do outro lado, da ótica do gasto, o Estado
brasileiro promove uma transferência de renda bastante significativa
para a base da distribuição, mas grande parte disso é anulada pela
chamada regressividade da carga tributária, porque como se tributa muito
os mais pobres e pouco os mais ricos, quando se transfere renda para
eles, acaba se compensando uma coisa pela outra. No debate de hoje está
se falando de Previdência e do salário mínimo, mas estão esquecendo
vários outros mecanismos que beneficiam o topo da distribuição de renda e
que não estão sendo discutidos.
Quais?
Vou mencionar alguns exemplos. Primeiro, o conjunto de desonerações que
foram dadas nos últimos anos para as grandes empresas com o intuito de
se retomar o investimento, o qual não se efetivou. Para ampliar o
investimento para o setor privado foram dadas várias desonerações para
as grandes empresas, obviamente, indiretamente se beneficiaram os
proprietários dessas grandes empresas, e esse é um conjunto de
transferências do qual não se fala muito. O segundo, evidentemente, é o
grande pagamento de juros no Brasil que, indiretamente, beneficia
aqueles que são detentores da dívida pública ou
que têm aplicações financeiras com renda fixa nas suas carteiras e
assim sucessivamente, então, é outro tipo de transferência da qual pouco
se fala.
Como é possível resolver a questão das isenções e desonerações para as grandes empresas?
O país está em um momento fiscal difícil, mas a discussão está muito
enviesada porque só se fala em uma coisa: a Previdência. O ideal seria
fazer uma discussão ampla e ver todas essas distorções e todos esses
excessivos benefícios. O ajuste fiscal não pode ser feito só pelo lado
da despesa, suprimindo direitos sociais, ainda que certos privilégios
precisem ser combatidos. É possível fazer ajuste fiscal de duas formas,
inclusive pela receita, por exemplo, revisando uma série de subsídios e
desonerações que não se mostraram efetivos. O segundo caminho – que é
uma tendência, baseada em um relatório recente da OCDE sobre tendências
de tributação nos países desenvolvidos e consiste em perseguir o ajuste
fiscal, poupando a base da distribuição de renda – é por meio da
ampliação da progressividade da tributação, ou seja, ampliando a
tributação sobre os muito ricos; e não temos discutido isso no Brasil. O
principal exemplo é revisar esse conjunto de benefícios tributários do
IRPF no Brasil.
Quando analisamos a renda dos muito ricos – aqueles que ganham mais
de um milhão –, vemos que a alíquota deveria ser progressiva de acordo
com a renda das pessoas. Com isso vamos vendo que a maior parte da
população brasileira é isenta, porque só em torno de 26 milhões de
pessoas declaram Imposto de Renda. E quem paga IR no Brasil são os 5%
mais ricos da população. Essa alíquota começa em zero e vai crescendo,
até chegar próximo de 12 ou 13% para a população que recebe R$ 160 a R$
300 mil por ano. Por que ela vai crescendo? Porque a renda dessa
população ainda é salário; essa é a “classe média alta”. A partir de R$
360 mil, as alíquotas começam a cair. Por que elas caem? Porque a partir
desse ponto a principal fonte de renda deixa de ser o salário e passa a
ser os rendimentos isentos, principalmente lucros e dividendos,
e rendimento de aplicação financeira, cujas alíquotas são mais baixas
que o salário. E quando chegamos ao topo da pirâmide, nos muito ricos,
como a maior parte da renda deles é isenta ou têm alíquotas menores,
isso acaba fazendo com que eles paguem 7% de IR, enquanto a classe média
alta paga entre 12% e 13%, em média, pois têm os que pagam mais e os
que pagam menos. Então, esse é um exemplo de como se quebrar a escala de
progressividade.
Como os países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE têm atuado em relação à tributação?
O único dos 34 países membros da OCDE que tem isenção total como o
Brasil é a Estônia. Outros quatro, entre eles, México, Eslováquia e
Grécia, tinham isenção total e revisaram.
Houve uma época em que se tinha a tendência de dar incentivos
tributários para a renda do capital, isto é, tratar de forma diferente a
renda do capital e a renda do trabalho. Isso tem se mostrado ineficaz e
hoje se está revisando essa medida, está se tentando unificar o
tratamento tributário, isto é, rever incentivos, rever esses benefícios e
essas desonerações; é uma tendência global, simplificar e unificar.
Outros países já têm feito essa revisão tributária? Quais os resultados alcançados?
Revisão da isenção completa foi feita pelo México, a Grécia e a
República Eslováquia, mas os outros países já tinham feito. A
administração do George Bush havia reduzido impostos para os mais ricos
nos EUA,
tanto a alíquota máxima, quanto a alíquota sobre dividendos, que era
20% e caiu para 15%. O governo Bush também tinha autorizado a redução do
Imposto de Renda, o que fez com que a alíquota máxima caísse de 39,5%
para 35% – no Brasil, a alíquota máxima é 27,5%.
Esse problema de consolidação fiscal é global, vários países do mundo
estão percebendo isso. Em sua gestão, por exemplo, Obama teve a opção
de fazer um ajuste fiscal. O governo Obama teve a opção de renovar essas
alíquotas baixas e tomou a decisão de ampliar as deduções para os mais
pobres no Imposto de Renda, beneficiando-os; manter as alíquotas
reduzidas para a classe média; e aumentar as alíquotas do topo para o
percentual anterior ao do governo Bush. Desse modo, a alíquota máxima do
Imposto de Renda nos EUA voltou de 35% para 39,5% e os 15% de
dividendos voltaram a ser 20%.
E qual foi o impacto dessa mudança?
É difícil fazer a avaliação, porque essa medida é recente e a economia global está em uma crise, mas os estudos mostram que isso não teve um impacto tão grande assim no crescimento e gerou um potencial de receita razoável.
Quem também fez uma reforma parecida foi a Michelle Bachelet, no
Chile, em 2013. A reforma tributária chilena é uma experiência curiosa.
Quando aconteceu aquela revolta dos estudantes em torno da educação,
eles pediam uma reforma do sistema educacional, porque o
governo Pinochet estabeleceu tanto um sistema privado de previdência
como também um sistema educacional com financiamento privado. O problema
é que a economia caiu muito desde 2008, data que a economia global
desacelerou, e com isso se gerou um problema: o aluno vai para a
universidade, faz um financiamento junto ao setor privado e sai da
faculdade com a dívida, esperando conseguir um bom emprego para pagá-la.
No entanto, a gurizada saía da faculdade e ficava com a dívida e o
desemprego, gerando um enorme mal-estar. Então havia uma pressão nas
ruas para fazer uma reforma educacional.
À época o presidente era o Sebastián Piñera, candidato conservador, e
ele era favorável a reduzir impostos para recuperar o crescimento, mas
Bachelet defendeu a proposta de que era preciso fazer uma reforma do
imposto de renda para tributar os mais ricos e financiar a reforma
educacional. A proposta dela foi a vencedora nas urnas e ela fez a
reforma em 2013.
Há resistência por parte dos mais ricos de aumentar a
tributação? Eles argumentam que se aumentar a tributação, poderão deixar
de investir?
Isso é curioso. Nos anos 1980 e 1990 foram dados vários benefícios
para os mais ricos. Inclusive foi feita uma reforma na década de 1980,
no Brasil, que reduziu as alíquotas do Imposto de Renda e foi dada uma
série de incentivos tributários nas décadas de 1980 e 1990, e não veio
nem o crescimento todo nem o investimento todo, não só no Brasil, mas em
vários países do mundo. Então, a experiência histórica recente tende a
mostrar que não há essa relação tão clara. Tanto é assim que existe um
livro organizado pelo governo britânico sobre sistema tributário. Nessa
obra, vários economistas comentam os modelos teóricos na década de 1970,
os quais acreditavam que se deveria dar incentivos tributários e
reduzir a tributação dos mais ricos para estimular o crescimento e o
investimento.
Recentemente grande parte desses caras revisou seus modelos, com base
na ideia de que essas hipóteses eram muito simplistas, que na prática
não funcionaria assim, e criaram modelos mais pragmáticos. Nesses casos
estou falando de ganhadores de prêmios Nobel como, por exemplo, o Joseph Stiglitz,
que na década de 1970 fez um modelo que defendia esse tipo de redução
de alíquotas do capital e dos mais ricos, o qual reviu recentemente.
Além dele, Anthony Barnes Atkinson e James Mirrlees, que defenderam esse ponto de vista, voltaram atrás e revisaram seus modelos.
Junto dessa antiga geração, que são mais velhos e que eram da geração
originária desses modelos de tributação, surgiu uma nova geração de
pessoas entre 40, 50 anos, como Piketty, que mostra que esses benefícios não têm esses efeitos tão claros.
E quando você menciona que não houve o crescimento esperado
com as isenções, que tipo de crescimento se esperava no caso do Brasil,
por exemplo?
Em geral, principalmente, espera-se investimento. O grande argumento é
que quando há a tributação da renda dos muito ricos, se reduz a
poupança, e com a redução da poupança, haverá a redução dos
investimentos. O argumento contrário é o mesmo: se deixar de tributar,
terá uma poupança maior e essa poupança maior vai gerar um investimento,
um esforço empreendedor, e as empresas investirão mais, os mais ricos
vão tomar riscos etc. O ponto é que em 1995 isso foi feito, e o
investimento no Brasil não respondeu; o investimento no país só teve um
curto período de expansão forte entre 2003 e 2008, mas isso não parece
ter relação com a reforma de 1995. Se analisarmos as informações dos
anos seguintes à reforma, veremos que o investimento não respondeu. Se
esse modelo estivesse tão certo assim, não teria que ter respondido?
Alguns alegam que os empresários não investem por causa de
outro fenômeno que é a alta taxa de juros brasileira, a qual garante
alta rentabilidade para investidores, de tal modo que eles preferem
investir desse modo do que de outro. A alta taxa de juros tem
influenciado a falta de investimentos no mercado, por exemplo? Qual é a
dificuldade em reduzi-la? O que impede o Estado de atuar de modo mais
direto nesse ponto?
A alta taxa de juros é
um problema; ela influencia, sim, esse processo. A reforma tem que
estar colada em um arranjo macro, do contrário não dá para fazer
qualquer discussão de política econômica no Brasil. O problema é que a
taxa de juros é alta e com isso garante um piso de rentabilidade para o
capital muito alto. Imagine: eu sou empresário, posso colocar minha
renda em títulos públicos ou em uma carteira de rendimentos de renda
fixa, como algum CDB, ou num título público que me dá 15%. Eu até pago
15% de imposto, tem um pouco de inflação, mas mesmo assim esse tipo de
investimento me dá um ganho certo de 4%. Assim, eu só vou investir se
tiver algo muito atrativo, porque senão eu fico mais tranquilo com esse
tipo de investimento. Por que vou correr riscos se posso ter a vantagem
de aplicar em títulos públicos que dão liquidez e rentabilidade? Esse é
um problema do Brasil.
A redução da taxa de juros seria um mecanismo efetivo para distribuição de renda?
Do ponto de vista da distribuição de renda, tem que ver as
consequências dessa redução, mas em geral, sim. A taxa de juros tem um
chamado “efeito riqueza”, porque é, na verdade, a remuneração dos
detentores dos títulos da dívida pública.
É preciso ter certo cuidado nesse debate, pois, às vezes, as pessoas
acham que os detentores da dívida pública são quatro ou cinco pessoas
que moram no Morumbi, mas não é bem assim. A dívida pública está nas
mãos dos grandes, claro que há pessoas físicas que são detentoras de
títulos da dívida pública, mas em geral são carteiras de bancos,
carteiras de empresas e assim sucessivamente, que vão lastrear as
aplicações.
Tem muita gente de classe média que quando vai ao banco e aplica em
um CDB, que é um conjunto de aplicações do banco, entre eles, os títulos
da dívida pública, também está aplicando nesse tipo de investimento.
Nesse sentido, a classe média se beneficia um pouco, indiretamente, com
essas aplicações que faz.
Quais as alternativas para reduzir a transferência de renda para os mais ricos?
Uma grande revisão de desonerações e subsídios, que foram ampliados nos últimos anos e também não se mostraram efetivos.
A maior taxação de fortunas e heranças seria adequada?
Há toda a discussão de progressividade da tributação.
O que é essa ideia de progressividade? Tributar proporcionalmente mais
quem ganha mais, ou seja, quanto maior a sua renda, maior deveria ser
sua alíquota. Existem várias maneiras de fazer isso: um instrumento mais
direto é o IRPF. Só que essa não é a única maneira de tributar os mais
ricos, há outros mecanismos, inclusive o Piketty defende a tributação de heranças progressivas,
porque as alíquotas para tributação de heranças são muito baixas, em
geral é de 2% a 4%, enquanto seria possível regulamentar alíquotas de
até 30%. Nos Estados Unidos isso depende um pouco, mas em outros países
desenvolvidos têm alíquotas que chegam a tributar 40% e 50% da herança.
A taxação sobre heranças recairia sobre todos os bens ou parte deles?
Não necessariamente. Em alguns lugares do mundo são isentos os bens
imobiliários, se for um só. Mas, a princípio, entra todo o patrimônio
que o pai ou a mãe que falece deixará para seus herdeiros.
A ideia do Piketty é
muito interessante, porque em seu livro ele faz referência às obras de
literatura. Entre as obras, ele menciona O Pai Goriot, de Honoré De
Balzac, para dizer que um dos fundamentos do sistema capitalista, da
economia que conhecemos por essa dinâmica, é a ideia do mérito, a ideia
de que, ao me esforçar, trabalhar e conquistar as coisas pelo mérito,
vou elevar o crescimento da produtividade e da produção de todo o mundo.
Então, tenho que acreditar que com o meu mérito eu consigo atingir meus
objetivos. Mas quando eu herdo uma propriedade, isso não é um mérito
meu; eu simplesmente herdei, dei sorte e isso é uma questão aleatória.
Mas, mais do que isso, ele mostra que desde o século XX a taxa de
crescimento do capital, isto é, a taxa de crescimento da renda que vem
de bens imóveis e de aplicações financeiras, é sempre mais alta do que
da renda do trabalho e da produção. Logo, a taxa com que o capital
cresce é sempre maior do que a taxa da produção. Qual a implicação
disso? É de que a pessoa que nasce rica ou que herdou um patrimônio, vai
terminar mais rica, porque a renda de acumulação desse patrimônio é
mais rápida do que a da produção. E assim, por várias gerações, acaba se
criando uma espécie de uma nova oligarquia ou de uma plutocracia, que
não tem mérito.
Piketty exemplifica isso contando a história do livro O Pai Goriot. A
história se passa em torno de uma pensão decadente e mostra que uma das
maneiras que existia à época para não dividir o seu patrimônio era
fazer com que o primogênito herdasse toda a fortuna da família, de tal
modo que não se dividisse a herança, para ter sempre um patrimônio
grande que iria acumulando. O Pai Goriot é um empreendedor, que vende
todo o seu patrimônio para conseguir pagar o dote para suas filhas se
tornarem nobres. Nessa pensão vive uma mocinha que não era a primogênita
da família, mas seu irmão. Na mesma pensão moravam um estudante e um
coroa fanfarrão. O jovem estudava para ser advogado e procurador, mas o
coroa o desestimulava, dizendo que mesmo que ele estudasse, no máximo
ganharia alguns marcos por ano e, portanto, ao invés de perder tempo
estudando para conseguir as coisas pelo mérito, deveria se casar com a
mocinha, pois aí herdaria o patrimônio, o qual daria a ele uma
rentabilidade. No entanto, para ganhar a renda da moça, dado que ela não
era a primogênita, o jovem teria que matar o irmão dela para que ela
pudesse herdar o patrimônio. A ideia de tributar a herança evita esse
canal e, portanto, reorienta a sociedade para atividades de fato
meritórias, em que se conquista o que é seu a partir do seu trabalho.
Os que são contrários à tributação maior das grandes fortunas
argumentam que deixariam de produzir mais se não compensasse ter uma
renda satisfatória. Esse lhe parece um argumento válido?
Você acha quem alguém deixaria de ter fortuna se fosse tributado?
Você acha que o Bill Gates, com a alíquota de imposto de renda máxima,
ficaria mais pobre?
Mas aí eles poderiam contra-argumentar que não valeria a pena trabalhar tanto.
Sim, mas as pessoas falam isso porque têm na memória alíquotas que,
de fato, eram muito altas. As alíquotas chegaram a mais de 80% nos
países desenvolvidos, por exemplo, no entre guerras. O Ronald Reagan
dizia que no entre guerras só se produzia três ou quatro filmes, porque
se produzissem o quinto ou o sexto, as empresas cairiam nessa alíquota
máxima, então não valeria a pena produzir, porque não tinha razão de
trabalhar tanto para não ganhar com isso. Só que nesse período as
alíquotas eram de 80%, 90%, porque se estava dentro de um esforço de
guerra em que se tinha que financiar o Estado de guerra. No pós-guerra,
essas alíquotas caíram para patamares mais baixos. Então, não estamos
falando de alíquotas de 80% e 90%, mas de alíquotas de 27,5% do Imposto de Renda de Pessoa Física no Brasil. Ninguém deixaria de ser rico porque pagaria 27,5% de Imposto de Renda.
E como seria a tributação da herança? Seria preciso tributar toda a herança ou parte dela?
Em relação à herança se fala de todo o estoque que passa de pai para
filho e há toda uma discussão de direito sucessório e planejamento. O
imposto sobre grandes fortunas é um pouco mais complicado e há uma
discussão global em torno dele, porque na França todos fazem a mesma
coisa que faz Gérard Depardieu: colocam o dinheiro em paraísos fiscais,
porque do contrário seriam super tributados. Então, existe de fato uma
discussão sobre qual seria o melhor formato para tributar heranças.
Normalmente se tira o capital imobiliário da tributação, mas não se sabe
se vai se tributar a família, por exemplo, porque esse é um tributo
mais complexo inclusive de operacionalizar. Por isso tendo a preferir a
tributação do IRPF.
Há alguma outra forma de tributação adequada além dessas?
O ideal para o Brasil seria uma ampla reforma tributária,
não tanto para fins distributivos, mas, principalmente para a
simplificação. Inclusive defendo ampliar a tributação do IRPF sobre os
mais ricos, e temos que reconhecer que a carga tributária no Brasil é
muito alta e muito ruim, porque se tributa muito e mal, principalmente
nas empresas e no lucro. Então, poderíamos ampliar a progressividade
sobre as pessoas físicas e usar isso para reduzir um pouco a tributação
no nível da empresa, reduzir o IRPJ, o CSLL e também reformar alguns
impostos sobre bens e serviços, como PIS, Cofins.
Também precisamos fazer um debate sobre a tributação de bens e
serviços. O imposto sobre bens e serviços, que é o chamado tributo
indireto, é, principalmente, aquele que está embutido nos preços dos
bens e serviços. Mas por que ele é regressivo? Porque não diferencia o
rico e o pobre, pois o tanto de imposto que estou pagando em um pote de
sorvete é o mesmo que será pago por uma pessoa muito rica e por uma
muito pobre. A diferença é que os mais pobres consomem toda a sua renda
para suprir suas necessidades básicas, porque eles não têm poupança.
Como eles consomem tudo proporcionalmente à renda, pagam mais impostos
do que eu, que guardo um pouquinho, ou do que o Silvio Santos, que
guarda um montão. Ao usar parte do imposto direto progressivo e do
imposto de renda para tributar os mais ricos, e reduzir e reformar um
pouquinho a tributação sobre bens e serviços, está também se favorecendo
um pouco o crescimento econômico – com a redução dos impostos das
empresas – e também os mais pobres porque, justamente, são eles que mais
pagam impostos sobre bens e serviços.
Para o enfrentamento das desigualdades, alguns têm sugerido a
criação de uma renda universal para todos os cidadãos. Parece-lhe
plausível? Como isso poderia funcionar num país como o Brasil?
A renda básica universal é
uma proposta antiga. Sinceramente, no atual momento fiscal acredito que
não é possível, em médio e longo prazo, aplicar isso no Brasil. Neste
momento estamos na defensiva, temos que defender o que temos aí e evitar
que o ajuste fiscal venha a retirar alguns direitos básicos e renda dos
mais pobres. Se conseguirmos defender programas como Bolsa Família, que
são limitados, mas existem e são importantes, se conseguirmos defender
algumas vinculações, o salário mínimo e algumas transferências
vinculadas ao salário mínimo, já está bom demais.
Em outra conjuntura essa proposta seria possível?
Tem que ver o desenho da proposta. Uma coisa é universalizar um
programa e assegurar que todo o brasileiro que tiver uma renda abaixo de
R$ 300 terá sua renda complementada com mais R$ 300, outra é transferir
R$ 300 para todos os 200 milhões de brasileiros. O custo fiscal disso é
muito alto e acho que não é o caso. É viável ter, de fato, uma
ampliação de um programa como o Bolsa Família para todo mundo que não
consiga, via mercado ou via seu trabalho, atingir esse mínimo. Agora,
transferir essa renda para todos os brasileiros não é possível, pois
somos um país muito populoso, com mais de 200 milhões de pessoas; não
vejo isso como viável do ponto de vista do financiamento. Existem
alternativas que são mais desejáveis, principalmente de ampliação de
serviços públicos, de serviços universais de saúde, de serviços de
educação.
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