Não existe aprendizagem sem afeto. Mas ao invés de preparar para o
compartilharmento e a troca de experiências, nosso ensino enfatiza as
tarefas, o mérito nos exames, a suposta ascensão profissional
Por Lais Fontenelle
Desde antes de nossos filhos nascerem, somos obrigados a decidir não
só sobre pequenas coisas, mas também sobre importantes questões a
respeito de suas vidas. Nunca me esqueço dos últimos meses de gestação,
quando tínhamos de fazer a escolha certa sobre a maternidade mais
humanizada e decidir se iríamos coletar células tronco do bebê na hora
do nascimento, para o caso de algum infortúnio futuro. As escolhas
estavam só começando.
A escolha da escola é uma das mais importantes. O que priorizar? Qual
será então a real função da escola, no século 21? E o papel do
professor? Ensinar conteúdos ou simplesmente mediar a aprendizagem?
Algumas dessas respostas podem ser encontradas no documentário Quando sinto que já sei,
de Antonio Lovato e Raul Perez, que relata sete experiências
alternativas em Educação no Brasil – trazendo temas como sala de aula
sem paredes, escola sem divisão de faixas etárias e alunos decidindo de
forma democrática o que vão aprender. Muito mais do que suscitar o
debate sobre educação no país e o papel da escola na formação de
crianças e jovens, o filme nos faz pensar sobre a vida e,
principalmente, sobre a relação que nós, adultos, estabelecemos com o
mundo, a aprendizagem e a infância nos dias de hoje.
Há uma década trabalho com sensibilização de educadores sobre o tema
da criança e sua relação com o consumo, e sempre inicio minha fala com a
definição de palavras como Escola (do latim schola), que signifca lazer; Educar (do latim educare), que significa conduzir para fora; Brincar (vinculum em latim), que significa laço ou união; e Infância (do latim infale), aquele que não tem voz.
Vale contar que, quando os educadores se deparam com a definição
desses termos tão corriqueiros, emocionam-se ao se dar conta de que nas
escolas de hoje as crianças muitas vezes têm voz, mas não têm escuta.
Brincam, mas não formam vínculos. São educadas ou “robotizadas”, mas não
conduzidas para o mundo. E as escolas quase nunca são espaços de lazer e
alegria, mas sim de lições e tarefas a ser cumpridas com vistas a
passar, com mérito, no Enem – para, quem sabe, ascender
profissionalmente no futuro. Constatar isso já é, sem dúvida, o início
da transformação dos educadores. Mas o que precisamos para ir além?
Acredito que educar é um ato político, o que nos leva ao
entendimento de que a educação não deveria ser para a cidadania e sim da
cidadania. A educação deveria ser percebida como uma relação de
ensino-aprendizagem que se dá no vínculo do professor com o aluno (e dos
pais com os filhos), e que o conduzirá num processo de autoconhecimento
baseado em respeito, acolhimento e liberdade. O objetivo é que esse
sujeito consiga, no seu tempo, aprender não somente conteúdos, mas
principalmente a ser, a conviver, a cuidar e a respeitar.
Educar deveria ser estimular o surgimento da consciência crítica no
aluno, fornecendo-lhe as ferramentas para que possa avaliar, ele
próprio, os caminhos que se abrem para construir algo que valha a pena
na vida. O papel do educador e da escola deveria ser, então, segundo a
querida mestra Monique Augras, o de reencantamento do mundo – porque só
assim será possível formarmos cidadãos mais conscientes.
Já é consenso que a escola do século 21 é aquela que prepara a vida, e
isso requer uma formação integral de ser humano que passe pelas
habilidades socioemocionais. Dentro de uma sociedade cada vez mais
conectada e globalizada, é urgente formarmos cidadãos que saibam lidar
com suas emoções. A famosa inteligência emocional é urgente e essencial
para o desenvolvimento pessoal, profissional e acadêmico de nossos
filhos. Porém, ainda se veem pais e escolas focados somente no rigor
acadêmico.
Saber reconhecer e lidar com emoções, expressá-las de forma clara e
respeitosa e trabalhar de maneira colaborativa e em equipe são
competências essenciais para a vida em sociedade e para o sucesso nas
profissões contemporâneas. Porém, essas ainda não são habilidades
comumente valorizadas na escola. Portanto, devemos lembrar-nos que é na
escola que o sujeito deve conhecer melhor sobre seu corpo e suas
emoções, sobre os outros e suas diferenças e, principalmente, sobre como
se relacionar no mundo de maneira mais respeitosa e sustentável. O
valor de nossos filhos e alunos não deveria nunca ser medido,
exclusivamente, pelas suas competências acadêmicas. Conteúdos afetivos
são tão importantes quando os matemáticos, físicos ou linguísticos.
Vale destacar que já têm aparecido iniciativas bem bacanas. Na Dinamarca, por exemplo, há tempos já se ensina empatia nas escolas. Já no Brasil o projeto Escolas Transformadoras
(parceria da Ashoka com o Alana) tem feito um trabalho não só de
identificar e mapear escolas que estão inovando ao redor do país, mas de
conectar e apoiar iniciativas inspiradoras para fortalecer a visão de
que todos podemos ser transformadores da realidade atual. Vale também
conferir o programa Destino Educação: Escolas Inovadoras,
parceria do Canal Futura com Inspirare, que tem trazido para a tela
experiências transformadoras em Educação ao redor do mundo. E todas
essas iniciativas concordam que devemos formar crianças e jovens mais
empáticas e inclusivas, além de cada vez mais bem preparadas para lidar
com as dificuldades da vida – porque elas virão mais rápido do que
esperamos.
Essa semana mesmo minha filha de 4 anos me deixou sem respostas.
Chegou da escola reclamando que um amigo mais velho a chamou novamente
de bebê e que isso a deixou muito triste, porque ela estava crescendo e
não era mais um bebê. Pediu ajuda, mas foi enfática ao dizer que não
queria que eu fosse à escola conversar com o professor e muito menos com
seu amigo. Então perguntei o que ela poderia fazer sozinha para
resolver a situação e a resposta foi: “Colocar uma armadilha para meu
amigo tropeçar, cair e ver como é ruim os outros rirem dele.” Respondi
que essa, sem dúvida, não era a melhor solução, mas que tinha entendido
que ela queria que seu amigo percebesse como ela se sentiu. Seguimos num
diálogo, sem muitos avanços, até que, na hora de dormir, ao ler o
belíssimo Caderno de Rimas do João,
de Lázaro Ramos, ela viu o Kirikou do filme desenhado numa das páginas e
rasgou um sorriso dizendo: “Descobri, mamãe! Vou falar para meu amigo
assistir Kirikou e a Feiticeira
e ver que ele é pequeno e valente, e quando eu cantar a música do filme
ele vai entender que Kirikou é pequeno, mas é meu amigo e é bem
valente!” E quem sabe o meu professor não passa o filme na escola e
assim todo mundo entende junto…” A mensagem da tolerância. Minha pequena
Clarice adormeceu tranquila e eu também, por achar que fiz escolhas
certas nessa trajetória.
Fica então a reflexão de que, para garantirmos o bem-estar infantil e
adolescente, é preciso fortalecer psicologicamente as crianças e
prepará-las para encarar as dificuldades emocionais e interpessoais que
acompanham, de maneira intrínseca, a vida cotidiana, e futuramente as
frustrações e pressões profissionais.
Essa árdua tarefa começa em casa, claro, mas deve se desdobrar na
escola. As crianças precisam cada vez mais trabalhar suas habilidades
socioemocionais, desde pequenas, e isso deve acontecer também na escola.
É nesse espaço que vão experimentar, pela primeira vez, regras de
convivência comunitária: a compartilhar, a se inscrever no mundo, a
trocar experiências e, principalmente, a ser mais empáticos e
inclusivos.
Não existe aprendizagem sem relação e não existe relação sem afeto. A
saída aos meus olhos é, sem dúvida, uma educação que respeita o aluno
como um ser que sente, que se afeta, tem vontades, um tempo e uma
expressão única. E que na relação com o professor mostra a cada
pergunta, conflito e encantamento o quanto nós adultos, muitas vezes,
nada sabemos.
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